domingo, 25 de outubro de 2015

Barreiras ao crescimento, por Amir Khair, Estadão


Amir Khair
01 Março 2015 | 02h 05
A atual política econômica passou ao largo da questão do crescimento econômico para pôr o foco na questão fiscal com compromisso em atingir 1,2% do PIB no resultado primário (receitas menos despesas exclusive juros) neste ano e acima de 2% do PIB nos dois anos seguintes.
Este compromisso consta da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2015. Mas a LDO apresenta, também, outras variáveis macroeconômicas que são metas a serem atingidas pelo governo. Entre elas a relativa ao crescimento econômico cujas metas estabelecidas pela nova equipe econômica foram de crescimento de 0,8% neste ano, 2,0% em 2016 e 2,3% em 2017. Assim, nos primeiros três anos da nova política econômica o País teria um crescimento médio anual de 1,7%. É muito pouco se comparado a média para o mesmo período dos países emergentes (4%) e mundo (3%), e também, face ao histórico do País dos últimos 15 anos (2000 a 2014) que foi de 3,1%.
Para este ano, a previsão da LDO de 0,8% de crescimento parece otimista face às previsões de crescimento constante do Boletim Focus do mercado financeiro, que prevê retração de 0,5% e tendência a piorar mais.
Caso nada se faça, o cenário futuro é preocupante. Baixo crescimento é prenúncio de elevação do desemprego e consequente tensão social e política. Mas, o que pode ser feito para retomar o crescimento ocorrido no período 2004/2010 de 4,4% anual? Vejamos.
Barreiras - Ao invés de criar novos estímulos tributários como fez no passado o governo é melhor retirar as barreiras ao crescimento. São tantas e tão potentes que é difícil explicar porque o País já cresceu no passado. Refiro-me às barreiras ao consumo e ao investimento. Ei-las.
Barreiras ao consumo: a) taxas de juros do sistema financeiro; b) má distribuição de renda; c) regressividade tributária; d) alto custo de vida para atividades essenciais; e) baixo valor dos programas de renda.
Barreiras ao investimento: a) baixo crescimento; b) Selic elevada; c) taxas de juros para as empresas; d) alta carga tributária; e) câmbio apreciado; f) excesso burocrático; g) mudanças frequentes de regras e; h) falta de plano estratégico ao País.
Neste artigo vamos analisar e propor medidas para a retirada de barreiras ao consumo e no próximo pretendo tratar das barreiras ao investimento.
Taxa de juros ao consumo - Segundo a Associação Nacional dos Executivos de Finanças Administração e Contabilidade (Anefac), essas taxas nos últimos quatro anos foram em média de 103% ao ano e atualmente estão em 108%, comparada com cerca de 10% na média dos países emergentes e 3% nos países desenvolvidos. Assim, quem compra no crediário paga mais do dobro (!) na aquisição de um bem. Esse é o maior freio ao crescimento.
Para reduzir essas taxas é necessário estimular a competição bancária. Para isso, torna-se necessário reduzir seus ganhos com operações de tesouraria (aplicações em títulos do governo) posicionando a Selic ao nível da inflação e reduzir e tabelar as tarifas bancárias. Ao restringir esses ganhos anormais, os bancos são obrigados a disputar o mercado de crédito com maior intensidade e, ampliando a competição, caem pela ação do mercado essas taxas de juros. É assim que funciona nas economias dinâmicas.
Má distribuição de renda - A massa de recursos que se dirige ao consumo depende da renda disponível das famílias. Essa renda quando concentrada em mãos de poucos freia o consumo.
Segundo o IBGE, em 1981 a metade da população mais pobre detinha 13,1% da renda e os 10% mais ricos detinham 53 vezes mais renda que os 10% mais pobres. Em 2002 a distribuição piorou um pouco: os indicadores foram respectivamente 13,0% e 60 vezes.
A partir de 2003 começou alguma melhora nessa distribuição e em 2013 esses indicadores passaram respectivamente a 16,4% e 43 vezes. É uma evolução modesta, mas se continuar progredindo, serão milhões de novos consumidores a participar do mercado.
Para mudar isso leva tempo e envolve melhorar a educação e ampliar programas de renda (ver adiante).
Regressividade tributária - O sistema tributário se caracteriza por priorizar a tributação sobre o consumo em contraposição à tributação sobre a renda e patrimônio. Cerca da metade da carga tributária é sobre o consumo, 10% sobre a renda e 3% sobre o patrimônio. Nessa carga sobre o consumo metade é devida ao imposto estadual ICMS, que tem alíquotas elevadas.
Qualquer tentativa de reduzir a regressividade tributária não passa no Congresso ou nas assembleias legislativas por contrariar interesses dos parlamentares. Na União é o caso da alíquota máxima de 27,5% sobre os rendimentos no imposto de renda, talvez a mais baixa do mundo, e a não regulamentação do Imposto sobre as Grandes Fortunas (IGF) previsto na Constituição. No caso dos Estados é a alíquota de 4% sobre a herança, a mais baixa do mundo. A remoção dessa barreira ao crescimento é talvez a mais difícil de ocorrer e pressupõe maior conscientização da sociedade dos males causados pela regressividade. Fato é que essa forte tributação sobre o consumo torna os preços mais caros em cerca de 40%.
Alto custo de vida para atividades essenciais - A maior parte da renda das pessoas é consumida em atividades essenciais como alimentação, transporte, saúde, educação e habitação e, quanto menor a renda, mais peso no orçamento doméstico tem essas atividades. Para cada uma delas existem políticas públicas conhecidas, mas insuficientemente aplicadas que poderiam reduzir os custos dessas atividades. Um exemplo é o abastecimento de gêneros alimentícios, onde as prefeituras podem aproximar o produtor no campo ao consumidor na cidade, o que traz maior ganho ao produtor e menor despesa ao comprador ao reduzir a intermediação onerosa da cadeia de atravessadores. Ao reduzir custos das atividades essenciais, o orçamento doméstico fica mais folgado para uso em consumo, lazer ou poupança. Há muito por fazer removendo parte dessa barreira.
Baixo valor dos programas de renda - A partir do governo Lula foram substancialmente ampliados os programas sociais. Apesar disso, o principal programa do governo, o Bolsa Família, custou no ano passado R$ 25 bilhões, que foi dez vezes menor do que as despesas com juros que atingiram R$ 251 bilhões. O valor transferido à base da pirâmide social volta praticamente todo para o consumo, ativando o comércio e a produção. Ao reduzir as despesas com juros abre-se espaço para aumentar programas de renda, sem afetar o equilíbrio fiscal.
Essas diversas barreiras que atravancam o crescimento podem ser assemelhadas a uma sala onde os móveis estão fora de lugar atrapalhando a circulação. Colocá-los no lugar além de melhorar a circulação cria ambiente agradável de convívio. A retirada das barreiras tem impacto não só no crescimento, mas no bem estar geral da população. E, além de tudo, o governo não precisa de novas leis para isso, podendo trabalhar sem depender de barganhas com o Congresso.
Caso não retire essas barreiras, nem o crescimento medíocre de 1,7% anual nos próximos três anos previstos na LDO irá ocorrer. Portanto, urge retirá-las.

Silêncio eloquente, Audálio Dantas, Aliás OESP


Esperava-se uma Praça da Sé tinta de sangue no culto ecumênico pela morte de Vlado. Mas ali a ditadura começava a cair

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No fim da tarde de 31 de outubro de 1975, uma sexta-feira, eu olhava, do alto da escadaria da Catedral da Sé, o que restava de movimento na imensa praça, a principal da cidade de São Paulo. Fazia poucos minutos que terminara o culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog, morto uma semana antes sob tortura, numa dependência do II Exército. Quem não soubesse o que ocorrera ali instantes antes, com a participação de uma multidão de 8.000 pessoas, não podia entender a calma que reinava no grande espaço da praça, que àquela hora poderia estar tinto de sangue.
Os últimos participantes do ato ecumênico iam saindo da praça, em pequenos e silenciosos grupos. Lembravam grupos familiares que acabavam de assistir à missa de uma tarde de domingo. Na verdade, acabavam de participar de um acontecimento que marcaria a história recente do País. A catedral tornara-se pequena para conter a multidão, que transbordou de seus limites e avançou pela praça, ocupando as escadarias e o espaço que se estende até o monumento do marco zero da cidade. Oito mil pessoas - indignadas, mas silenciosas - protestavam contra o assassinato de Herzog, na maior manifestação de massa ocorrida desde a imposição do Ato Institucional nº. 5, em 1968, pela ditadura.
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Além dos últimos participantes do culto que se retiravam, também deixavam a praça os últimos dos quinhentos policiais que a ocuparam, com ordens de atirar caso qualquer movimento extrapolasse o ato religioso. Alguns dos policiais carregavam desajeitadamente metralhadoras, como se estivessem em retirada de uma guerra que não chegou a acontecer. A retirada contrariava a previsão sinistra de uma autoridade: a de que, naquela tarde, poderia ocorrer um banho de sangue.
A informação de que a manifestação se encerrara sem incidentes chegou à sacristia da catedral, onde ainda se encontravam o cardeal de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, e os outros celebrantes do culto ecumênico: o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Wright. Além deles, o cardeal arcebispo de Olinda e Recife, d. Helder Câmara, que permanecera no altar durante toda a celebração, em silêncio. A ditadura militar proibira a simples menção de seu nome pelos veículos de comunicação. Aos generais não bastava proibir ideias.
Na condição de presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, que tinha denunciado o assassinato de Herzog e propusera a realização do culto, eu tinha sido o último orador da celebração. A tensão que dominava a catedral e a praça estava em mim, como estava em cada pessoa que participava do ato. Tinha sido extremamente difícil, para mim, articular algumas palavras. As que consegui dizer pareciam arrancadas das entranhas.
Na sacristia, d. Helder mantinha-se em silêncio, como durante a celebração. Perguntei-lhe sobre a razão de não ter dito algumas palavras no final do culto. Sua resposta sintetizou o grande momento que a cidade e o país viviam: 
- Há momentos, meu filho, em que o silêncio diz tudo.
A essas palavras d. Helder acrescentou, serenamente:
- A ditadura começou a cair hoje.
O tempo se encarregaria de demonstrar que ele estava certo. 
Dei a um capítulo de meu livro As Duas Guerras de Vlado Herzog (Civilização Brasileira, 2012) o título de “Suspiros de alívio”, no qual registrei o clima de apreensão que tomava conta do país às vésperas da realização do culto ecumênico. As ameaças gritadas por autoridades militares, ou que circulavam nos bastidores, acenavam com a possibilidade de um massacre, caso o ato religioso se transformasse em “provocação” contra o regime. Ficava claro que os militares da ultradireita, que se opunham ao propalado projeto de abertura política do general Geisel, esperavam que na Praça da Sé surgisse o pretexto que justificasse uma intervenção violenta, um banho de sangue que poderia levar a um endurecimento do regime e, principalmente, a uma repressão política mais violenta. Os meios políticos temiam por um retrocesso no anunciado processo de abertura.
A maioria dos veículos de comunicação, que se mantivera “em tempo de espera”, quase em silêncio, compartilhava do mesmo medo. Como os políticos, a mídia suspirou aliviada quando o culto na Sé terminou sem incidentes. Os poucos jornais que vinham repercutindo os acontecimentos que se seguiram ao assassinato de Herzog, como O Estado de S. Paulo, livre da censura desde janeiro de 1975, abriram páginas inteiras. Em manchete de primeira página, o Jornal da Tarde destacava em sua edição de 1º de novembro: 
Tensão, medo. Do alto dos prédios vizinhos, homens do Dops fotografavam a multidão 
Tensão, medo. Do alto dos prédios vizinhos, homens do Dops fotografavam a multidão 
“Às 18 horas de ontem os meios políticos de Brasília já tinham trocado o estado de tensão por um clima de euforia mal contida. As principais lideranças partidárias davam por findas suas ligações telefônicas com São Paulo - que se prolongaram pela manhã e pela tarde - sendo seguramente informadas: o ambiente na cidade permaneceu tranquilo, antes, durante e depois do culto ecumênico pela morte do jornalista Vladimir Herzog, celebrado na Catedral da Sé”. 
A tensão e o medo que dominaram o dia 31 de outubro vinham se multiplicando desde a noite de 27, quando em memorável reunião no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo foi proposta a realização de uma missa em memória de Vlado Herzog. A ideia do culto ecumênico prevaleceu pelo fato de Vlado ser judeu e, assim, a homenagem não ficaria restrita a apenas uma crença religiosa, no caso a católica.
A diretoria do sindicato procurou o cardeal Arns, que imediatamente se dispôs a organizar a celebração. A notícia exasperou os militares do porão. As ameaças começaram a chegar ao sindicato, algumas oficialmente, por militares do comando do II Exército, a maioria anonimamente, em termos assustadores. Numa entrevista, o coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança, ameaçou com uma guerra à subversão, advertindo: “Vamos almoçar os comunistas antes que eles nos jantem”.
As ameaças chegaram aos religiosos que fariam a celebração. O governador Paulo Egydio, considerado aliado do general Geisel, despachou dois secretários de Estado para a casa de d. Paulo Evaristo Arns. Eles portavam um argumento assustador: poderia haver mortes, e o cardeal poderia ser responsável por uma tragédia. Na Congregação Israelita Paulista, a ameaça chegou fardada. Dois oficiais do Exército argumentavam para o rabino Sobel que ele, como estrangeiro, não deveria participar de uma manifestação política, ainda mais por se tratar de provocação comunista.
A presença do presidente da República em São Paulo, desde a véspera do culto ecumênico, colocava uma grande interrogação sobre a trama que se desenrolava nos bastidores. De onde partiriam as tentativas de se impedir a realização do culto ou de evitar que ele assumisse grandes dimensões? Aos torturadores entrincheirados no DOI-Codi do II Exército era evidente que interessava que o ato oferecesse o pretexto para uma repressão violenta contra a subversão comunista. A Geisel e seus aliados interessava a manutenção da ordem que os militares da ultradireita tentavam derrubar. As cartas se embaralhavam. Causava estranheza o fato de o coronel Erasmo Dias, identificado com a chamada linha dura, ser um dos responsáveis pela armação da Operação Gutenberg, que estabeleceu um verdadeiro cerco na cidade, com quase quatrocentas barreiras policiais nas principais vias de acesso ao Centro, a pretexto de fiscalização do trânsito.
A presença de Geisel em São Paulo, oficialmente para participar de inaugurações e de visitas protocolares, tinha na verdade a ver com a agitação reinante entre os militares que contestavam a sua autoridade e o clima de preocupação com a realização do culto ecumênico. Foi durante essa visita que o general-presidente ordenou ao comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Melo, que mandasse instaurar o Inquérito Policial Militar para apurar a morte de Herzog. Era o chefe impondo a sua autoridade. 
No episódio, Geisel não agia como um defensor dos direitos humanos, mas como o militar que se preocupava em preservar a hierarquia. Especulava-se que o presidente fora o último a saber da morte de Herzog. Na tarde de 31 de outubro, quando deveria regressar a Brasília, ele chegou ao Aeroporto de Congonhas, onde deveria embarcar no avião presidencial que o aguardava, mais cedo do que o previsto. Não embarcou imediatamente. Ficou conversando com as autoridades que o acompanhavam até que recebeu a notícia de que o culto ecumênico terminara na Praça da Sé, sem incidentes.
Passados quarenta anos, restam algumas indagações e uma certeza. A certeza: o protesto silencioso do 31 de outubro de 1975 mudou os rumos do Brasil. Mas - eis as indagações - o que teria acontecido se tivesse rumado à Sé uma multidão muito maior do que a das 8 mil pessoas que conseguiram chegar lá naquele dia, a maioria a pé? E se parte dos 8 mil tivesse partido da catedral numa passeata?
*AUDÁLIO DANTAS É JORNALISTA, ESCRITOR,  AUTOR DE AS DUAS GUERRAS DE VLADO HERZOG (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA), PRÊMIO JABUTI DE 2013

Dias de terror, Marco Antonio Rocha , Aliás


"Vlado me pergunta que atitude tomar: ‘Dê o fora para qualquer lugar, com Clarice e as crianças. Na semana que vem você volta’. Ele disse que não tinha nada a esconder. Não era um criminoso


Aquela foi uma semana em que o terrorismo de Estado brasileiro pretendia dar um novo e decisivo passo: o de completar a caçada aos “comunistas da imprensa” - como diriam seus mentores militares, seus beleguins civis, seus empresários bajuladores, seus políticos interesseiros. 
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Inaugurado em 13 de dezembro de 1968, com o AI-5, Ato Institucional n.º 5, e com a apreensão violenta e ilegal de toda a edição do jornal O Estado de S. Paulo, por causa do seu editorial Instituições em Frangalhos, onde se denunciava a formalização da ditadura no Brasil, o regime se aperfeiçoara nas ações militares e policiais, desumanas e alheias à lei, contra as guerrilhas de esquerda, urbanas e rurais, deixando milhares de vítimas nas ruas, nas matas e nos porões da tortura. E legou histórias terríveis que muitos sobreviventes contariam anos depois - inclusive a da presidente Dilma Rousseff.
Vencida a guerrilha, desmanteladas suas organizações, era chegada a fase de intimidar ao máximo as oposições políticas que, embora moderadamente, ainda se manifestavam nos jornais e revistas, pois rádios e TVs eram firmemente controlados pela ditadura. Assim se garantiria para muito mais tempo, se não para sempre, o regime do AI-5, de arbítrio e tirania política. Caso contrário, a ditadura teria mais inimigos firmes a combater e aos poucos seu arbítrio e tirania se enfraqueceriam, como acontece com todas as ditaduras.
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A propaganda ditatorial se encarregara de incutir na opinião pública a ideia de que a guerrilha não era um movimento interno, de oposição ao governo ditatorial. Vinha de fora, tinha inspiração internacional, e se destinava a implantar o comunismo. Era a maneira como o comunismo e seus agentes pretendiam tomar conta do Brasil. Pensavam os estrategistas militares, os policiais da tortura e os políticos aproveitadores do regime que a opinião pública apoiaria a caçada aos “comunistas da imprensa, inimigos do Brasil”. Facilitava a tarefa de “limpeza” que tinham em mente e silenciava muitos jornalistas que não sendo nem comunistas nem de esquerda também não aprovavam o regime do AI-5. A deposição e morte do presidente Salvador Allende, no Chile, dois anos antes, e o golpe vitorioso do general Augusto Pinochet estimulavam a direita brasileira a não temer reações adversas das comunidades democráticas internacionais.
Esse era o ambiente pesado na semana de 20 a 24 de outubro de 1975 e que culminaria no sábado, 25, com a tortura e o assassinato do nosso competente colega, meu especial amigo, escritor, desenhista e cineasta, cujas potencialidades estavam apenas emergindo, Vladimir Herzog, Vlado como era seu nome na família e na Iugoslávia, onde nascera na região que hoje é a Croácia.
Eram seis horas da manhã de sexta-feira, 24 de outubro de 1975. Toca o telefone. Minha mulher, Olinda, atende. Fala baixo um ou dois minutos. Volta para o quarto com o olhar aflito: “Marco, levaram o Konder. Era a Yara no telefone”. Era também o aviso que eu previa.
Levanto da cama meio sonado e dou início ao plano que havia preparado.
A caçada aos “comunistas” da imprensa se acelerava. Vários colegas estavam presos desde a semana anterior. Antes, na terça-feira, ou quarta, não lembro direito, num jantar na casa do cônsul da Inglaterra em São Paulo, encontro o Vlado e o Rodolfo Konder - colegas meus na revista Visão, e o Vlado, também na TV Cultura, onde eu mesmo era comentarista econômico no programa Hora da Notícia, que o Vlado editava, apresentado pelo âncora Nemércio Nogueira. O cônsul se despedia do posto e voltaria em breve para o seu país. Eu e o Konder estivéramos na Inglaterra, em maio, a convite do governo inglês, numa viagem de 15 dias que incluiu Londres e Edimburgo, na Escócia. Vlado morara na Inglaterra e havia trabalhado na BBC de Londres, assim como Fernando Pacheco Jordão, então diretor de jornalismo da Cultura, cuja filha, Bia, dele e da esposa Fátima, nascera na Inglaterra. Essas nossas ligações com a Inglaterra justificavam o convite para o jantar.
Na saída, já na rua, Clarice Herzog, mulher do Vlado, me pede para ir com eles até o carro, estacionado logo abaixo. Entramos, eu no banco de trás, Vlado, que não sabia guiar, no de passageiro, Clarice na direção. Os dois disseram que na segunda-feira anterior o Paulo Markun, preso havia já uns 15 dias no DOI-Codi, fora liberado para ir ao batizado da sua filhinha Anna, recém nascida. Markun era casado com a Diléa (então Markun, hoje Frate), que também estava presa no DOI-Codi. Na Igreja, Markun passou um recado para nós: seríamos presos no fim de semana, principalmente o Vlado. Era o que ouvira dizer naquele porão de torturas. Seríamos presos porque, segundo os malfeitores daquela seita, éramos da “célula do Vlado”. Célula era o apelido, na época, de grupos de comunistas que se reuniam.
Vlado me pergunta que atitude tomar: “Dê o fora” - respondi - “para qualquer lugar, com Clarice e as crianças. Na semana que vem você volta”. 
Vlado argumentou que não tinha medo porque não tinha nada a esconder. Não era um criminoso. “E, além disso, de que adianta? Na semana que vem me prendem do mesmo jeito.”
Ponderei que passado o fim de semana seria politicamente difícil, para a ditadura, prender jornalistas brasileiros, pois estariam presentes no Rio de Janeiro cerca de 400 jornalistas estrangeiros, cobrindo uma convenção internacional dos agentes de viagem. Eles espalhariam para o mundo inteiro qualquer notícia de prisões de jornalistas brasileiros. A ditadura tinha que se conter. Foi o que eu disse ao Vlado, na tentativa de aconselhá-lo a se esconder. E foi como nos despedimos naquela noite.

Dupla perseguição. Ele fugiu do nazismo e acabou assassinado pelos ‘SS’ do DOI-Codi
Dupla perseguição. Ele fugiu do nazismo e acabou assassinado pelos ‘SS’ do DOI-Codi

Em São Paulo, o DOI-Codi era o porrete do terrorismo de Estado. Dirigido por figuras bárbaras e obedientes como oficiais da SS nazista, a exemplo do delegado Sérgio Paranhos Fleury, transformado em herói da ditadura por ter matado o guerrilheiro Carlos Marighella numa emboscada, à queima-roupa, sem lhe dar voz de prisão; o recém-falecido coronel Brilhante Ustra (na época, major) chefe dos torturadores da Rua Tutoia; e, acima de todos, pelo conspirador sedicioso, general Ednardo D’Ávila Mello, que pretendia derrubar o então presidente general Ernesto Geisel, tido por ele como “molenga” no combate ao Grande Satã, que era o comunismo internacional no Brasil. 
Ao me recompor, na madrugada daquela sexta-feira, depois do telefonema da Yara, pedi à Olinda que preparasse as crianças, fechasse a casa, tomasse um táxi e fosse me encontrar na loja de pneus DPaschoal na Rua Clélia - era esse o plano e o código. Dali partimos para a fazenda da minha sogra no interior. Não tivemos notícia nenhuma na sexta-feira. 
No sábado pela manhã ouvimos pelo rádio a notícia de que Vladimir Herzog tinha se “suicidado” nas dependências do DOI-Codi e as “autoridades” do II Exército estavam à procura dos “comunistas” da “célula” dele, mencionados na notícia do rádio. Acho que foi a primeira vez na minha vida adulta que chorei de fato, e muito, já aos 39 anos de idade. Não apenas pela perda do amigo fraterno, gentil e franzino e do grande jornalista. Mas pela trágica ironia. Menino judeu, Vlado fugira para a Itália, com a família, durante a guerra, para escapar da ferocidade nazista na Croácia onde nascera. Era um ano mais novo que eu. Quando a guerra terminou eu tinha 9 anos, Vlado 8. Contou-me uma imagem do final da guerra quando, na estrada perto da aldeia, viu um batalhão das SS alemãs que se retirava. Pois, na vida adulta, foi barbaramente seviciado e assassinado pelos “SS” do DOI-Codi em São Paulo.
Na lista da célula, divulgada pelo rádio, estava o meu nome. Pensei que teria dois caminhos: 1) retornar a São Paulo para enfrentar o que houvesse; 2) ir para Brasília e pedir asilo político na embaixada da Iugoslávia que, naqueles dias, abrigava refugiados brasileiros e que, a partir de 1990, se desintegraria como nação numa medonha e destruidora guerra civil.
No domingo telefonei para o Dr. Ruy Mesquita, meu patrão no Jornal da Tarde. Falei que iria para a embaixada da Iugoslávia. Ele respondeu quase como numa ordem: “Nada disso. Venha para São Paulo e para o jornal. E fique no jornal. Não vá para sua casa”. Foi o que fizemos. Eu e minha mulher. Meus filhos, Alexandre e Julia, ainda pequenos, 7 e 3 anos, ficaram com os avós. No jornal, Ruy Mesquita me disse que naquela noite eu dormiria na casa dele. Telefonou para o ministro da Justiça de então, Armando Falcão, e disse que “o repórter que vocês estão procurando está aqui na minha frente, se você quiser, mande uma patrulha invadir o jornal para prendê-lo”. Armando Falcão disse que mais tarde voltaria a ligar. Ligou para dizer que eu deveria me apresentar no dia seguinte - segunda-feira, 27 de outubro de 1975 - ao comando do II Exército. 
Assim fiz, acompanhado do próprio Ruy Mesquita, do Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas, até hoje meu grande amigo, de minha mulher, Olinda Malmegrin Rocha, que muito mais tarde, alcançada pela Doença de Alzheimer, faleceria em 2012, com 70 anos. Sou casado hoje com Ana Luisa Trigo, jornalista como eu. Fomos recebidos pelo general Ferreira Marques, a quem Ruy Mesquita disse o seguinte (lembro até hoje): “General, viemos entregar o meu repórter que vocês estão procurando. Diante de mim e do meu jornal, a partir deste momento, consideraremos o senhor pessoalmente responsável pelo que vier a acontecer com ele”. A “visita” foi encerrada em clima tenso, com o general dizendo que estávamos diante de um oficial do Exército cuja palavra e civilidade pairavam acima de qualquer julgamento. Ali fiquei, para uma semana de depoimentos sobre minha vida inteira. E dali ouvia as repercussões políticas e cívicas da histórica missa ecumênica convocada pelo cardeal Arns.
Mal previa eu, naquele fusca dos Herzog, após o jantar do cônsul, que os 400 jornalistas estrangeiros presentes no Rio dariam ao mundo notícia muito mais grave do que prisões de colegas brasileiros - a do assassinato de Vladimir Herzog - e muito mais dolorosa para nós todos. No dia 31 de outubro, após a missa na Praça da Sé, cujo profundo silêncio repercutiu no mundo inteiro, teria início a caminhada histórica que livrou o Brasil, para sempre, do terrorismo e da intolerância de Estado. Mas que ainda teria tempo de mais um assassinato: o do Manuel Fiel Filho, três meses depois, e nas mesmas condições da morte do Vlado Herzog.
*MARCO ANTONIO ROCHA É JORNALISTA