domingo, 5 de julho de 2020

Qual é a dessas pessoas que andam sem máscara nas cidades? Drauzio Varella, FSP

É porque não acreditam em vírus, seres minúsculos que os olhos não enxergam?

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Dizem que Deus limitou a inteligência dos homens para que não invadissem seus domínios. Por que diabos não estabeleceu limites também para a ignorância?

É revoltante ver tanta gente sem máscara pelas cidades. Qual é a dessas pessoas? Não sabem que há uma pandemia? É porque não acreditam em vírus, seres minúsculos que os olhos não enxergam?

Ilustração de uma pessoa lavando as mãos com expressão assustada. Seus braços estão sendo segurados na água por um anjo e sua máscara está sendo puxada por um demônio que está sentado em seu ombro
Líbero/Folhapress

Andar sem máscara no meio dos outros revolta as pessoas de bom senso, pelas seguintes razões:

1) Em 50 anos de medicina, vi chegarem diversas epidemias, mas nenhuma em que o micro-organismo provocasse tal variedade de apresentações clínicas: até 40% dos infectados permanecem sem desconfiar que carregam o vírus. Entre os demais, o quadro vai da tal “gripezinha” oligossintomática a uma doença grave que evolui com insuficiência respiratória, intubação, ventilação mecânica e, eventualmente, morte.

2) Nesse cenário, prezado leitor, você considera a obrigatoriedade da máscara um desrespeito à sua liberdade? É mesmo? Medidas sanitárias que proíbem esvaziar os intestinos nas ruas também devem ser revogadas? Você reivindicaria no prédio em que mora o direito de urinar no elevador?

3) Embora a mortalidade seja mais alta entre os que fazem parte dos chamados grupos de risco (mais de 60 anos, pressão alta, diabetes, obesidade etc.), também morrem jovens saudáveis, com peso corpóreo na faixa da normalidade. Você decerto acha que só acontece com os outros.

4) Você é defensor convicto do isolamento vertical, em que crianças voltam para a escola e os jovens podem se expor à vontade, desde que os mais velhos fiquem em casa? Que ideia brilhante. Incrível, como Alemanha, França, Itália, Noruega e a Nova Zelândia não pensaram nisso. Não seria porque crianças e jovens podem ter irmãos obesos, pais e avós?

5) Quem sabe você é um daqueles iluminados que diz: “E daí? Se eu pegar o vírus, o problema é meu”. Não é apenas seu. Mesmo se tiver a sorte de ficar assintomático, você garante que não será um transmissor ambulante que levará sofrimento e morte aos mais vulneráveis?

6) Se, por acaso, você for daquelas pessoas meio azaradas que pegam o vírus e acabam nos hospitais, quem arcará com as despesas? Sua família? O SUS? O plano de saúde? Em qualquer caso, cairá nas costas de alguém a conta da sua irresponsabilidade.

7) Desculpe, mas não lhe incomoda pegar o vírus por um capricho pessoal e expor ao contágio seus familiares, os amigos e os profissionais de saúde que vão atender no hospital um egocêntrico como você?

Quando a epidemia chegou, já sabíamos que havia quatro medidas de prevenção com eficácia comprovada nos países que nos antecederam: testagem, isolamento social, higiene das mãos e uso de máscaras.

É evidente que caberia ao Ministério da Saúde a coordenação de um esforço nacional, em conjunto com os governadores e prefeitos, para acompanhar a disseminação da doença, equipar e preparar o SUS da melhor forma possível e orientar a população para impedir a falência dos serviços de saúde.

Nessa hora crucial, no entanto, não dispúnhamos de testes para identificar os infectados e os que haviam adquirido o vírus no contato com eles para que pudéssemos isolá-los de modo a interromper a transmissão em cadeia.

Para complicar, a autoridade máxima da República concluiu por conta própria que a fome seria mais mortal do que o coronavírus, condenou o isolamento, menosprezou a gravidade da doença, propôs que saíssemos às ruas de peito aberto, promoveu aglomerações políticas, eximiu-se de qualquer responsabilidade em relação às mortes, adotou a cloroquina como arma de combate e fez questão de exibir o rosto sem máscara.

Ao ultrapassarmos 60 mil mortes, está evidente que a volta das aglomerações promove o colapso do sistema de saúde e aumenta o número de óbitos de forma tão direta que várias cidades têm sido forçadas a decretar a volta do confinamento, depois da abertura do comércio.

Não é o isolamento social, e sim o coronavírus o causador da crise que fará o PIB brasileiro regredir a níveis de uma década atrás. Em pleno surto, imaginar que a população irá às compras para ativar a economia é pensamento mágico.

Há poucos dias, ao som de um sanfoneiro aprendiz, com a emoção de quem lê um extrato bancário, o presidente manifestou pela primeira vez solidariedade às famílias dos que perderam a vida. Antes tarde.

Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Marcos Lisboa A liberdade de Ivan Serpa, FSP

Em 1964, Ivan Serpa acabou retratando o começo de um longo pesadelo

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Na semana passada, esta Folha publicou caderno sobre os anos da ditadura. Faltou mencionar a resistência inesperada das artes por meio da criatividade transgressora, ou pela expressão da dor.
Ivan Serpa foi um pintor desconcertante. Ele iniciou o movimento concretista no Rio de Janeiro, criou o grupo Frente e formou uma geração.

A inventividade desmedida talvez tenha sido seu pecado. A estética convencional aprecia a previsibilidade.

Obra "Cabeça, 1964" (têmpera e óleo sobre tela, de 200 x 180 cm), de Ivan Serpa, que integra a Coleção Família Serpa
Obra "Cabeça, 1964" (têmpera e óleo sobre tela, de 200 x 180 cm), de Ivan Serpa, que integra a Coleção Família Serpa - Jaime Acioli

Arte para Serpa, porém, era a liberdade para experimentar, minuciosamente, em temas e materiais. A cada poucos anos, ele inaugurava um novo estilo. As linhas geométricas, desequilibradas e delicadamente coloridas do começo dos anos 1950 foram sucedidas por colagens de calor e pressão.

Depois vieram seus quadros expressionistas, com pinceladas que lembram ventanias.

Houve a fase dos bichos e das personagens disformes. Houve também os desenhos de seres estranhos entrelaçados em uma comunhão ambígua. Outros, maiores, expõem a arte erótica com uma geometria perturbadora.

Alguns de seus trabalhos esboçam com cores fortes mulheres e homens que não sabem seus limites.

Serpa conhecia seu ofício e o exercia compulsivamente. Seus experimentalismos incluíram pinturas com tintas automotivas, em meio a uma geometria desta vez tão previsível quanto divertida, e a deslumbrante fase Amazônica, em que as telas sugerem a bandeira de um país esquecido. Há um pequeno quadro, com pinceladas caleidoscópicas verdes, pretas e rosas, em homenagem ao samba e à Mangueira.

Obra de Ivan Serpa, sem título, Circa 1959, Impresso, 680 x 20 cm, que integra a coleção Gustavo Rebello Arte
Obra de Ivan Serpa, sem título, Circa 1959, Impresso, 680 x 20 cm, que integra a coleção Gustavo Rebello Arte - Jaime Acioli

Serpa trabalhou na Biblioteca Nacional, onde manuseava papéis carcomidos por cupim. Nos anos 1960, coloriu alguns com traços sutis e fortes, encontrando graça e beleza onde antes havia destruição. Suas telas do período escancaram o ocre do fundo subjugado por cores inesperadas que sugerem vida.

A abertura lenta e gradual após a pandemia vai permitir retomar a retrospectiva em sua homenagem, inaugurada no CCBB do Rio de Janeiro.

Serpa frequentava a casa de meus tios quando eu era menino. Em meio à conversa, ele ficava desenhando nos papéis largados em cima da mesa.

Tenho comigo o livro com as cifras musicais ingênuas e alegres de Chico Buarque, como “A Banda”, que ele adornou com monstros contorcidos em um entrelaçamento que simboliza uma época. Ele morreu em 1973, aos 50 anos.

Obra de Ivan Serpa, sem título, 1972, O.S.T.  200 x 130 cm, que integra a coleção Gustavo Rebello Arte
Obra de Ivan Serpa, sem título, 1972, O.S.T. 200 x 130 cm, que integra a coleção Gustavo Rebello Arte - Jaime Acioli

Bem mais tarde, descobri os seus quadros do ano amargurado. Rostos disformes, às vezes recheados de tons sutilmente escondidos por tintas sombrias. Quase sempre a esboçar um grito, ou, ao menos, a expressão de uma dor lancinante.

O país das cores era também o da opressão. Em 1964, Ivan Serpa acabou retratando o começo de um longo pesadelo.

Marcos Lisboa

Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.