Ao longo dos milênios, a doutrina religiosa, incapaz de entender e resolver os riscos aos quais estava submetido o ser humano, construiu a sua divindade, capaz de dar a solução a que ele, o ser humano, era incapaz. A essa divindade, ao longo dos tempos, foram imputados perfis bem diferenciados: O sol, o raio, o trovão, a montanha até chegar ao modelo dos nossos dias, um ente invisível, todo poderoso e dotado de características elevadas de justiça, bondade e onipresença. A consolidação desse personagem evoluiu por duas vertentes paralelas e somatórias: a consolidação das características supremas e inigualáveis do ente divino, e a desconstrução sistemática do ser humano. Com essa tática, procurou-se aumentar a distância entre o ser divino e o ser humano, valorizando-se mais e mais aquele, e subvalorizando este. A ciência moderna, a partir dos últimos três séculos, e de forma marginal e não intencional, começou a desacreditar os argumentos até então utilizados pela estratégia religiosa. Ao mesmo tempo, ela (a ciência) começou a dar soluções concretas e efetivas para os males que afligiam a humanidade, justamente os males que a via religiosa somente prometia resolver no além, e nunca resolvia aqui na terra. Evidentemente, a estrutura religiosa precisava reagir a essa nova realidade para não cair no descrédito total. Mudar a estratégia tornou-se uma necessidade de vida ou morte para a sobrevivência do ente divino. E, o que se começou a fazer nesse sentido? Há duas correntes de ação. Os fundamentalistas, da ala mais radical e conservadora da crença divina, continuam insistindo na mesma tática; valorizar, ao extremo, o ente divino e desconstruir, a níveis abjetos, o ser humano. Particularmente, alvo de seus ataques raivosos, tem sido o espectro elevado do conhecimento humano, com destaque para os cientistas e os acadêmicos de alta especialidade. Como a religião se suporta em dogmas - nada precisa ser provado, basta concebido e, para crer, basta repetir, eles fazem isso: Repetem, repetem e repetem à exaustão. A ala religiosa mais realista procura conciliar o divino com a racionalidade científica. Seus adeptos estão abrindo mão, gradualmente, da premissa de imputar ao ser divino poderes para solucionar os problemas terrenos, e de imputar, a ele, o prestígio de agente causador dos benefícios. Ao ente divino é reservado o papel, tão somente, de conciliador entre as duas partes da nossa existência, a conhecida racionalmente, e a desconhecida, ainda por descobrir. Nesse sentido, a crença divina funciona como uma espécie de input motivacional usado, por cada um, a seu modo e feitio. Com isso, parece que o divino está descendo do seu pedestal para a terra, e o humano está ascendendo para o topo, lugar que lhe deveria ter sido reservado, por justiça, há muito tempo. Cada qual ao seu feitio.
Dia 9 de abril de 2020, o jornalista Randau Marques deu seu último suspiro, aos 70 anos. Um infarto fulminante colocou um ponto final na vida daquele que se tornou o primeiro jornalista a fazer coberturas especiais sobre a temática do meio ambiente no Brasil. Um profissional que deixou legado e aprendizado imensuráveis para as atuais e futuras gerações.
Antes mesmo de temas como o aquecimento global e os riscos da poluição atmosférica e dos avanços do ser humano sobre a natureza ganharem a dimensão e o debate público que têm hoje, Randau já alertava em suas reportagens sobre os perigos da degradação ambiental. Ainda nas décadas de 1970 e 1980, ele demonstrava ser um visionário da causa ambiental no país.
Atuando no periódico paulista Jornal da Tarde, Randau foi responsável por escrever – literalmente – uma nova fase no jornalismo e na história do Brasil. O trabalho que desenvolveu contribuiu, inclusive, para que os movimentos ambientalistas de São Paulo passassem a se articular como nunca antes. Randau Marques e o próprio jornal chegaram a ser um dos membros fundadores de uma das mais importantes organizações não governamentais da temática ambiental do país: a SOS Mata Atlântica. Tudo isso foi possível graças ao olhar e à sensibilidade do profissional frente ao tema “meio ambiente”.
“Vale da Morte”
Nascido em um assentamento indígena na cidade de Icaçaba, no interior de São Paulo, Randau foi o responsável por criar a expressão “Vale da Morte” ao se referir a Cubatão, na Baixada Santista. Por causa da poluição desenfreada na localidade, bebês nasciam sem cérebro, portadores de anencefalia, em razão dos gases altamente venenosos expelidos pelo polo petroquímico da região.
Foi Randau quem apurou e levou ao conhecimento da sociedade toda aquela tragédia no início da década de 1980. A poluição era tão forte que provocava a chamada “chuva ácida”, que dizimava a cobertura vegetal da Serra do Mar.
Em 1981, devido às denúncias que fazia, Randau chegou a prestar depoimento a uma Comissão Especial de Inquérito, instalada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que apurava irregularidades no município de Cubatão e tentava dar soluções aos problemas da poluição ambiental. O tema prosseguiu sendo alvo de reportagens nos anos seguintes.
Em 1985, foi publicada no Jornal da Tarde uma grande reportagem de Randau sobre a poluição petroquímica, e a foto estampada na capa, com a legenda: “A Serra do Mar está desabando”, entrou para a história do jornalismo brasileiro. A situação era realmente desesperadora.
Devido à poluição e ao registro frequente da chuva ácida, Randau revelou que a Serra do Mar estava caindo. A manchete foi estampada com fotos da área, que, realmente, desmoronava. Dessa forma, a reportagem denunciava o estrago que a poluição do polo petroquímico causava à serra que abriga grande parte da Mata Atlântica ainda preservada do Brasil.
A situação era calamitosa. Uma fumaça preta e amarela saía das chaminés dia e noite e tomava conta de toda a cidade. Cubatão chegou a ser apontada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a cidade “mais poluída do mundo”. Como reação às denúncias, o governador de São Paulo da época, Franco Motoro, tombou a Serra do Mar, ao mesmo tempo que a Companhia Ambiental do governo paulista começou a promover ações para reverter a situação de Cubatão. Apenas dez anos depois do início da cobertura de Randau, Cubatão foi reconhecida na Conferência sobre o Meio Ambiente da ONU, Eco-92, como símbolo de recuperação ambiental.
Preso e torturado
Randau trabalhou na redação do Jornal da Tarde por mais de 21 anos. Ele ainda passou como repórter no Estado de São Paulo e na Agência Estado. Sem nunca ter feito o ensino superior, sempre foi definido como um repórter brilhante, responsável por trazer à tona grandes temas da área ambiental. Foi ele quem, pela primeira vez, publicou textos sobre os perigos do desmatamento da Amazônia. Fez isso já naquela época.
Todos os colegas o caracterizavam como um jornalista apaixonado pelo trabalho investigativo. Sua paixão e convicção pelo que fazia o fez ser preso durante o Regime Militar, em 1968, por ter escrito uma reportagem veiculada em um periódico da cidade de Franca (SP) em que denunciava a contaminação de sapateiros com chumbo.
Ele tinha entre 17 e 18 anos quando foi detido. Por ter sido submetido à tortura, com sessões de eletrochoque, Randau ficou com sequelas para o resto da vida, como epilepsia e outros problemas neurológicos. Quando deixou a prisão, no DOI-Codi, na capital paulista, procurou o Jornal da Tarde. Começou trabalhando como freelancer e foi contratado.
Luta contra usina nuclear
Em plena ditadura militar, Randau encampou uma série de reportagens para impedir a construção das usinas nucleares Iguape 4 e Iguape 5, em São Paulo.
Os militares, através da então Nuclebrás, queriam implantar as ditas usinas nucleares. Por meio das denúncias do jornalista, elas não saíram. Em 1986, foi decretada a Estação Ecológica que englobou a área da Reserva Estadual dos Itatins (criada em 1958). Um ano depois, em 1987, foi finalmente implantada a Estação Ecológica de Jureia-Itatins.
Entre as outras grandes reportagens que marcaram a carreira de Randau Marques, podem ser citadas a do deslizamento da Serra do Mar, que quase soterrou Caraguatatuba, em 1967, e as que impediram a construção de um aeroporto em Caucaia do Alto, na região metropolitana de São Paulo.
Devido à Covid-19, o corpo de Randau foi cremado sem velório e sem muitas homenagens. Deixou a esposa e três filhos. Além de fundar a SOS Mata Atlântica, Randau foi um dos responsáveis pela criação da Organização W (que atua na área de qualidade de vida) em plena ditadura militar. Randau atuou também como assessor especial da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Randau deixa saudades. E leva a nossa mais profunda admiração e os nossos aplausos e reconhecimento por tanto trabalho em defesa da natureza e do bem comum.
Randau cresceu no meio da contaminação
Randau Marques cresceu entre lavouras infestadas por pesticidas que matavam lavradores e a fauna. Garimpeiros viviam intoxicados por mercúrio e sapateiros eram frequentemente contaminados pelo chumbo das tachinhas usadas na indústria calçadista. Esse relato consta no livro Jornal da Tarde: uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira, de Ferdinando Casagrande.
“Em 1963, todas essas angústias levaram o menino de 14 anos a rodar em mimeógrafo seu primeiro jornal de denúncias, chamado Boca no Trombone”, escreve o autor. Em Franca, para onde se mudara com a família, foi repórter de rádio e dos jornais A Tribuna e Comércio da Franca.
No dia 20 de maio de 2019, um antigo funcionário do hotel Maksoud Plaza começou a receber mensagens ameaçadoras. Uma pessoa que se intitulava “Júlio” dizia que se Henry Maksoud Neto, presidente do hotel, não lhe pagasse R$ 500 mil divulgaria “informações bem avassaladoras”.
Júlio dizia possuir o disco rígido de um computador com e-mails e dados confidenciais do Maksoud Plaza, fundado em 1979 e que já foi considerado como o principal hotel da cidade, símbolo de luxo e sofisticação nos anos 1980 e 1990.
No auge, o Maksoud Plaza recebeu personalidades como Frank Sinatra, que fez quatro apresentações no seu teatro mediante um cachê de US$ 1 milhão de dólares, e Axl Rose, responsável por outro momento marcante: o vocalista dos Guns N’ Roses atirou uma cadeira pela janela de sua suíte, irritado com a presença dos jornalistas.
O chantagista prometia entregar as informações ao Ministério Público e a Roberto Maksoud, pai de Henry Neto, que trava com o filho uma disputa judicial pela herança deixada pelo patriarca Henry Maksoud, que morreu em 2014.
Uma conversa pessoal foi marcada, então, para a praça de alimentação do shopping Cidade de São Paulo, na avenida Paulista, onde ocorreria a troca do disco rígido pelo dinheiro.
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Avisada previamente por Henry, a polícia prendeu “Júlio”, na verdade, Sérgio Ferreira Júnior, que estava com um HD, dois notebooks e dois celulares. José Carlos Rangel, comparsa de Sérgio, foi preso na madrugada seguinte.
Ele confessou o crime e revelou um dado surpreendente: o HD com as informações sigilosas lhe foi entregue por Maria Eduarda Maksoud, mulher de Cláudio Maksoud e tio do presidente do hotel, que também briga na Justiça pela herança.
À polícia, Maria Eduarda, disse que o pen drive foi deixado na porta do seu quarto no hotel, e que pediu a José Carlos que o guardasse. Afirmou que confiava nele e que acreditava que não acessaria o pen drive.
A polícia chegou a pedir a sua prisão preventiva, mas a Justiça considerou não haver indícios da participação da tia do presidente do hotel na chantagem.
Sérgio e José foram condenados no dia 20 de julho pelo Tribunal de Justiça, que confirmou a pena dada em primeira instância de cinco anos e quatro meses de prisão, em regime semiaberto.Ainda cabe recurso.
A dupla diz que a punição é exagerada, que desde o início não se eximiram de suas responsabilidades e que colaboraram com o esclarecimento dos fatos. A confissão, argumentam seus advogados, deveria ser considerada como um atenuante. Eles pedem que a pena seja reduzida para quatro anos de reclusão e que possam cumprir a pena em regime aberto.
Rogério Gentile
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha, editor de Cotidiano e da coluna Painel e repórter