domingo, 20 de janeiro de 2019

O sertão da invenção, Ruy Castro, FSP

O artista não precisa copiar. Ele cria

Há dias, alguém me disse que, nas próximas férias, planeja visitar a região entre Minas Gerais, Bahia e Goiás que Guimarães Rosa “conhecia tão bem” e onde situou a ação de “Grande Sertão: Veredas”. Deve ser mesmo fascinante. Quem lê o romance tem a sensação de que Rosa conviveu longamente com o cenário de mata seca, rios e boiadas, habitado por vaqueiros, jagunços e sertanejos com aquela fala tão própria, que seu privilegiado ouvido multilíngue captou. Eu próprio achei isso quando li o livro pela primeira vez. 
Temendo desapontar o sujeito, apenas concordei. Mas a verdade é que o sertão estava mais longe de Guimarães Rosa quando ele nasceu, em Cordisburgo, MG, em 1908, do que a praia de Copacabana. Aliás, Cordisburgo, a apenas 1h30 de Belo Horizonte, fica a 710 metros de altitude —mais antissertão, impossível. Em adulto, Rosa conheceu melhor o porto de Hamburgo, na Alemanha, onde serviu como diplomata, e o Palácio Itamaraty, aqui no Rio, onde trabalhou por 20 anos, do que as veredas de Diadorim. 
Pelo que se sabe, seu contato com o sertão se limitou a uma viagem de duas semanas, de mula, acompanhando uma tropa pela região onde a trama se passaria. Como fez isto em 1952, pode ter sido em função do “Grande Sertão”, publicado em 1956. Mas o que são duas semanas? 
Isso não desmerece o escritor. Ao contrário, engrandece-o. O sertão não estava prontinho à sua espera para que ele o observasse, tomasse nota e descrevesse nos livros. Aliás, sou até levado a acreditar que, de certa forma, o sertão de Rosa nunca existiu. Saiu gloriosamente de sua imaginação, assim como a língua falada por seus personagens. Para mim, é tudo invenção do urbaníssimo, erudito e cosmopolita Guimarães Rosa.
O artista não precisa copiar. Ele cria. Vide Dorival Caymmi. O poeta do mar e dos pescadores não sabia nadar. E nunca pescou na vida.
Guimarães Rosa em viagem ao sertão mineiro
Guimarães Rosa em viagem ao sertão mineiro - Eugênio Silva
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

    Depósitos para Flávio atravessam o coração do governo Bolsonaro, FSP

    Caso é devastador para imagem do clã e 'dói no coração', como disse o presidente

    Flávio Bolsonaro durante entrevista à imprensa no Rio, em outubro do ano passado
    Flávio Bolsonaro durante entrevista à imprensa no Rio, em outubro do ano passado - Filipe Cordon - 25.out.18/Folhapress
    O novelo ainda começava a se desenrolar, em dezembro, quando Jair Bolsonaro decidiu fazer uma aposta alta. “Se algo estiver errado comigo, com meu filho, com o Queiroz, que paguemos a conta”, disse o presidente eleito. “Dói no coração da gente? Dói, porque nossa maior bandeira é o combate à corrupção.”
    O escândalo provocado pela movimentação de dinheiro no gabinete de Flávio Bolsonaro cresceu de uma dor desconfortável no peito para um ataque cardíaco grave.
    Os pagamentos feitos na conta do filho do presidente, revelados pelo Jornal Nacional, atravessam o discurso moral da família e arrastam consigo a imagem de todo o governo. Assim como o PT sofreu com o mensalão após ostentar a bandeira da ética por décadas, o bolsonarismo corre um risco considerável.
    Em junho de 2017, Flávio recebeu um salário de R$ 18.768 como deputado estadual. Naquele mês, alguém multiplicou esse rendimento por seis ao depositar R$ 96 mil em sua conta, divididos em 48 envelopes.
    Caso o autor dos pagamentos não seja um filantropo que prefere ficar anônimo, o caso não pode passar mais um único dia sem explicação. Flávio conseguiu a proeza de dar duas entrevistas, mas não ofereceu nem uma desculpa esfarrapada.
    Se o caixa eletrônico da Assembleia do Rio falasse, poderia contar uma história de pequenas corrupções. Depósitos em dinheiro vivo, em valores pequenos e sem identificação são a maneira mais discreta de se cobrar pedágio de funcionários —a chamada rachadinha.
    O senador eleito insiste que os investigadores tentam fazer um “gol de mão” e repete que tem todo o interesse em esclarecer o caso. Sua recusa em falar dos pagamentos contradiz tanto o discurso anticorrupção quanto sua linha de defesa.
    Flávio diz que teve acesso aos autos da investigação no início deste ano. Naquela ocasião, o Ministério Público já havia recebido o documento do Coaf que apontava os 48 depósitos em sua conta. Só depois ele acionou o STF para paralisar o caso.
    Bruno Boghossian
    Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).