domingo, 24 de junho de 2018

Para Giannetti, ser vira-lata é boa alternativa a uma civilização em crise, FSP

Em novo livro de ensaios, economista vira do avesso expressão cunhada por Nelson Rodrigues

    Uirá Machado
    [RESUMO] Em novo livro de ensaios, economista Eduardo Giannettivira do avesso o complexo de vira-latas ao afirmar que o caráter mestiço do povo brasileiro indica uma bem-vinda alternativa à civilização ocidental em crise.

    economista Eduardo Giannetti gosta de nadar contra a corrente. “Se o país está muito eufórico e otimista, eu fico pessimista. E vice-versa. Sempre tive a tendência de achar que os excessos da imaginação brasileira precisam ser atenuados”, afirma em entrevista à Folha.
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    A julgar por essa lógica, o atual momento do país parece especialmente propício para o lançamento de seu livro mais recente, “O Elogio do Vira-Lata e Outros Ensaios”. Crise política, polarização social, escândalos de corrupção e estagnação econômica compõem um quadro que a maioria considera desalentador.
    Não Giannetti. Separando o “circunstancial da conjuntura do permanente da cultura”, o economista de 61 anos diz: “Nós que temos certa idade já vimos esse ciclo muitas vezes no Brasil. No meio de um ciclo, não se sabe o que vai acontecer. É como uma turbulência grave. Depois que passa e você olha para trás, era só aquilo mesmo, uma turbulência”.
    giannetti
    O economista e filósofo Eduardo Giannetti, durante o debate "Mais um ano perdido?", sobre a situação econômica do país, no auditório da Folha, em São Paulo. - Eduardo Anizelli/ Folhapress
    Daí não decorre necessariamente que a etapa seguinte seja próspera. Superada uma fase muito aquém das expectativas, nada impede que o país apenas volte a sua mediocridade costumeira, certo?
    “Um estado de depressão às vezes mobiliza uma energia que de outra forma não aparece”, diz Giannetti, ainda em entrevista. “Grandes criadores têm períodos altamente depressivos que fazem parte de um processo de mobilização de forças.”
    O raciocínio alimenta a organização de seu novo livro, uma coletânea de 25 textos escritos de 1989 a 2018 que, como sustenta o autor no prefácio, têm em comum “o potencial de dialogar com o presente”. Um diálogo prenhe de esperanças. “O Brasil, quero crer, está grávido: no limiar de um parto temporão de cidadania.”
    A chave para o futuro vislumbrado por Giannetti está no primeiro ensaio, “O elogio do vira-lata”. Único artigo de 2018 e um dos dois que não haviam sido publicados antes, é também o mais engenhoso da compilação. Numa espécie de sessão de psicanálise, o autor deita a alma brasileira no divã e procura livrar-lhe daquilo que, 60 anos atrás, Nelson Rodrigues identificou como a única coisa que nos atrapalhava e às vezes invalidava nossas qualidades no futebol: o complexo de vira-latas.

    O ELOGIO DO VIRA-LATA E OUTROS ENSAIOS

    • Preço R$ 64,90 (348 págs.)
    • Autor Eduardo Giannetti
    • Editora Companhia das Letras
    • Ano 2018
    Como se sabe, o dramaturgo definiu o complexo como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. A ideia se aplica a todos os setores, com destaque para o futebol (a Copa como pano de fundo hoje não passa de coincidência). Seria necessário superar esse sentimento para dar vazão a todas as potencialidades nacionais. “O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas”, concluía Rodrigues.
    Precisa? Não para Giannetti. Mais uma vez na contracorrente —nessas seis décadas, não faltaram políticos, intelectuais e artistas a repetir o mantra instaurado pelo dramaturgo—, ele sugere o exato oposto: o Brasil precisa ter coragem de se assumir como o vira-lata que é.
    A argumentação se desenrola em dois movimentos. O primeiro, negativo, tem a função de combater o vira-lata como xingamento. O segundo, positivo, procura afirmar o vira-lata como elogio —daí, naturalmente, o título do ensaio e do livro.
    O passo inicial de Giannetti é fazer uma genealogia da expressão, recorrendo ao método que Nietzsche com frequência empregou. 
    Quem é o vira-lata? É o cão ou a cadela sem raça definida, o bicho mestiço, mas também a pessoa sem classe. Ou seja, ao primeiro significado, literal, acrescenta-se outro, figurado e pejorativo, no qual o preconceito salta aos olhos. A miscigenação, pouco importa se do animal ou do ser humano, surge como nódoa, como defeito, sinal de inferioridade em relação aos ditos puros. O brasileiro, povo mestiço, estaria abaixo e aquém do europeu.
    “A depreciação do vira-lata inerente ao complexo que leva o nome dele carrega como premissa tácita o culto do ideal de pureza racial, beleza estética, virtude e racionalidade nos moldes definidos especialmente pela vertente anglo-americana da civilização cristã ocidental”, escreve.
    Ao mostrar de que modo o vira-lata adquire caráter depreciativo, Giannetti ataca o uso dessa imagem como ilustração do sentimento de inferioridade do brasileiro. Como o próprio autor nota, porém, isso não elimina o sentimento em si. Portanto, a próxima etapa, positiva, exige que o vira-lata se torne desejável —um esforço igualmente nietzschiano de reorientar os valores da sociedade.
    Para Giannetti, “o éthos vira-lata representa uma bem-vinda alternativa (ou, ao menos, um necessário corretivo) ao modelo ocidental puro-sangue”, seja na esfera do trabalho, seja na das relações interpessoais. Enquanto a forma de vida anglo-americana prioriza valores como máxima produtividade, competência e sucesso no mercado de trabalho, a mestiço-tropical privilegia os afetos, a alegria, o congraçamento.
    O vira-lata, portanto, não é nem melhor nem pior; é o que somos —um jeito válido de ser, com vantagens e desvantagens.
    Giannetti enfatiza a palavra “alternativa”, mas soa nítida sua preferência pelos atributos do vira-lata. No fundo, o pensamento esteve latente em boa parte dos demais ensaios da coletânea e certamente em seu livro anterior, “Trópicos Utópicos”. Ali, em 124 aforismos (de novo Nietzsche), ele já deixava solta a ponta que agora veio a amarrar.

    TRÓPICOS UTÓPICOS

    • Preço R$ 52,90 (216 págs.)
    • Autor Eduardo Giannetti
    • Editora Companhia das Letras
    • Ano 2016
    “Faz sentido a ideia de uma civilização brasileira? Uma resposta afirmativa não precisa implicar nenhum tipo de arroubo xenófobo ou húbris cultural. O que ela implica é a identificação dos nossos valores e uma efetiva adesão a eles”, escreveu na obra de 2016 —repetindo palestra de 2012 incluída no “Elogio...”.
    Em conjunto, os dois livros mostram, em prosa elegante e imagens vivas, as preocupações de alguém que há muito tempo não só busca a identidade brasileira mas também questiona os rumos da humanidade. 
    Para ele, os três ídolos da modernidade —a ciência, a tecnologia e o crescimento econômico— estão exauridos. A crise ambiental e a epidemia de transtornos mentais são exemplos de problemas decorrentes de um projeto civilizatório (anglo-americano) que fez da guerra contra a natureza sua principal inspiração.
    Não surpreende que muitas das questões levantadas por Giannetti convirjam para a temática ecológica; não custa lembrar, ele foi e é assessor econômico de Marina Silva (Rede). Surpreende, porém, que não atue como o economista típico; em vez de analisar as bases materiais ou institucionais da sociedade, olha antes para o plano das ideias.
    No outro artigo de “Elogio...” que não tinha sido publicado antes, ele apresenta Agostinho da Silva, filósofo português morto em 1994 que trata dos “limites do entendimento lógico-racional do universo, nos moldes da ciência moderna”.
    Seu maior interesse está no que Agostinho diz “sobre a função planetária dos povos e culturas de língua portuguesa”, com potencial para eleger valores e construir formas de vida “capazes de superar os impasses e ameaças a que chegamos na trilha do tecnoconsumismo ocidental”.
    Giannetti encerra esse ensaio lembrando que Agostinho provoca a não nos contentarmos “com nada que seja menos do que sonhar, descobrir e criar um novo mundo”.
    Vale como utopia, sem dúvida. Mas, se há outro tema recorrente nos textos reunidos em “Elogio...”, é a distância entre o falar e o fazer, o pensar e o agir, o sonho e a realidade. 

    Uirá Machado, bacharel em direito e filosofia, é editor da Ilustríssima. Foi editor de Opinião, repórter de Poder e coordenador de Artigos e Eventos.

      Da terra e do céu, Janio de Freitas , FSP


      Permissão do Supremo para polícia fechar delação trará novas confusões


      Parte do mundo, parece, aprendeu alguma coisa com o passado. A política de tirar crianças dos seus pais não suscitou reação alguma, nem mesmo no Vaticano dos Pios 11 e 12, quando iniciada na Alemanha dos anos 1930. Logo pôde espalhar-se pela Europa, seguindo o horror das invasões nazistas. Os 2.300 casos de separação de pais e filhos, nos 40 dias da ordem de Donald Trump, submeteram esse algoz a reações internacionais que o obrigaram a apressado recuo.
      O Brasil nada aprendeu — como sempre. Não se integrou ao grupo de países que pediram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos providências para sustar a ação contra crianças e famílias imigrantes ilegais. Meia dúzia de palavras sem sal, a título de desaprovação, bastaram ao governo brasileiro. Como reforço da evidência, os governistas Marco Feliciano (Podemos-SP) e Ezequiel Teixeira (Podemos-RJ) neutralizaram a proposta, de Chico Alencar (PSOL-RJ), de repúdio da Câmara à violação de direitos humanos por Trump.
      É muito informativo, em vários sentidos, que 55% dos republicanos aprovem a separação violenta das famílias, contra menos de 10% dos democratas. Mas a crítica interna mais contundente veio de uma republicana célebre, Laura Bush, mulher do ex-presidente. Tirar crianças dos pais e “trancá-las em jaulas” equivale, a seu ver, à prisão dos nipo-americanos em campos de concentração nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra.
      Entende-se agora que Trump, pouco antes que o engaiolamento de crianças chegasse ao público, tenha levado os Estados Unidos a repentino abandono do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Outro caso em que o governo deixou o Brasil na alienação.
      Direitos humanos por aqui não vão melhor. Os índios que o digam. As crianças expostas aos tiroteios nem podem dizê-lo, morrendo agora por tiros do céu, bem apontados, não mais por balas a esmo. Casos que ganham atenção por alguns dias, para logo sucumbir à apatia ou ao assassinato seguinte. É necessário não faltar, no entanto, com o reconhecimento de que a recusa a barrar refugiados venezuelanos, na fronteira amazônica, é decisão sensata.

      Antonio Palocci é escoltado por policiais em setembro de 2016
      Antonio Palocci é escoltado por policiais em setembro de 2016 - Rodolfo Buhrer - 26.set.2016/Reuters
      O mesmo não pode ser dito do modo como o Supremo autorizou a Polícia Federal a também negociar delação premiada. Foi o preparo de mais confusões. Um exemplo já pronto é o de Antonio Palocci. Sem conseguir a venda de sua delação aos procuradores da Lava Jato, ele fez a oferta à Polícia Federal, que fechou negócio. Há, então, um processo que se encaminha para condenação pesada, por falta da tal delação premiada, e outro com acordo para minimização ou extinção da pena. O Supremo não previu tal situação nem, portanto, qual prevalecerá quando haja sentenças contraditórias.
      Em São Paulo são mais cuidadosos. A roubalheira na construção de uma linha do metrô (entre várias, linhas e roubalheiras), datando de 2005, só teve denúncia judicial do Ministério Público do Estado em 2014. Isso mesmo: a denúncia, para julgamento, foi feita um ano depois da prescrição do processo, ocorrida oito anos depois do fato gerador, ou em 2013. Pronto, já para o arquivo. E viva a pureza do PSDB.
      Janio de Freitas

      Copa: desanimamos de desanimar, Antonio Prata, na FSP

      No primeiro colegial minha amiga Manuela tinha uma agenda com uma citação em cada página. Eram 365 “pílulas de sabedoria” para iluminar as suas manhãs. Durante uma aula de química, a Manuela me enviou um bilhetinho dizendo que tinha achado uma frase do meu pai, Mario Prata. Quando a professora se virou para a tabela periódica, dando as costas para a classe e explicando alguma coisa sobre o número atômico do tungstênio ou o peso do xenônio, a agenda passou de mão em mão por umas cinco carteiras e chegou até mim. As aspas não eram do meu pai, mas de um outro escritor, apropriadamente chamado “Mario Pirata”. Nem lembro o que dizia, mas lembro da citação ao lado, atribuída a Leonardo da Vinci, mais ou menos assim: “Quem aspira pela chegada da próxima primavera é um tolo, pois não percebe que aspira pela aproximação da própria morte”. 
      Adams Carvalho/Folhapress
      Não tenho ideia se Leonardo da Vinci algum dia escreveu isso —e o Google também não, “Primavera + da Vinci” me levou a um evento culinário anual de chefs ítalo-americanos em Delaware, EUA. A frase, porém, ficou guardada em algum escaninho da minha cabeça, junto com a Manuela, o tal “Mario Pirata”, o tungstênio e o xenônio (número atômico 74 e peso 131,3 u, respectivamente, para os que não se aguentavam de curiosidade). Só saiu desse rincão empoeirado nos últimos meses, quando me dei conta de que a Copa de 2014 parecia ter acontecido no ano passado e este ano já teríamos Copa de novo. Que bom que quatro anos passam tão depressa.
      Sabia nada, esse Leonardo, mas não o culpo, pois no século 15 não existia futebol e uma coisa é desejar que a vida ande rápido para ver o desabrochar das tulipas e ouvir o gorjear dos colibris, outra coisa é comemorar a aproximação da morte para assistir ao Cristiano Ronaldo marcar três contra a Espanha, o México ganhar da Alemanha, o Philippe Coutinho dar de bico nos acréscimos e nos catapultar do pânico da desclassificação para o vislumbre da taça.
      Estou feliz da vida por estes dias e não estou sozinho. Semanas atrás o Datafolha constatou o desânimo nacional em relação à Copa, mas, no domingo passado, primeiro jogo do Brasil, as camisas amarelas começaram a desabrochar pelas ruas, os cornetões gorjeavam como se não houvesse amanhã. E houve amanhã. E depois de amanhã. E houve jogos em cada um desses dias. E pessoas aglomeradas em bares, restaurantes, ao redor de tevezinhas em pontos de táxi comemoravam gol do Senegal, esmurravam a tampa da mesa por um erro da Islândia, debatiam acaloradamente os impactos esportivos e as implicações filosóficas da introdução do vídeo na arbitragem.
      Talvez os brasileiros estejam tão desanimados que não tiveram ânimo nem para desanimar, de modo que acabamos animadíssimos. A frase parece não fazer sentido, mas faz. O Brasil parece não fazer sentido —e não faz. Em 2013 a esquerda foi pra rua pedir transporte de graça e acabou colocando a direita no poder. A direita subiu prometendo liberalismo e entregou subsídio pra caminhoneiro. De consistente, entre nós, só a qualidade dos memes. “Se o Brasil vencer essa Copa o Neymar vai beber até ficar de pé”. Eu vou rolar no chão que nem o Tite. E se perder, também, paciência, daqui a quatro anos —sensação térmica de seis meses— começa tudo de novo. No Qatar. Com a seleção do da Vinci entre nós, espero. Fuoooommmmm! (Isso foi um cornetão).
      Antonio Prata
      Escritor, publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda'.