quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Oriente e Ocidente se apresentam como constelações em mutação, LATINOAMÉRICA21 - FSP

 Fabián Bosoer

Cientista político, jornalista, editor-chefe da seção de opinião do diário argentino Clarín, professor e pesquisador da Universidad Nacional de Tres de Febrero e professor convidado na Uade e Flacso.

LATINOAMÉRICA21

A história universal está marcada pelas categorias de Oriente e Ocidente, entendidas não só como designações que situam geografias no planisfério mas também como civilizações, culturas, imaginações geopolíticas e modos de entender as configurações do mundo.

A abordagem clássica explica que quando um se expande, o outro recua; quando um ascende, o outro decai. E assim os auges e decadências de nações, impérios e domínios, de alcance continental ou planetário.

Há outros modos de encarar: o motor da história não está nos centros do poder, onde as cartografias são desenhadas e os destinos dos Estados são decididos, mas em seus confins, onde se encontram e entremeiam os povos de diferentes culturas quando esses se põem em movimento e descobrem suas “terras incógnitas”, onde fronteiras são desdesenhadas e circulam as migrações, mercadorias, idiomas e conhecimentos; e também os vírus, enfermidades e pandemias como a que está assolando o planeta neste momento.

Nesse cenário internacional estragado pela pandemia de Covid-19, hoje temos um Oriente desorientado e um Ocidente acidentado. Ambos se apresentam como constelações em mutação, profundamente imbricadas e que se influenciam mutuamente.

Vale um exemplo, entre muitos: um dos mais conhecidos especialistas chineses em questões internacionais hoje, Zhang Weiwei, autor de uma trilogia que trata da ascensão da China como potência mundial, se formou em Oxford, foi pesquisador em Genebra e trabalhou como intérprete de inglês para Deng Xiaoping e outros líderes de seu país na década de 1980.

Ou seja, é um acadêmico asiático com formação ocidental, que contempla o Ocidente do Oriente com uma narrativa própria, ao contrário do que estamos acostumados de nossa posição nas periferias ocidentais das Américas.

Seu livro “The China Horizon” é descrito como peça central no debate acadêmico que se desenrola na China sobre a natureza e o futuro do país, e sobre como este se compara ao Ocidente.

O trabalho argumenta que a China “está superando ou pode superar os Estados Unidos” como potência planetária proeminente, com um modelo próprio de desenvolvimento, que inclui remodelar as instituições internacionais, “aproveitando os pontos fortes de sua tradição, o legado socialista e elementos do Ocidente”.

Weiwei analisa os pontos fracos das instituições políticas ocidentais e sublinha que a China é um Estado “civilizacional” porque desenvolveu uma lógica e um modelo próprios que, embora o país não pretenda impor ao mundo, podem de fato liderar uma reorientação da ordem mundial.

Ainda assim, a leitura dele permite também detectar fortes denominadores comuns com as abordagens clássicas do realismo ocidental quanto ao equilíbrio e balanço de poder, bem como um reconhecimento do legado liberal do pós-guerra –o sistema das Nações Unidas e as instituições e princípios que regulam a paz e segurança internacional e o comércio entre as nações.

Vejamos outros dois exemplos. A propósito da ameaça do presidente Donald Trump de proibir o app chinês TikTok nos Estados Unidos, o porta-voz do Ministério do Exterior chinês, Wang Wenbin, responde do ponto de vista da defesa dos princípios liberais, advertindo que “eliminar companhias não americanas sob o pretexto da segurança nacional viola os princípios da economia de mercado e os da abertura, transparência e não discriminação da Organização Mundial do Comércio (OMC)”.

Logo do aplicativo TikTok entre bandeiras da China e dos EUA
Logo do aplicativo TikTok entre bandeiras da China e dos EUA - Ilustração de Florence Lo - 16.jul.2020/Reuters

No final de maio, Trump anunciou uma ruptura com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a qual ele acusou de estar “completamente sob controle da China”. O abandono dos Estados Unidos deixa a organização criada em 1948 sem sua principal fonte de financiamento, em meio à pior crise de saúde pública mundial em um século.

Enquanto isso, apesar de sua participação baixa no custeio geral da OMS, os especialistas afirmam que as crescentes contribuições financeiras da China dão mais peso ao país, especialmente em um momento no qual se considera que os Estados Unidos desejam se desligar das organizações internacionais e em que ameaçam reduzir as verbas do sistema mundial de saúde.

Enquanto os Estados Unidos se mostram endógamos, relutantes e nacionalistas, o “sonho chinês” não oculta suas aspirações a tomar a liderança internacional, absorvendo o “sonho americano” e buscando exercer o “smart power”.

Há cerca de um quarto de século, Henry Kissinger questionava: “Será que sociedades de origens culturais tão distintas conseguirão compatibilizar suas definições sobre valores verdadeiramente mundiais?”.

A tecnologia e a cultura já deram suas respostas, antes da política.

É na interdependência e conexão entre civilizações –e não no choque que por acaso se produza como resultado dessa interação– que serão escritos os capítulos do porvir.

Texto publicado originalmente no jornal Clarín, da Argentina.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

Tradução de Paulo Migliacci

Já está na hora de retomar as viagens, Sergio Cimerman*, O Estado de S.Paulo


02 de setembro de 2020 | 05h00

covid-19 está nos trazendo inúmeros ensinamentos ao longo desses seis meses, desde o primeiro caso diagnosticado no Brasil. Não poderia ser diferente no ramo do turismo, sensivelmente afetado do ponto de vista econômico, com um rombo de US$ 84,4 bilhões que impacta as companhias aéreas e agências de viagens, conforme a International Air Transport Association (Iata) em sua página na internet.

Desde o início, várias lições foram aprendidas, e o começo do retorno regado a protocolos rígidos de distanciamento socialhigienização de mãos e uso de máscaras durante o voo será o diferencial para a volta do turismo presencial nos mais variados pontos do planeta.

Estamos cansados de turismo virtual: jantar no restaurante de boa pontuação apenas visualizando o cardápio e observando fotos, visitar museus com câmeras fantásticas e pontos muito bem posicionados pela instituição, porém sem a sensação de desfrutar de tudo que aquela obra de arte quer realmente dizer. Estamos na hora desta volta? Creio que sim, se mantidas as regras já convencionais e observada atentamente a normativa de entrada de cada nação. 

A maioria das companhias aéreas internacionais vem realizando um trabalho interno e com os passageiros de boa aceitação. Adotando normas de entrada nos aviões, limpeza frequente das superfícies e uso de máscaras durante todo o voo, apesar do desconforto que possa gerar a todos nós. Por causa da situação e da posição do Brasil no cenário de casos de infecção, até o momento a entrada de turistas não tem sido aceita, com raríssimas exceções, como por exemplo Dubai e México.

Mesmo assim, se deve realizar o exame do RT-PCR previamente à viagem, com 72 horas de antecedência, para que seja mostrado na imigração. Creio que, quando tivermos uma abertura maior de localidades, essa determinação deva ainda ser mantida por um bom tempo pelas autoridades sanitárias dos países. Uma grande vantagem será a mensuração pelo exame de antígeno para covid-19 que seria feito na chegada, com o mesmo tipo de coleta pelo swab nasal e de orofaringe com resultado em até 30 minutos. Para isso, deverá haver uma estrutura de coleta em cada localidade e ser seguidos procedimentos de biossegurança. Ainda contaremos com o padrão ouro do RT-PCR levado pelos passageiros a bordo.

Heathrow
Aeroporto de Heathrow, em Londres: brasileiros precisam cumprir quarentena de 14 dias ao entrar no Reino Unido Foto: Toby Melville/Reuters

E durante o voo tenho risco? Pergunta difícil de responder. Uma questão é fato: os aviões apresentam os filtros Hepa (High Efficiency Particulate Air), que são utilizados em ambientes hospitalares e apresentam uma alta capacidade de filtração com renovação do ar, em média, a cada três minutos, retendo acima de 99% dos vírus e bactérias que estejam no ar. Com essa tecnologia, ficamos mais tranquilos em relação à segurança.

Se aliado a isso seguirmos as medidas preventivas já adotadas mundialmente, ficaremos com baixo de risco de infecção e, assim, daremos início ao retorno do turismo internacional. Se ainda pudéssemos dispor do intercalamento entre poltronas no avião, seria o melhor dos mundos. Como economicamente ficará inviável, porque alguém deverá pagar essa conta - no caso, o passageiro -, sugiro que durante o percurso seja retirada a máscara o mínimo possível e evite conversa durante o trajeto e o uso de meias elásticas compressivas, porque o caminhar na aeronave será bem restritivo.

Aos poucos vamos retornando o turismo interno em cada país. Esse sim aumentou sensivelmente, com a procura por distâncias menores para se fazer por automóvel ou até pequenos trechos aéreos. O reaquecimento do turismo local já tem sido evidente, mas ainda longe das épocas áureas pré-covid-19. Estamos já observando hotéis cheios, porém com capacidade reduzida pelas leis atuais. E assim seguem protocolos adequados para preservar a todos. As refeições na grande maioria dos hotéis por aqui estão sendo oferecidas no quarto sem custo ao turista, mitigando o risco de infecção. São recursos que são aplaudidos pelos clientes e que ecoam em todos os cantos, fazendo disso uma constante em nossa rede hoteleira.

E as viagens de navio? Aqui, mais um tempo para o retorno. Difícil manter milhares de pessoas a bordo, além da tripulação. Cria-se a aglomeração, que é um alto risco de infecção. Há a questão alimentar em sistemas de buffet enormes. Mesmo com todos protocolos seguidos, o risco me parece alto se comparado às outras formas de turismo. Mas vai chegar a volta dessa prática também. Estamos caminhando a passos largos, com risco de transmissão inferior a 1 (menos de uma pessoa transmitindo para outra pessoa) em boa parte das cidades brasileiras e a vacina trará maior tranquilidade à população mundial.

Vamos viajar, oxigenar a mente e rodar boa parte da economia mundial.

*Coordenador Científico da Sociedade Brasileira de Infectologia

Marcelo Viana Limites da mente humana, FSP

 

Ao final do século 19, a ciência respirava otimismo quanto à capacidade do intelecto humano para penetrar os mistérios do universo. Na física, havia a convicção de que as grandes descobertas já tinham acontecido, e o que faltava era pouco mais do que melhorar a precisão das medições. Essa confiança no poder da mente era ainda maior na matemática, com sua espetacular lista de avanços.

Em famosa palestra no Congresso Internacional de Matemáticos de 1900, em Paris, o alemão David Hilbert (1862 – 1943) listou 23 problemas para serem resolvidos no novo século, afirmando: “A convicção de que todo problema matemático pode ser resolvido é um poderoso incentivo para o pesquisador. Escutamos dentro de nós o chamado perpétuo: Aqui está o problema. Busque a solução. Você pode encontrá-la pela razão pura, pois em matemática não existe ‘não sei’.”

No entanto o desenvolvimento da ciência ao longo do século 20 iria mostrar que existem, sim, certos limites incontornáveis ao poder do raciocínio. O primeiro foi descoberto na física: o princípio da incerteza, formulado em 1927 pelo físico alemão Werner Heisenberg (1901–1976), afirma que não é possível conhecer ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula subatômica, como o elétron: quanto mais precisa for a medição de uma dessas grandezas, mais grosseira será a estimativa da outra, necessariamente. Voltarei ao tema brevemente.

Pessoa escreve em quadro negro
Gödel mostrou que o fato de que a matemática não contém contradições nunca poderá ser provado rigorosamente - Vasily Fedosenko/Reuters

O projeto maior de Hilbert era formular a matemática em bases rigorosas, de modo a livrá-la de uma vez dos paradoxos da teoria dos conjuntos. De fato, esse era justamente o teor do segundo problema na sua lista. Mas os teoremas de incompletude provados em 1931 pelo matemático e filósofo austríaco Kurt Gödel (1906–1978), mostraram que isso não é possível: Gödel mostrou que o fato de que a matemática não contém contradições nunca poderá ser provado rigorosamente.

Em sua tese de doutorado, de 1951, o economista e matemático norte-americano Kenneth Arrow (1921 – 2017), prêmio Nobel da economia em 1972, descobriu outro problema intrigante, com importantes implicações práticas, cuja solução está fora do nosso alcance.

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Considere um processo de escolha com três ou mais candidatos (pessoas, coisas, ideias etc). Cada ‘eleitor’ vota listando os candidatos na ordem de preferência. O problema é determinar, a partir dos votos individuais, uma lista ordenada que reflita a preferência global do eleitorado. Há três regras. Se todos os eleitores preferem X a Y, então X deve ficar na frente de Y na lista final. A posição relativa de dois candidatos quaisquer (quem fica na frente de quem) na lista final deve depender apenas de suas posições relativas nas votações, e não das opiniões dos eleitores sobre os demais candidatos.

Finalmente, não deve haver ditador, cuja opinião é seguida sem considerar as dos demais eleitores. O teorema da impossibilidade de Arrow afirma que não existe nenhum procedimento que satisfaça estas três regras simples!

Marcelo Viana

Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.