No primeiro colegial minha amiga Manuela tinha uma agenda com uma citação em cada página. Eram 365 “pílulas de sabedoria” para iluminar as suas manhãs. Durante uma aula de química, a Manuela me enviou um bilhetinho dizendo que tinha achado uma frase do meu pai, Mario Prata. Quando a professora se virou para a tabela periódica, dando as costas para a classe e explicando alguma coisa sobre o número atômico do tungstênio ou o peso do xenônio, a agenda passou de mão em mão por umas cinco carteiras e chegou até mim. As aspas não eram do meu pai, mas de um outro escritor, apropriadamente chamado “Mario Pirata”. Nem lembro o que dizia, mas lembro da citação ao lado, atribuída a Leonardo da Vinci, mais ou menos assim: “Quem aspira pela chegada da próxima primavera é um tolo, pois não percebe que aspira pela aproximação da própria morte”.
Não tenho ideia se Leonardo da Vinci algum dia escreveu isso —e o Google também não, “Primavera + da Vinci” me levou a um evento culinário anual de chefs ítalo-americanos em Delaware, EUA. A frase, porém, ficou guardada em algum escaninho da minha cabeça, junto com a Manuela, o tal “Mario Pirata”, o tungstênio e o xenônio (número atômico 74 e peso 131,3 u, respectivamente, para os que não se aguentavam de curiosidade). Só saiu desse rincão empoeirado nos últimos meses, quando me dei conta de que a Copa de 2014 parecia ter acontecido no ano passado e este ano já teríamos Copa de novo. Que bom que quatro anos passam tão depressa.
Sabia nada, esse Leonardo, mas não o culpo, pois no século 15 não existia futebol e uma coisa é desejar que a vida ande rápido para ver o desabrochar das tulipas e ouvir o gorjear dos colibris, outra coisa é comemorar a aproximação da morte para assistir ao Cristiano Ronaldo marcar três contra a Espanha, o México ganhar da Alemanha, o Philippe Coutinho dar de bico nos acréscimos e nos catapultar do pânico da desclassificação para o vislumbre da taça.
Estou feliz da vida por estes dias e não estou sozinho. Semanas atrás o Datafolha constatou o desânimo nacional em relação à Copa, mas, no domingo passado, primeiro jogo do Brasil, as camisas amarelas começaram a desabrochar pelas ruas, os cornetões gorjeavam como se não houvesse amanhã. E houve amanhã. E depois de amanhã. E houve jogos em cada um desses dias. E pessoas aglomeradas em bares, restaurantes, ao redor de tevezinhas em pontos de táxi comemoravam gol do Senegal, esmurravam a tampa da mesa por um erro da Islândia, debatiam acaloradamente os impactos esportivos e as implicações filosóficas da introdução do vídeo na arbitragem.
Talvez os brasileiros estejam tão desanimados que não tiveram ânimo nem para desanimar, de modo que acabamos animadíssimos. A frase parece não fazer sentido, mas faz. O Brasil parece não fazer sentido —e não faz. Em 2013 a esquerda foi pra rua pedir transporte de graça e acabou colocando a direita no poder. A direita subiu prometendo liberalismo e entregou subsídio pra caminhoneiro. De consistente, entre nós, só a qualidade dos memes. “Se o Brasil vencer essa Copa o Neymar vai beber até ficar de pé”. Eu vou rolar no chão que nem o Tite. E se perder, também, paciência, daqui a quatro anos —sensação térmica de seis meses— começa tudo de novo. No Qatar. Com a seleção do da Vinci entre nós, espero. Fuoooommmmm! (Isso foi um cornetão).
Antonio Prata
Escritor, publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda'.
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