O artista não precisa copiar. Ele cria
Há dias, alguém me disse que, nas próximas férias, planeja visitar a região entre Minas Gerais, Bahia e Goiás que Guimarães Rosa “conhecia tão bem” e onde situou a ação de “Grande Sertão: Veredas”. Deve ser mesmo fascinante. Quem lê o romance tem a sensação de que Rosa conviveu longamente com o cenário de mata seca, rios e boiadas, habitado por vaqueiros, jagunços e sertanejos com aquela fala tão própria, que seu privilegiado ouvido multilíngue captou. Eu próprio achei isso quando li o livro pela primeira vez.
Temendo desapontar o sujeito, apenas concordei. Mas a verdade é que o sertão estava mais longe de Guimarães Rosa quando ele nasceu, em Cordisburgo, MG, em 1908, do que a praia de Copacabana. Aliás, Cordisburgo, a apenas 1h30 de Belo Horizonte, fica a 710 metros de altitude —mais antissertão, impossível. Em adulto, Rosa conheceu melhor o porto de Hamburgo, na Alemanha, onde serviu como diplomata, e o Palácio Itamaraty, aqui no Rio, onde trabalhou por 20 anos, do que as veredas de Diadorim.
Pelo que se sabe, seu contato com o sertão se limitou a uma viagem de duas semanas, de mula, acompanhando uma tropa pela região onde a trama se passaria. Como fez isto em 1952, pode ter sido em função do “Grande Sertão”, publicado em 1956. Mas o que são duas semanas?
Isso não desmerece o escritor. Ao contrário, engrandece-o. O sertão não estava prontinho à sua espera para que ele o observasse, tomasse nota e descrevesse nos livros. Aliás, sou até levado a acreditar que, de certa forma, o sertão de Rosa nunca existiu. Saiu gloriosamente de sua imaginação, assim como a língua falada por seus personagens. Para mim, é tudo invenção do urbaníssimo, erudito e cosmopolita Guimarães Rosa.
O artista não precisa copiar. Ele cria. Vide Dorival Caymmi. O poeta do mar e dos pescadores não sabia nadar. E nunca pescou na vida.
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
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