sábado, 15 de junho de 2019

Meu amigo Grandão andava muito triste com a doença sem cura do país, FSP

Me deu um enorme vazio e uma profunda tristeza ao saber da notícia da morte de Clóvis Rossi

Ricardo Kotscho
SÃO PAULO
Meu amigo Grandão morreu nesta sexta-feira de madrugada, aos 76 anos, exatamente como viveu: discretamente. 
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Era apenas cinco anos mais velho que eu, mas parecia muito mais. Era tão sério e caxias que já deve ter nascido adulto, cheio de responsabilidades. No serviço, não gostava de brincadeiras, embora fosse um grande gozador, principalmente dele mesmo.
É muito difícil escrever sobre este amigo de mais de meio século e quase dois metros de altura, que ficou grande sem ficar bobo —ao mesmo tempo, uma espécie de pai adotivo e irmão mais velho para mim. 
Esse é certamente o texto mais difícil e dolorido que já escrevi. "Larga de frescura", diria o Grandão, e me mandaria entregar logo a matéria. 
Os jornalistas Clóvis Rossi e Ricardo Kotscho durante o 2º Encontro Folha de Jornalismo, em comemoração do 97º aniversário do jornal, em 2018
Os jornalistas Clóvis Rossi e Ricardo Kotscho durante o 2º Encontro Folha de Jornalismo, em comemoração do 97º aniversário do jornal, em 2018 - Keiny Andrade - 20.fev.2018/Folhapress
Nos conhecemos muito jovens no Estadão, no final da década de 60, quando ele era editor e chefe de reportagem de um bando de focas, jovens iniciantes na profissão. 
Dei uma sorte danada de cair nas mãos dele. Clóvis Rossi não era um jornalista qualquer. Era o brasileiro mais dedicado e preparado para o exercício desta profissão e tinha grande prazer em ensinar quem estava começando. 
Formou toda uma geração. Não só ensinando a escrever, mas principalmente a se comportar com dignidade, a ser honesto com o leitor e a ter princípios no trabalho e na vida. Para o Grandão, ser jornalista era assumir um compromisso com sua gente, seu tempo e sua profissão, que para ele era a melhor do mundo. 
Na noite em que o Brasil entrou no quinto ato, em 1968, o golpe dentro do golpe, preocupado com seus garotos, ele nos alertou: "Cuidado, meninos, a brincadeira acabou".
Na última quinta-feira (13), meio século passado, uma semana depois de ter um piripaque no coração e implantar vários stents, nosso antigo chefe estava tão bem que o médico lhe deu alta um dia antes —o sujeito já estava indócil por não poder trabalhar.
Foi para casa, pediu um bom bife com arroz e feijão e, em seguida, resolveu descansar um pouco antes de ver o jogo da seleção brasileira feminina contra a Austrália. 
Estava novamente em casa, feliz, sem dores, mas andava muito triste com a doença degenerativa e sem cura do nosso país. Na última vez em que nos vimos, uns dois meses atrás, num almoço com nosso eterno parceiro Raul Martins Bastos, ele me pareceu mais cético e amargo do que de costume, sem esperanças. Acho que foi dessa tristeza sem fim que ele acabou morrendo.
Já sem força nas pernas, o principal instrumento de trabalho dos repórteres, o amigo sentia falta das viagens que fazia pela Folha para ver de perto o mundo mudando. 
Rossi foi talvez o único jornalista conhecido que cobriu o fim de todas as ditaduras na América Latina, na Europa e na África, e comemorou muito intimamente as festas da volta da democracia, em especial no nosso Brasil. Por isso, não se conformava com as sérias ameaças de um retrocesso. 
Sem se vangloriar de nada, contava suas aventuras de repórter peripatético como se estivesse falando de outra pessoa. Ganhou, aqui e lá fora, os principais prêmios com que um jornalista pode sonhar, mas na casa dele não se via nenhum troféu ou diploma. 
Podia ser a casa de qualquer um, e era isso o que o Rossi mais queria: passar despercebido, como apenas mais uma testemunha anônima dos fatos da nossa história recente.
E, assim como viveu, ele morreu nesta sexta, sem dar bandeira de nada. O importante para ele era a notícia, não o mensageiro, quer dizer, o repórter, ao contrário do que tanto vemos hoje em dia.
Reservado na vida pessoal e sempre discreto no trabalho, acho que tinha até vergonha de ser apresentado como o grande Clóvis Rossi
Respeitado por políticos de todas as siglas, no Brasil e no mundo, dos dois lados da faixa de Gaza, Rossi nunca teve partido, mas sempre teve lado. 
Podia falar no mesmo dia, de igual para igual, com Lula e FHC, com o líder dos direitos humanos ou o chefe da polícia, num país dividido ao meio pela intolerância. 
Mas acho que nunca conseguiu, ou não quis, falar com o capitão reformado Jair Bolsonaro. Para Rossi, tudo tinha um limite ético, uma linha na qual ele não ultrapassava. Nisso, apesar das nossas divergências políticas, éramos iguais. 
Rossi foi, acima de tudo, um democrata na pura acepção da palavra, um humanista que não tolerava as iniquidades das crescentes desigualdades sociais que encontrou de corpo presente em suas mil reportagens pelo planeta.
Na quinta à noite, para desgosto de dona Catarina, a Cat, sua mulher por mais de 50 anos, minha madrinha de casamento, Rossi foi assistir ao segundo futebol do dia na TV, o jogo do Palmeiras contra o lanterna Avaí. Era o jeito que ele encontrava de se desligar das desgraças do mundo. 
Cat resolveu ir dormir, tranquila com a rápida recuperação do marido. Tinha sido apenas um susto, a vida seguia na correnteza normal. 
Lá pela 1h, o Grandão a acordou. "Não estou conseguindo respirar direito, não sei o que é." A mulher falou para ele sentar na cama. "Isso deve ser pelo pânico pelo que você passou", diagnosticou ela, e passou a massagear suas costas. 
"Acho que vou desmaiar", foram suas últimas palavras. Caiu de costas na cama, em silêncio, sem dar um grito de dor. Quando a ambulância chegou, já o encontrou morto. 
Me deu um enorme vazio e uma profunda tristeza ao saber da notícia. Era a ele que eu sempre recorria nos momentos mais difíceis da vida.
Não é justo, não me conformo. O Grandão velho de guerra não poderia morrer justamente agora que o jornalismo de qualidade e o país dilacerado precisam tanto de pessoas como ele, um exemplo de cidadão de caráter (não confundir com "gente de bem"). 
Não é porque ele morreu, mas posso garantir que esse foi um grande cara. 
Começamos juntos no Estadão, passamos juntos pelo Jornal do Brasil, pela IstoÉ, de Mino Carta, e pelo Jornal da República, e estávamos terminando juntos nossas carreiras aqui na Folha, quando, de repente, ele resolveu ir embora e me deixou sozinho. Foi uma grande sacanagem. 
Valeu, Grandão. Agora você pode descansar em paz. O jornalismo brasileiro agradece o que você fez por nós. 
Vida que segue, sem você.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

O que os cinco do Central Park e a super-promotora Linda Farstein nos ensinam sobre a Justiça, FSP

Policiais, promotores e jornalistas colaboraram para que o sistema cometesse uma injustiça

É difícil assistir até o final a “Olhos que condenam”, série da diretora Ava DuVernay que acaba de estrear na Netflix.  A sensação de injustiça revira o estômago, causa mal-estar físico.
A série retrata o caso dos cinco adolescentes negros, entre 14 e 16 anos, condenados injustamentepelo estupro de uma executiva de banco branca no Central Park, em Nova York, em 1989.
Antron McCray, Raymond Santana, Yussef Salaam, Kevin Richardson e Korey Wise
Antron McCray, Raymond Santana, Yussef Salaam, Kevin Richardson e Korey Wise recebem homenagem em cerimônia da União das Liberdades Civis Americanas; os cinco foram condenados erroneamente pelo estupro de uma mulher branca nos anos 1990 - Valerie Macon - 7.jun.2019/AFP
Nova York vivia uma onda de crimes, no pico da epidemia de crack, e o estupro brutal de Trisha Meili, que chegou a ficar em coma e ficou com sequelas para sempre, causou comoção nacional.
A polícia estava determinada a solucionar o caso rapidamente. Uma promotora aguerrida, Linda Farstein, supervisora da investigação e chefe da área de crimes sexuais, determina já de início que todos os jovens negros que estavam no parque eram suspeitos.
Os policiais saíram interrogando todos os negros e latinos que estavam no Central Parque na hora do crime, e acabam focando em cinco —Korey Wise, Raymond Santana, Kevin Richardson, Antron McCray e Yusef Salaam, que tinham entre 14 e 16 anos. 
Não havia nenhum indício ou prova de que os meninos estivessem envolvidos. Nem os horários em que o crime aconteceu e o local onde eles estavam no parque eram compatíveis
Os adolescentes foram interrogados por horas, sem a companhia dos pais ou de advogados. Foram coagidos a confessar, com a promessa de que, em troca de colaboração, seriam soltos logo.
Os meninos cumpriram penas entre 6 e 13 anos. Perderam a sua juventude detrás das grades, tratados como criminosos, sem ter feito nada.
Em 2002, Matias Reyes, um estuprador em série que cumpria pena de 40 anos de prisão, confessou o crime contra Trisha Meilli, e o teste de DNA confirmou a autoria.
Reyes, após atacar Trisha, continuara solto, estuprara outras mulheres e matou uma grávida —enquanto cinco adolescentes inocentes estavam presos.
A Justiça anulou a condenação dos jovens, que foram soltos. Mas nem o Estado, nem a promotora, ou policiais, admitiram o erro.
A cidade fez um acordo com os cinco em 2014 e os indenizou em US$ 41 milhões pelos quase 40 anos de vida perdidos na prisão injustamente —sem admitir nenhum erro.
Na série, a promotora Farstein aparece admitindo que os horários não batiam, que não havia nenhuma prova, mas mesmo assim insiste em enquadrar os jovens.
Nem quando se encontra DNA que não é compatível com o material genético de nenhum dos jovens ela desiste. Continua forçando a barra para incriminá-los.
Farstein protestou, dizendo que a série é tão “cheia de distorções e falsidades que chega a ser uma invenção completa”.
Outro que faz uma aparição pouco lisonjeira é o então magnata imobiliário Donald Trump. Na época, Trump comprou anúncios de página inteira nos jornais pedindo a volta da pena de morte e pronta execução dos meninos.
A mídia tampouco sai ilesa —jornais cobriram o processo de forma sensacionalista e levantaram poucos questionamentos em relação às acusações e investigações.
Policiais, promotores, jornalistas —todos juntos colaboram para o sistema judicial cometer uma injustiça atroz.  
Desde que a série estreou, a vida de Linda Farstein virou de cabeça para baixo.
Ela fora tratada como uma super-heroína da Justiça em grande parte de sua vida. Fora uma das chefes da divisão de combate aos crimes sexuais em NY, que inspirou a série de TV  Law and Order SVU.
Ganhara prêmios de pessoa do ano e se tornara uma das promotoras mais famosas do país. Após se aposentar da promotoria, tornou-se uma bem-sucedida escritora de best-sellers policiais.
Com a série, campanhas de boicotes a seus livros ganharam as redes sociais, e sua editora acabou cancelando seu contrato. Farstein se viu obrigada a renunciar de cargos em vários conselhos de organizações filantrópicas.
Ao New York Times, Daniel R. Alonso, que trabalhava com Farstein na promotoria, afirmou que “é sempre terrível quando uma pessoa é condenada injustamente”, mas que isso não deveria ofuscar todas as conquistas da carreira da promotora.
Citando o histórico de Farstein no combate a estupradores e em campanhas por medidas de proteção a vítimas, ele disse ao jornal: “Eu acho que é terrível cancelar a carreira inteira de alguém por causa de um caso”, disse.
Mesmo quando o caso resulta em cinco jovens passando quase 40 anos na cadeia por engano?
Patrícia Campos Mello
Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

O último artigo, Vladimir Safatle, FSP

Com este texto, encerro minha colaboração como colunista da Folha

A ideia era escrever um artigo de encerramento no qual anunciaria o término de minha colaboração como colunista desta Folha. Mas eu só conseguia me lembrar de uma passagem de "Minima Moralia", de Adorno, na qual ele disserta sobre como seria atualmente impossível fechar portas.
Segundo Adorno, as pessoas teriam perdido a capacidade de fechar sem bater, de fazer os gestos curvos de quem leva uma porta a seu, digamos, lugar natural. As portas seriam feitas hoje de forma tal a convidarem os sujeitos a soltá-las com força, como quem está muito apressado, mesmo que não tenha nada realmente para fazer. Nessa mutação dos gestos de fechar uma porta, seria possível ler toda a sutil disciplina dos corpos a que nós estaríamos submetidos.
Ilustração
Marcelo Cipis/Folhapress
Bem, Teddie, depois de certo tempo, as ilusões sobre si vão embora. É verdade, acho que nunca aprendi a fechar uma porta. Todos os términos foram feitos como quem, meio sem querer, deixa a porta escapar, ouve o barulho produzido involuntariamente e diz: "Droga, não era nada disso".
É, fechar uma porta é arte que poucos têm. De toda forma, escrever um artigo que deveria ser o último também não é nada simples. Talvez isso sempre será mesmo algo da ordem do impossível.
Afinal, se ele fosse possível, eu escreveria, inicialmente, que agradeço a todos os leitores que, nesses praticamente dez anos (comecei em meados de 2010), acompanharam meus escritos semanais com comentários, sugestões e apoio.
Escreveria também que agradeceria inclusive aos leitores que esperavam minha coluna para sempre criticá-la, pois várias dessas críticas me foram úteis e preciosas.
Por fim, agradeceria ao jornal que me deu uma rara liberdade total de escolha de temas e de escrita durante um longo prazo de tempo, mesmo em situações nas quais eu discordava de maneira explícita de editoriais e opiniões expressas por seu corpo editorial.
Mas, como vocês podem ver, o problema é que se foi aí apenas um parágrafo e, bem, de um artigo se espera um pouco mais. E, nesta hora, pensei nos artigos que gostaria de ter escrito: um sobre a poesia de Óssip Mandelstam, outro sobre a poesia de Paul Celan, sobre Jacques Tati e a arte de tropeçar no cenário, sobre Nick Cave (é, eu deveria ter aproveitado o momento de seu show e escrito algo), sobre Gerhard Richter, sobre os que não sabem fechar portas, sobre o pensamento motívico em Pierre Boulez (mas esse ninguém ia ler mesmo).
O problema é que sempre havia uma sucessão impressionante de fatos de um país em decomposição. Como este último, que seria meu tema desta coluna, ligado à revelação de uma das histórias mais sórdidas de um país repleto de histórias sórdidas.
A história de um juiz que se associa à Promotoria de forma criminosa, retirando todo o direito do acusado em ser julgado por alguém isento e equidistante ("Nada de mais", não é mesmo Sergio?), prendendo-o ao final para retirá-lo de um pleito presidencial no qual ele estava à frente, para depois ser nomeado ministro da Justiça por aquele que ajudou a eleger e pavimentar suas próprias pretensões presidenciais para 2022.
A história do juiz que teria se tornado presidente prendendo seu próprio maior opositor. É difícil pensar em algo mais escandaloso.
Quando reeditou seu "História da Loucura", Michel Foucault se viu diante da necessidade de escrever um novo prefácio. Sem saber muito como fazê-lo, ele suprimiu o prefácio antigo e tentou justificar a impossibilidade de fazer um novo prefácio. Ao final, só lhe restou escrever duas frases: "Mas você acabou de escrever um prefácio" e "ao menos, ele foi curto".
Vladimir Safatle
Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.