Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
05 de setembro de 2020 | 21h00
Em um evento recente no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro desabafou: “Só Deus sabe o que já passei e passo dentro desta sala, não queiram a minha cadeira”. A sala em questão é o gabinete da Presidência, e a cadeira, aquela que lhe cabe ocupar como o vitorioso da eleição de 2018. “Com todo o respeito, não sou super-homem, mas não é para qualquer um.”
De fato, Jair Bolsonaro tem toda a razão: a Presidência da República não é para qualquer um. Para exercê-la é preciso uma série de qualidades que separam os estadistas dos aventureiros e oportunistas.
A primeiríssima dessas qualidades é ter um projeto claro de País – isto é, um conjunto de propósitos e compromissos públicos de longo prazo em torno dos quais o presidente deve se esforçar para construir maioria ou consenso político. Sem esse projeto e sem esse consenso, como convencer a sociedade a fazer sacrifícios em nome do bem-estar de todos, agora e no futuro? A destruição do legado de governos passados, por pior que esse legado tenha sido, não pode ser o único objetivo de um presidente, nem mesmo o principal. É preciso ter, isso sim, aptidão para construir.
Outra qualidade fundamental é a capacidade de compreender o que é o poder e como exercê-lo numa sociedade democrática. A eleição presidencial não dá a seu vencedor a prerrogativa de exercer o poder fora dos limites inscritos com clareza meridiana na Constituição. O presidente da República não pode nem deve esperar que os demais Poderes se submetam a seu tacão, pois todos são igualmente legítimos. Deve ter a grandeza de reconhecer igualmente que seu poder não existe em si. É, antes, expressão da vontade coletiva, construída por meio de amplo debate público, a partir da qual se extrai a base de uma governança genuinamente democrática. Isso é bem diferente do poder exercido de maneira arbitrária, em confronto aberto e permanente com a parte da sociedade que se recusa a ver legitimidade nas decisões de governo justamente porque, intimidada pela violência, que muitas vezes não é só retórica, não consegue ter voz no debate sobre a administração do País.
Além disso, um presidente deve demonstrar respeito reverencial pelas instituições que compõem a República, a começar pela própria Presidência – que deve ser exercida com o decoro que o mais alto cargo da administração demanda. Não se pode aceitar que um presidente se permita vulgaridades a pretexto de se aproximar do povo. O chefe de Estado não é um qualquer – foi eleito para representar o País e seus valores. Rebaixa a Presidência aquele que a ocupa como se estivesse num churrasco com os amigos.
Finalmente, um presidente da República que dignifica o cargo é aquele que respeita a imprensa, cuja existência, livre e saudável, é o maior sintoma de uma democracia pujante. A liberdade de imprensa não é uma concessão do Estado ou dos governantes; é, antes, uma condição sem a qual as demais liberdades estarão sob risco. Sem os veículos de comunicação, que levam os fatos ao conhecimento do público, dando-lhe condições de elaborar juízos racionais sobre a realidade, a sociedade estaria à mercê dos que pretendem impor o pensamento único. Desprovido de consciência crítica, proporcionada pelo escrutínio constante do poder, nenhum cidadão é livre – nem sequer cidadão chega a ser. Não é à toa que candidatos a ditador vivem a ameaçar jornalistas e a atacar a imprensa, pois estes são, por definição, o arrimo das sociedades democráticas.
Como se observa, não é mesmo fácil ser presidente da República. É um fardo e tanto, que só líderes políticos muito preparados, intelectual e emocionalmente, são aptos a carregar. Infelizmente, a democracia, por mais madura que seja, não é capaz de garantir a qualidade dos presidentes que serão eleitos, ainda mais em tempos de confusão, mentiras e rebaixamento moral como estes que ora vivemos; por outro lado, a democracia tem mecanismos muito eficientes para pelo menos impedir que os presidentes flagrantemente incapazes de exercer o cargo continuem indefinidamente no poder.
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