segunda-feira, 28 de maio de 2018

Quem aplaude os métodos dos caminhoneiros não gosta de democracia, FSP

Pílulas anticrise ou como evitar que um caminhão atropele o raciocínio

Caminhoneiros fazem buzinaço em frente ao Planalto
Caminhoneiros fazem buzinaço em frente ao Palácio do Planalto por aprovação de reivindicações antes do pronunciamento do presidente - Pedro Ladeira-27.mai.18/Folhapress
Enfrento abaixo, de modo sucinto, alguns temas que surgiram com a eclosão da grande sabotagem nacional praticada por caminhoneiros e empresários do transporte.
A matriz de transportes dependente de caminhões não favoreceu a crise.
Em qualquer lugar do mundo, o caminhão é o elo mais frequente entre o varejista, que abastece os consumidores, e o seu fornecedor. A gasolina não chega aos postos de trem nem de navio. A batata, o tomate e a carne não viajam de “alimentoduto” até os supermercados. Precisam em geral de veículos de carga que trafegam pelas estradas e pelas ruas. Na França, paraíso ferroviário, greves de caminhoneiros sufocam o abastecimento de combustível e produzem as mesmas imagens de filas nos postos que vimos aqui.
Também não é uma locomotiva que vai buscar o leite nas fazendas ou entregar os insumos para a criação dos frangos nas granjas. São basicamente caminhões em qualquer parte do planeta.
A matriz de transportes brasileira é excessivamente dependente de caminhões nos grandes troncos de escoamento e nas grandes distâncias. Isso cobra um preço em termos de eficiência econômica, mas não torna o consumidor brasileiro mais vulnerável a paralisações.
Na verdade, se essas operações fossem mais concentradas em ferrovias e hidrovias, seria muito mais fácil meia dúzia de sindicatos pararem o Brasil. Trens e navios são poucos e trafegam por poucas vias. Coordenar centenas de milhares de caminhoneiros pelas vias capilarizadas deste país continental é bem mais difícil.
 Floresce no Brasil uma espécie de anarquismo de direita.
Há pouca coordenação nessa revolta, que se alimenta do clamor difuso e mal fundamentado pelo restabelecimento de um ideal de ordem e hierarquia. Mas essa restauração só viria pela destruição violenta e súbita de todos os que estão aí exercendo postos de poder.
Não se engane, leitor moderado de centro-esquerda ou centro-direita, este é um movimento da direita autêntica, talvez o maior da história do Brasil urbano e democrático. A leitura apressada do quadro pode levar a atitudes equivocadas como a dos petroleiros, que anunciam uma greve supondo-a favorável ao petismo. Estão apenas colocando azeitona na empada dos brucutus.
Os anarquistas anticapitalistas do passado cultivavam a ideia de que uma greve geral revolucionária, com adesão absoluta, derrubaria o sistema num só golpe. Eis que o seu negativo de direita, no Brasil mal instruído do século 21, aparece aboletado na cabine de um caminhão.
 Este presidencialismo e a irresponsabilidade dos poderosos têm-nos custado muito.
Governos fracos, estabelece uma regra universal, são presas doces para grupos que saqueiam as rendas da maioria desorganizada. No contexto brasileiro desde junho de 2013, o presidencialismo, ao dificultar a reciclagem nas urnas de lideranças tornadas inertes, tem exposto carcaças de mandatários aos predadores por tempo demasiado.
Não é razão suficiente para trocar o regime pelo parlamentarismo, por exemplo. Uma transição desse tipo acarretaria mudanças tectônicas talvez contraproducentes. Mas é preciso debater mecanismos que facilitem a resolução democrática de impasses, incluindo na equação o voto popular. As raízes fiscais da instabilidade política são profundas e estão se fortalecendo. Precisamos nos preparar para no mínimo mais uma década de fortes emoções.
A despeito disso, ajudaria se as autoridades evitassem o cinismo e cumprissem o seu papel. Em junho do ano passado, o Tribunal Superior Eleitoral fechou os olhos diante de toneladas de provas de abuso do poder econômico nas eleições de 2014. Manteve o cadáver de Temer no Planalto, a alimentar as hienas.
Ainda longe do cataclismo, a sociedade tem capacidade quase infinita de se adaptar às restrições enquanto combate os chantagistas.
A partir de 5 de setembro de 1940 e por praticamente 76 noites consecutivas, Londres foi maciçamente bombardeada pela Força Aérea alemã. Foi a consequência da opção do premiê Winston Churchill por combater Hitler, em vez de tentar selar um armistício com o ditador.
Os londrinos se adaptaram à rotina dos massacres aéreos não como ato de resignação diante de um destino cruel e inevitável. Aceitaram pagar esse custo altíssimo em nome da luta contra a tirania e a opressão. Deu certo, e a virtude demonstrada pelos britânicos não seria menor em caso de derrota.
O exemplo extremo, muito distante do nosso aqui, serve para nos lembrar de duas coisas: é imensa a capacidade de adaptação das sociedades em situação de cerco; privar-se de bens e serviços habituais pode mobilizar a população contra aqueles que a estão fazendo sofrer.
Caminhoneiros e empresários de transporte adotaram a via dos piratas e dos saqueadores do passado. Sitiam cidades e estrangulam o fornecimento de bens essenciais. Provocam sofrimento em dezenas de milhões de pessoas para arrancar delas mesmas, por meio do resgate bilionário chancelado pelo governo, a solução para seus problemas.
Se você gosta disso, se simpatiza com os meios empregados pelos bucaneiros sobre rodas, então está flertando com a tirania. Bate palmas para a lógica do torturador. Você não gosta da democracia.
Se você, como eu, detesta truculência e chantagem, então talvez devesse exigir de seus representantes que resistam às investidas do protofascismo.
É uma luta vã, em larga medida. Não temos Churchill. Nossas tristes lideranças, os chefes do Planalto, da Câmara e do Senado, já entregaram tudo para os alemães. E os alemães, como todos os tiranetes sádicos, ainda não ficaram satisfeitos.
Vinicius Mota
É secretário de Redação. Foi editor de 'Opinião' e de 'Mundo'.

Herança maldita, dependência da matriz rodoviária criou armadilha para o país, Leão Serva,FSP (definitivo)

O sofrimento causado pelos caminhoneiros à sociedade não seria o mesmo se não vivêssemos na mais absoluta dependência da matriz rodoviária para o transporte de gente e de cargas. Nem mesmo os EUA, que nos “venderam” a obsessão pelos automóveis, têm proporção tão grande de transportes por caminhões.
O Brasil move 60% de suas cargas por rodovias, 20% em trens e 15% por hidrovias ou portos; nos EUA, os trens levam cerca de 42%, os caminhões, 32%, e os barcos, 25%, segundo a CNT (Confederação Nacional dos Transportes). A coisa é ainda mais grave em São Paulo: a Federação das Indústrias do Estado aponta que aqui há um quase monopólio: 93% das cargas são transportadas por rodovias.
Essa é a herança maldita que recebemos do início do século 20, quando Washington Luís (1869-1957), governador de São Paulo, depois presidente da República entre 1926 e 1930, pregava que “governar é abrir estradas”. Até então, seguíamos o modelo europeu, de incentivo às ferrovias.
É mais barato implantar rodovias. Na ferrovia, a estrada e os veículos são parte do investimento; no modelo rodoviário, o Estado ou a construtora privada pagam o leito; os usuários entram com os veículos e combustível.
E assim, com menos dinheiro (por várias décadas, todo ele público), nossos governos espalharam estradas. Até mesmo na Amazônia, com os maiores rios do mundo, o Brasil implanta estradas de rodagem em vez de hidrovias.
Tudo parecia bem até a crise do petróleo, nos anos 1970. Naquele momento, quando o barril pulou de US$ 3 para US$ 30, ficou clara a arapuca em que nos metemos: o Brasil não tinha alternativa ao transporte rodoviário, não pôde escapar dos gastos com óleo e quase quebrou. Desde então, outras crises aconteceram. E há sempre alguém lembrando o óbvio, que deveríamos ter apostado mais em ferrovias e hidrovias.
Mas todas as altas de petróleo provocam crises econômicas (ainda mais pesadas no Brasil), em que Estado e empresas ficam sem capacidade de realizar investimentos necessários para construir alternativas. Empurramos o problema com soluções imediatistas, como agora, e seguimos rodando, até a próxima crise.
Leão Serva
Ex-secretário de Redação da Folha, é jornalista, escritor e coautor de 'Como Viver em SP sem Carro'.