Em 1964, Ivan Serpa acabou retratando o começo de um longo pesadelo
Na semana passada, esta Folha publicou caderno sobre os anos da ditadura. Faltou mencionar a resistência inesperada das artes por meio da criatividade transgressora, ou pela expressão da dor.
Ivan Serpa foi um pintor desconcertante. Ele iniciou o movimento concretista no Rio de Janeiro, criou o grupo Frente e formou uma geração.
A inventividade desmedida talvez tenha sido seu pecado. A estética convencional aprecia a previsibilidade.
Arte para Serpa, porém, era a liberdade para experimentar, minuciosamente, em temas e materiais. A cada poucos anos, ele inaugurava um novo estilo. As linhas geométricas, desequilibradas e delicadamente coloridas do começo dos anos 1950 foram sucedidas por colagens de calor e pressão.
Depois vieram seus quadros expressionistas, com pinceladas que lembram ventanias.
Houve a fase dos bichos e das personagens disformes. Houve também os desenhos de seres estranhos entrelaçados em uma comunhão ambígua. Outros, maiores, expõem a arte erótica com uma geometria perturbadora.
Alguns de seus trabalhos esboçam com cores fortes mulheres e homens que não sabem seus limites.
Serpa conhecia seu ofício e o exercia compulsivamente. Seus experimentalismos incluíram pinturas com tintas automotivas, em meio a uma geometria desta vez tão previsível quanto divertida, e a deslumbrante fase Amazônica, em que as telas sugerem a bandeira de um país esquecido. Há um pequeno quadro, com pinceladas caleidoscópicas verdes, pretas e rosas, em homenagem ao samba e à Mangueira.
Serpa trabalhou na Biblioteca Nacional, onde manuseava papéis carcomidos por cupim. Nos anos 1960, coloriu alguns com traços sutis e fortes, encontrando graça e beleza onde antes havia destruição. Suas telas do período escancaram o ocre do fundo subjugado por cores inesperadas que sugerem vida.
A abertura lenta e gradual após a pandemia vai permitir retomar a retrospectiva em sua homenagem, inaugurada no CCBB do Rio de Janeiro.
Serpa frequentava a casa de meus tios quando eu era menino. Em meio à conversa, ele ficava desenhando nos papéis largados em cima da mesa.
Tenho comigo o livro com as cifras musicais ingênuas e alegres de Chico Buarque, como “A Banda”, que ele adornou com monstros contorcidos em um entrelaçamento que simboliza uma época. Ele morreu em 1973, aos 50 anos.
Bem mais tarde, descobri os seus quadros do ano amargurado. Rostos disformes, às vezes recheados de tons sutilmente escondidos por tintas sombrias. Quase sempre a esboçar um grito, ou, ao menos, a expressão de uma dor lancinante.
O país das cores era também o da opressão. Em 1964, Ivan Serpa acabou retratando o começo de um longo pesadelo.
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