AUDÁLIO DANTAS - O ESTADO DE S. PAULO
24 Outubro 2015 | 16h 00
Esperava-se uma Praça da Sé tinta de sangue no culto ecumênico pela morte de Vlado. Mas ali a ditadura começava a cair
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No fim da tarde de 31 de outubro de 1975, uma sexta-feira, eu olhava, do alto da escadaria da Catedral da Sé, o que restava de movimento na imensa praça, a principal da cidade de São Paulo. Fazia poucos minutos que terminara o culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog, morto uma semana antes sob tortura, numa dependência do II Exército. Quem não soubesse o que ocorrera ali instantes antes, com a participação de uma multidão de 8.000 pessoas, não podia entender a calma que reinava no grande espaço da praça, que àquela hora poderia estar tinto de sangue.
Os últimos participantes do ato ecumênico iam saindo da praça, em pequenos e silenciosos grupos. Lembravam grupos familiares que acabavam de assistir à missa de uma tarde de domingo. Na verdade, acabavam de participar de um acontecimento que marcaria a história recente do País. A catedral tornara-se pequena para conter a multidão, que transbordou de seus limites e avançou pela praça, ocupando as escadarias e o espaço que se estende até o monumento do marco zero da cidade. Oito mil pessoas - indignadas, mas silenciosas - protestavam contra o assassinato de Herzog, na maior manifestação de massa ocorrida desde a imposição do Ato Institucional nº. 5, em 1968, pela ditadura.
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Além dos últimos participantes do culto que se retiravam, também deixavam a praça os últimos dos quinhentos policiais que a ocuparam, com ordens de atirar caso qualquer movimento extrapolasse o ato religioso. Alguns dos policiais carregavam desajeitadamente metralhadoras, como se estivessem em retirada de uma guerra que não chegou a acontecer. A retirada contrariava a previsão sinistra de uma autoridade: a de que, naquela tarde, poderia ocorrer um banho de sangue.
A informação de que a manifestação se encerrara sem incidentes chegou à sacristia da catedral, onde ainda se encontravam o cardeal de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, e os outros celebrantes do culto ecumênico: o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Wright. Além deles, o cardeal arcebispo de Olinda e Recife, d. Helder Câmara, que permanecera no altar durante toda a celebração, em silêncio. A ditadura militar proibira a simples menção de seu nome pelos veículos de comunicação. Aos generais não bastava proibir ideias.
Na condição de presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, que tinha denunciado o assassinato de Herzog e propusera a realização do culto, eu tinha sido o último orador da celebração. A tensão que dominava a catedral e a praça estava em mim, como estava em cada pessoa que participava do ato. Tinha sido extremamente difícil, para mim, articular algumas palavras. As que consegui dizer pareciam arrancadas das entranhas.
Na sacristia, d. Helder mantinha-se em silêncio, como durante a celebração. Perguntei-lhe sobre a razão de não ter dito algumas palavras no final do culto. Sua resposta sintetizou o grande momento que a cidade e o país viviam:
- Há momentos, meu filho, em que o silêncio diz tudo.
A essas palavras d. Helder acrescentou, serenamente:
- A ditadura começou a cair hoje.
O tempo se encarregaria de demonstrar que ele estava certo.
Dei a um capítulo de meu livro As Duas Guerras de Vlado Herzog (Civilização Brasileira, 2012) o título de “Suspiros de alívio”, no qual registrei o clima de apreensão que tomava conta do país às vésperas da realização do culto ecumênico. As ameaças gritadas por autoridades militares, ou que circulavam nos bastidores, acenavam com a possibilidade de um massacre, caso o ato religioso se transformasse em “provocação” contra o regime. Ficava claro que os militares da ultradireita, que se opunham ao propalado projeto de abertura política do general Geisel, esperavam que na Praça da Sé surgisse o pretexto que justificasse uma intervenção violenta, um banho de sangue que poderia levar a um endurecimento do regime e, principalmente, a uma repressão política mais violenta. Os meios políticos temiam por um retrocesso no anunciado processo de abertura.
A maioria dos veículos de comunicação, que se mantivera “em tempo de espera”, quase em silêncio, compartilhava do mesmo medo. Como os políticos, a mídia suspirou aliviada quando o culto na Sé terminou sem incidentes. Os poucos jornais que vinham repercutindo os acontecimentos que se seguiram ao assassinato de Herzog, como O Estado de S. Paulo, livre da censura desde janeiro de 1975, abriram páginas inteiras. Em manchete de primeira página, o Jornal da Tarde destacava em sua edição de 1º de novembro:
“Às 18 horas de ontem os meios políticos de Brasília já tinham trocado o estado de tensão por um clima de euforia mal contida. As principais lideranças partidárias davam por findas suas ligações telefônicas com São Paulo - que se prolongaram pela manhã e pela tarde - sendo seguramente informadas: o ambiente na cidade permaneceu tranquilo, antes, durante e depois do culto ecumênico pela morte do jornalista Vladimir Herzog, celebrado na Catedral da Sé”.
A tensão e o medo que dominaram o dia 31 de outubro vinham se multiplicando desde a noite de 27, quando em memorável reunião no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo foi proposta a realização de uma missa em memória de Vlado Herzog. A ideia do culto ecumênico prevaleceu pelo fato de Vlado ser judeu e, assim, a homenagem não ficaria restrita a apenas uma crença religiosa, no caso a católica.
A diretoria do sindicato procurou o cardeal Arns, que imediatamente se dispôs a organizar a celebração. A notícia exasperou os militares do porão. As ameaças começaram a chegar ao sindicato, algumas oficialmente, por militares do comando do II Exército, a maioria anonimamente, em termos assustadores. Numa entrevista, o coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança, ameaçou com uma guerra à subversão, advertindo: “Vamos almoçar os comunistas antes que eles nos jantem”.
As ameaças chegaram aos religiosos que fariam a celebração. O governador Paulo Egydio, considerado aliado do general Geisel, despachou dois secretários de Estado para a casa de d. Paulo Evaristo Arns. Eles portavam um argumento assustador: poderia haver mortes, e o cardeal poderia ser responsável por uma tragédia. Na Congregação Israelita Paulista, a ameaça chegou fardada. Dois oficiais do Exército argumentavam para o rabino Sobel que ele, como estrangeiro, não deveria participar de uma manifestação política, ainda mais por se tratar de provocação comunista.
A presença do presidente da República em São Paulo, desde a véspera do culto ecumênico, colocava uma grande interrogação sobre a trama que se desenrolava nos bastidores. De onde partiriam as tentativas de se impedir a realização do culto ou de evitar que ele assumisse grandes dimensões? Aos torturadores entrincheirados no DOI-Codi do II Exército era evidente que interessava que o ato oferecesse o pretexto para uma repressão violenta contra a subversão comunista. A Geisel e seus aliados interessava a manutenção da ordem que os militares da ultradireita tentavam derrubar. As cartas se embaralhavam. Causava estranheza o fato de o coronel Erasmo Dias, identificado com a chamada linha dura, ser um dos responsáveis pela armação da Operação Gutenberg, que estabeleceu um verdadeiro cerco na cidade, com quase quatrocentas barreiras policiais nas principais vias de acesso ao Centro, a pretexto de fiscalização do trânsito.
A presença de Geisel em São Paulo, oficialmente para participar de inaugurações e de visitas protocolares, tinha na verdade a ver com a agitação reinante entre os militares que contestavam a sua autoridade e o clima de preocupação com a realização do culto ecumênico. Foi durante essa visita que o general-presidente ordenou ao comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Melo, que mandasse instaurar o Inquérito Policial Militar para apurar a morte de Herzog. Era o chefe impondo a sua autoridade.
No episódio, Geisel não agia como um defensor dos direitos humanos, mas como o militar que se preocupava em preservar a hierarquia. Especulava-se que o presidente fora o último a saber da morte de Herzog. Na tarde de 31 de outubro, quando deveria regressar a Brasília, ele chegou ao Aeroporto de Congonhas, onde deveria embarcar no avião presidencial que o aguardava, mais cedo do que o previsto. Não embarcou imediatamente. Ficou conversando com as autoridades que o acompanhavam até que recebeu a notícia de que o culto ecumênico terminara na Praça da Sé, sem incidentes.
Passados quarenta anos, restam algumas indagações e uma certeza. A certeza: o protesto silencioso do 31 de outubro de 1975 mudou os rumos do Brasil. Mas - eis as indagações - o que teria acontecido se tivesse rumado à Sé uma multidão muito maior do que a das 8 mil pessoas que conseguiram chegar lá naquele dia, a maioria a pé? E se parte dos 8 mil tivesse partido da catedral numa passeata?
*AUDÁLIO DANTAS É JORNALISTA, ESCRITOR, AUTOR DE AS DUAS GUERRAS DE VLADO HERZOG (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA), PRÊMIO JABUTI DE 2013
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