domingo, 9 de junho de 2019

Bolsonaro estimula uma cultura de desrespeito às leis, FSP

Ao dar respostas que não medem consequências, presidente exerce uma má influência

Em fevereiro, um agricultor disparou um tiro por acidente dentro de casa, no interior de São Paulo. Chamada pelos vizinhos, a polícia descobriu que sua carabina não tinha registro. Quando foi ouvido pelo juiz, ele disse que não sabia da necessidade de documentação, “pois o Bolsonaro tinha dito que pessoas de bem poderiam ter uma arma”.
Talvez o homem estivesse só tentando inventar uma boa desculpa para o crime. De todo modo, ele pode até acusar o presidente de fazer propaganda enganosa.
Bolsonaro mantém no governo a retórica de que tudo pode ser resolvido num passe de mágica. Para cada problema que enxerga, oferece uma resposta que não mede detalhes nem consequências. A má influência estimula uma cultura do vale-tudo e de desrespeito às leis.
Aquele agricultor paulista comprou uma carabina do sobrinho 20 dias depois que Bolsonaro assinou seu primeiro decreto para flexibilizar a posse de armas. “Sem muita informação, ele acreditou na TV e achou que, como é uma pessoa de bem, poderia comprar uma arma assim mesmo”, disse o advogado do homem à BBC, que noticiou o caso.
Não se pode culpar Bolsonaro diretamente pelo comportamento de cada brasileiro, é claro, mas sua conduta irresponsável no cargo abre caminho para um mundo simplista.
O próprio presidente incentiva a desobediência. Sua campanha para afrouxar leis de trânsitoarrepia até deputados. “Por ser um homem que comanda a nação, a palavra dele tem impacto. Quando ele fala, as pessoas podem compreender que já é lei”, disse à Folha Christiane Yared (PL), que perdeu o filho num acidente.
O discurso impulsiona desde motoristas que aceleram em estradas sem radares até madeireiros que desmatam sob a perspectiva de um novo tempo no meio ambiente.
É difícil acreditar que um presidente que usou a comunicação para se eleger não conheça o peso de suas palavras. É mais provável que Bolsonaro simplesmente não se importe com os efeitos daquilo que diz.
 
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Estados nervosos, FSP

Por que o ideal iluminista de uma racionalidade universal está fazendo água?

“Tudo o que era sólido desmancha no ar.” A frase, de Karl Marx e Friedrich Engels, publicada no “Manifesto Comunista”, de 1848, referia-se ao impacto da revolução burguesa nas relações sociais. Há motivos, contudo, para acreditar que a dupla foi modesta. O que está se desmanchando no ar é o próprio consenso em torno do que significam fatos, objetividade e verdade.
Essa é, só com um pouco de exagero, a tese de William Davies em “Nervous States” (estados nervosos). Trata-se de um livro engenhoso, no qual o autor percorre 400 anos de história das ideias para tentar mostrar por que o ideal iluminista de uma racionalidade universal, desvinculada de emoções e alcançável através da ciência, está fazendo água.
Ele começa com pensadores como Thomas Hobbes e René Descartes. Visita ciências como a medicina e a estatística, que ensaiava seus primeiros passos. Mostra como foi se construindo uma noção de realidade objetiva que serviu então de base para a política, os negócios e a própria democracia modernos.
Esse arranjo vai dando sinais de esgotamento, visíveis no descrédito de especialistas e na ascensão de líderes populistas. Isso ocorre em parte porque o ideal iluminista tinha problemas mesmo. Um exemplo: emoções nunca deixaram de fazer parte da razão. Mas a crise do modelo se estendeu. Uma combinação de ansiedades sociais com ressentimentos, turbinados por erros de especialistas, tecnologias disruptivas e pela cada vez mais conspícua desigualdade, faz com que até os avanços proporcionados pelo consenso iluminista sejam agora questionados.
O livro é instrutivo e gostoso de ler, ainda que Davies, em alguns momentos, recorra a doses generosas de especulação. Um deles é quando o autor liga a crise de opioides nos EUA à ideia de que dor crônica favorece o autoritarismo. Não vale como prova científica, mas passa numa obra que arrisca hipóteses para tentarmos entender o que diabos está acontecendo no mundo.
Capa de 'Nervous States' (estados nervosos), de William Davies - Reprodução