Os povos precisam de informações e entendimento para evitar enganos
NORMAN GALL*
28 Abril 2017 | 03h00
Iniciei minha vida de jornalista aos 15 anos, como cronista de esportes escolares no semanário de bairro, Bronx Press Review, já extinto, e contribuindo com matérias para o grande jornal New York Herald Tribune, também extinto. Continuei minha carreira nascente como copy boy (peão de redação) nos turnos de madrugada, da 1 às 8 horas, no New York Post e no New York Journal-American, este também extinto, cujo único benefício era apreciar a beleza do nascer do sol entre as torres de Manhattan.
Na procura de meu primeiro emprego de repórter, em 1958, comprei um carro velho por US$ 150 para uma romaria entre as redações nos povoados do vale do Rio Connecticut, até achar trabalho no pequeno Brattleboro Reformer, em Vermont, Estado fronteiriço com Canadá. Por coincidência, estava sendo realizado lá perto o Marlboro Music Festival, com artistas venerados, como Pablo Casals e Rudolf Serkin. Com cara de pau, tornei-me crítico dos concertos para o jornal local e para o Christian Science Monitor, com base na minha vasta experiência vendendo discos clássicos numa loja de Manhattan. A direção do festival ofendeu-se com minhas críticas e pediu ao Monitor que eu não voltasse, mas o editor de cultura gostou dos artigos e respondeu que eu voltaria, sim, a criticar os concertos, um apoio que me comove até hoje, com meus 83 anos.
Tive sorte. Trabalhei na campanha eleitoral do presidente John F. Kennedy, em 1960, ajudando no registro de eleitores porto-riquenhos em Nova York. Viajei logo para Porto Rico e recebi convite para trabalhar como repórter no novo jornal San Juan Star, começando na véspera do assassinato do ditador Rafael Trujillo (1930-1961), na República Dominicana. Desde aquela época percorro os sertões e as metrópoles da América Latina, como repórter e como pesquisador, às vezes com cara de pau, até hoje.
No livro The Invention of News, Andrew Pettegree, da Universidade de St. Andrews, na Escócia, traça a evolução do jornalismo desde a invenção da tipo metálico móvel, há cerca de 600 anos, por Johannes Gutenberg. O livro começa com o lançamento no ano de 1704, em Londres, de um semanário político sobre notícias da França, fundado por Daniel Defoe, outro jornalista cara de pau, protagonista de falências e prisão por suas dívidas, duas décadas antes de tornar-se famoso com a publicação de seu romance Robinson Crusoé.
Pettegree vai mais fundo, traçando a evolução do negócio das notícias juntamente com as redes de comunicação modeladas no sistema postal do Império Romano. O jornalismo moderno apareceu só nas últimas décadas do século 19, quando a Revolução Industrial facilitou a concentração dos povos nas cidades, com grandes inovações em comunicação, logística e sanidade. No entanto, segundo Pettegree, “a Idade do Jornal parece fugaz, em vez de ser a ordem natural das coisas. Ainda menos parece o jornal, como seus admiradores pretendiam, como instrumento de acesso ao poder e emancipação que representou a culminação do processo civilizador”.
Hoje os jornais estão lutando pela sobrevivência, com medo e, às vezes, com garra e criatividade. O avanço da informática quebrou seu antigo modelo de negócios, tanto nas notícias como na publicidade, especialmente com a perda dos anúncios classificados, antes uma vaca de dinheiro, para os serviços mais ágeis e abrangentes da internet. Os grandes jornais furam os padrões tradicionais de circulação. O New York Times, com a maioria de seus leitores acessando-o por smartphone, aposta em expandir e aprofundar sua cobertura com grandes reportagens, apesar dos cortes em sua redação. O Washington Post parecia estar sofrendo sua agonia final quando foi comprado por Jeff Bezos, empresário da Amazon, que injetou dinheiro no jornal, contratou mais repórteres e melhorou sua cobertura tanto no meio físico como no eletrônico.
A sustentação do escândalo de Lava Jato no Brasil depende de um pequeno grupo de promotores e juízes e da Polícia Federal, cujas ações são divulgadas basicamente por quatro jornais em São Paulo e no Rio de Janeiro, pelas revistas semanais e pelo Jornal Nacional, da TV Globo, inspirando indignação na população. Não sabemos por quanto tempo essa indignação se sustentará e quais seriam suas consequências. O que sabemos é que a imprensa escrita ficou fragilizada financeiramente, perdendo assinantes e capacidade de ação, com grandes avarias nas redações. A polarização causada pela chegada de Donald Trump à Presidência dos EUA deu nova vida aos grandes jornais e noticiários americanos, tanto em assistência como em faturamento.
Na capa de seu livro, Pettegree adverte: “As notícias precisam de ser atuais e merecer confiança”. Os povos precisam de informações e entendimento para evitar enganos e besteiras. Como seria o Brasil no futuro, com corrupção endêmica e políticas públicas pifadas, sem a vigilância oportuna de uma imprensa que serve como pilar da democracia? A imprensa moderna se organiza como uma indústria complexa, integrando redação, impressão, publicidade e distribuição física, com custos fixos que inibem sua concorrência na feira livre da internet contra sites que incorrem numa pequeníssima parcela desses custos, enquanto dependem do jornalismo impresso como fonte primária das notícias. A internet também esvazia outros canais de distribuição física, provocando encolhimento de lojas e centros comerciais.
A sociedade complexa precisa de um referencial confiável de fatos, com investigação e reportagem original, detalhada e persistente, às vezes com cara de pau, que as emissoras de TV e de rádio se mostram incapazes de realizar. Nossa sociedade precisa também ser uma âncora para a memória institucional, dando aos cidadãos uma base na realidade como alternativa à espuma de notícias falsas que prolifera na internet. O custo da incapacidade de preservar a integridade das informações seria muito caro.
* NORMAN GALL DIRIGE O INSTITUTO FERNAND BRAUDEL DE ECONOMIA MUNDIAL EM SÃO PAULO