sexta-feira, 14 de junho de 2019

O que os cinco do Central Park e a super-promotora Linda Farstein nos ensinam sobre a Justiça, FSP

Policiais, promotores e jornalistas colaboraram para que o sistema cometesse uma injustiça

É difícil assistir até o final a “Olhos que condenam”, série da diretora Ava DuVernay que acaba de estrear na Netflix.  A sensação de injustiça revira o estômago, causa mal-estar físico.
A série retrata o caso dos cinco adolescentes negros, entre 14 e 16 anos, condenados injustamentepelo estupro de uma executiva de banco branca no Central Park, em Nova York, em 1989.
Antron McCray, Raymond Santana, Yussef Salaam, Kevin Richardson e Korey Wise
Antron McCray, Raymond Santana, Yussef Salaam, Kevin Richardson e Korey Wise recebem homenagem em cerimônia da União das Liberdades Civis Americanas; os cinco foram condenados erroneamente pelo estupro de uma mulher branca nos anos 1990 - Valerie Macon - 7.jun.2019/AFP
Nova York vivia uma onda de crimes, no pico da epidemia de crack, e o estupro brutal de Trisha Meili, que chegou a ficar em coma e ficou com sequelas para sempre, causou comoção nacional.
A polícia estava determinada a solucionar o caso rapidamente. Uma promotora aguerrida, Linda Farstein, supervisora da investigação e chefe da área de crimes sexuais, determina já de início que todos os jovens negros que estavam no parque eram suspeitos.
Os policiais saíram interrogando todos os negros e latinos que estavam no Central Parque na hora do crime, e acabam focando em cinco —Korey Wise, Raymond Santana, Kevin Richardson, Antron McCray e Yusef Salaam, que tinham entre 14 e 16 anos. 
Não havia nenhum indício ou prova de que os meninos estivessem envolvidos. Nem os horários em que o crime aconteceu e o local onde eles estavam no parque eram compatíveis
Os adolescentes foram interrogados por horas, sem a companhia dos pais ou de advogados. Foram coagidos a confessar, com a promessa de que, em troca de colaboração, seriam soltos logo.
Os meninos cumpriram penas entre 6 e 13 anos. Perderam a sua juventude detrás das grades, tratados como criminosos, sem ter feito nada.
Em 2002, Matias Reyes, um estuprador em série que cumpria pena de 40 anos de prisão, confessou o crime contra Trisha Meilli, e o teste de DNA confirmou a autoria.
Reyes, após atacar Trisha, continuara solto, estuprara outras mulheres e matou uma grávida —enquanto cinco adolescentes inocentes estavam presos.
A Justiça anulou a condenação dos jovens, que foram soltos. Mas nem o Estado, nem a promotora, ou policiais, admitiram o erro.
A cidade fez um acordo com os cinco em 2014 e os indenizou em US$ 41 milhões pelos quase 40 anos de vida perdidos na prisão injustamente —sem admitir nenhum erro.
Na série, a promotora Farstein aparece admitindo que os horários não batiam, que não havia nenhuma prova, mas mesmo assim insiste em enquadrar os jovens.
Nem quando se encontra DNA que não é compatível com o material genético de nenhum dos jovens ela desiste. Continua forçando a barra para incriminá-los.
Farstein protestou, dizendo que a série é tão “cheia de distorções e falsidades que chega a ser uma invenção completa”.
Outro que faz uma aparição pouco lisonjeira é o então magnata imobiliário Donald Trump. Na época, Trump comprou anúncios de página inteira nos jornais pedindo a volta da pena de morte e pronta execução dos meninos.
A mídia tampouco sai ilesa —jornais cobriram o processo de forma sensacionalista e levantaram poucos questionamentos em relação às acusações e investigações.
Policiais, promotores, jornalistas —todos juntos colaboram para o sistema judicial cometer uma injustiça atroz.  
Desde que a série estreou, a vida de Linda Farstein virou de cabeça para baixo.
Ela fora tratada como uma super-heroína da Justiça em grande parte de sua vida. Fora uma das chefes da divisão de combate aos crimes sexuais em NY, que inspirou a série de TV  Law and Order SVU.
Ganhara prêmios de pessoa do ano e se tornara uma das promotoras mais famosas do país. Após se aposentar da promotoria, tornou-se uma bem-sucedida escritora de best-sellers policiais.
Com a série, campanhas de boicotes a seus livros ganharam as redes sociais, e sua editora acabou cancelando seu contrato. Farstein se viu obrigada a renunciar de cargos em vários conselhos de organizações filantrópicas.
Ao New York Times, Daniel R. Alonso, que trabalhava com Farstein na promotoria, afirmou que “é sempre terrível quando uma pessoa é condenada injustamente”, mas que isso não deveria ofuscar todas as conquistas da carreira da promotora.
Citando o histórico de Farstein no combate a estupradores e em campanhas por medidas de proteção a vítimas, ele disse ao jornal: “Eu acho que é terrível cancelar a carreira inteira de alguém por causa de um caso”, disse.
Mesmo quando o caso resulta em cinco jovens passando quase 40 anos na cadeia por engano?
Patrícia Campos Mello
Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

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