quarta-feira, 11 de junho de 2014

Bravas 'babushkas'

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WENDY GOLDMAN
07 Junho 2014 | 16h 00

Cem anos após a revolução que as libertaria, mulheres russas ainda lutam por direitos

Em 2012, um pequeno grupo de moças pertencentes ao conjunto punk feminista conhecido como Pussy Riot entrou na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou. Usando máscaras e carregando guitarras, elas cantaram “Oração Punk - Mãe de Deus, Livrai-nos de Putin!”. O objetivo da performance era chamar a atenção para o elo entre o presidente russo, Vladimir Putin, e a Igreja Ortodoxa. Com o apoio da igreja, Putin deu vida nova à combinação entre poder estatal repressivo e ortodoxia religiosa que guiou a Rússia no século 19. Como resultado da performance do Pussy Riot, três do grupo foram detidas, acusadas de “vandalismo” e sentenciadas a 2 anos num campo de trabalhos forçados. De acordo com Putin, a banda “sabotou os alicerces morais do país”. Mas quem define a moralidade? O Pussy Riot foi formado para protestar contra restrições cada vez maiores ao aborto e à democracia. Seus membros - anarquistas, trotskistas e feministas - consideram o grupo parte de um movimento global contra a imoralidade do capitalismo global.
As jovens do Pussy Riot são parte de uma antiga tradição feminista revolucionária na Rússia. No início do século 20, as trabalhadoras têxteis russas criaram a primeira organização de massa para defender os próprios interesses. Trabalhadoras pobres já tinham se organizado na Revolução Francesa, mas principalmente em defesa de sua classe, não de seu gênero. A Revolução Russa foi a primeira a incluir as mulheres e seus interesses como parte integral de uma coalizão insurgente. As trabalhadoras ativistas encontraram um público entusiasmado nas fábricas e vilarejos. Convenceram a liderança masculina do Partido Bolchevique a organizar as mulheres, publicar um jornal voltado para elas e criar o Departamento da Mulher (Zhenotdel) dentro do partido. Sua visão da emancipação da mulher se tornou parte da legislação aprovada pelo novo Estado soviético quando esse chegou ao poder, em outubro de 1917.
Trata-se de grandes momentos da história nos quais tudo parece possível: repensar a maneira de estruturar o mundo, a distribuição da riqueza e dos recursos, padrões arraigados de exploração e injustiça e até as relações mais humanas. Esses momentos não ocorrem com frequência, mas, quando ocorrem, trazem um novo e intoxicante sentido de promessa e euforia diante da possibilidade de mudança. Os anos 1920 foram um período de grande fermentação e debate. Os revolucionários tinham ideias para mudar praticamente todos os aspectos da vida. Os camponeses redistribuíram a terra, os trabalhadores assumiram o controle das fábricas. As pessoas debatiam novas ideias sobre política, produção, educação, religião, cultura, arquitetura e direito. Um dos temas mais interessantes dos debates envolvia a recriação da família e a criação das condições para a igualdade das mulheres.
O novo Estado soviético e o Partido Bolchevique tinham uma visão da libertação das mulheres baseada em quatro princípios: liberdade de união, emancipação da mulher por meio da autonomia financeira em relação ao homem, socialização do trabalho doméstico e gradual e inevitável “fenecer” da família enquanto unidade econômica.
Cada um desses elementos tinha uma longa história na tradição revolucionária. A ideia de liberdade de união ou amor livre, por exemplo, originava-se em antigas seitas cristãs. Os bolcheviques acreditavam que os relacionamentos entre parceiros deveriam ter como base o amor, a atração e o respeito mútuo, livres de todas as limitações e dependências econômicas. Ninguém deveria ser obrigado a permanecer num relacionamento no qual o amor não mais existisse. Os bolcheviques não determinaram quanto uma união livre desse tipo deveria durar. Eles reconheceram a possibilidade de durar a vida inteira, muitos anos, alguns dias, ou mesmo horas. Era impossível prever como as relações humanas se desenvolveriam no socialismo. Eles acreditavam que a duração de qualquer relacionamento deveria ser de livre escolha das duas partes envolvidas. O Estado e a Igreja não tinham direito de interferir nas escolhas pessoais dos indivíduos.
Mas, para que ambas as partes fossem livres, elas teriam de ser economicamente independentes. A participação na força de trabalho daria às mulheres independência econômica em relação aos homens, e também as apresentaria a um mundo mais amplo fora do lar. As mulheres não podiam mais se ocupar apenas com o estreito mundo da cozinha, faxina e cuidados com as crianças, tornando-se participantes ativas da esfera pública.
As mulheres, no entanto, se encarregavam de um trabalho essencial (aquilo que Marx chamou de “trabalho reprodutivo”) no lar. Elas cozinhavam, faziam as compras, lavavam as roupas, limpavam a casa e cuidavam das crianças, dos inválidos e dos idosos da família. Esse trabalho era necessário para a vida social, mas não era remunerado. Os bolcheviques acreditavam que, quando as mulheres entrassem para a força de trabalho assalariada, elas deveriam ser dispensadas de tais tarefas por meio da socialização do trabalho doméstico. Os trabalhos não remunerados desempenhados pelas mulheres no lar passariam a fazer parte da economia nacional, assumidos por trabalhadores assalariados. Os refeitórios, creches e lavanderias libertariam as mulheres das tarefas do lar.
Privada de todas as funções econômicas e sociais, a família “feneceria” gradualmente. As crianças seriam sustentadas independentemente de seus pais serem casados ou não. O próprio conceito de ilegitimidade deixaria de existir. As pessoas não precisariam mais se casar. Viveriam juntas ou em separado sem nenhuma consequência social negativa. Não haveria necessidade de regular as relações sexuais com leis religiosas ou do Estado.
Essa visão revolucionária da vida foi o resultado de condições específicas do capitalismo da virada do século. Antes da revolução, as autoridades religiosas controlavam o casamento e o divórcio. De acordo com a lei do país e da Igreja, uma mulher devia obediência completa ao marido. Ela era proibida de trabalhar, estudar, vender e comprar propriedades, não podendo nem mesmo escolher o local de sua residência sem o consentimento do marido. O divórcio era quase impossível de se obter e os filhos ilegítimos não tinham direitos pela lei. Ao mesmo tempo, um número cada vez maior de mulheres entrava na força de trabalho conforme os capitalistas substituíam os trabalhadores pela força de trabalho feminina, mais barata. As operárias trabalhavam seis dias por semana, dez ou mais horas por dia. A mulher de classe trabalhadora não poderia combinar o trabalho assalariado com os cuidados com a família. Dois terços dos filhos das trabalhadoras morriam antes de completarem 2 anos. Os bolcheviques esperavam resolver a contradição criada pelo capitalismo entre o trabalho assalariado das mulheres e as necessidades da família.
Em 1920, a União Soviética se tornou o primeiro país a legalizar o aborto. Ele ficou seguro, gratuito e legal, disponível para as mulheres nos hospitais. Os líderes masculinos em matéria de direito e saúde pública acreditavam que o aborto era um mal criado pelas dificuldades materiais. As mulheres não precisariam de abortos se pudessem contar com creches, emprego em período integral e licença-maternidade, mas, no curto prazo, o aborto seria necessário porque tais condições ainda não existiam. As mulheres, no entanto, tinham uma opinião diferente. Depois que o aborto se tornou legal, mulheres de todas as classes e posições sociais começaram a usá-lo como forma de tomar decisões pessoais em relação ao próprio destino. Para elas, o aborto legal e o controle de natalidade eram essenciais para a emancipação das mulheres. Elas entenderam o aborto não como uma medida de curto prazo e sim como um direito humano básico.
As revolucionárias ideias dos bolcheviques a respeito da família estavam intimamente ligadas a suas ideias sobre o direito. Eles acreditavam que, dentro do socialismo, Estado e lei feneceriam. O Estado, braço armado de uma classe que controla outra, não precisaria exercer o poder coercitivo numa sociedade sem classes. O direito civil, ou a regulação das relações de propriedade burguesas, se tornaria obsoleto. As pessoas não precisariam mais roubar nem matar, e até o direito criminal “feneceria”. Os juristas revolucionários não quiseram criar um poderoso edifício estatal, estimulando em vez disso o fenecimento gradual da família, do Estado e do Direito.
Em 1918, o novo governo socialista apresentou o Código da Família, acabando com séculos de poder patriarcal e religioso. Era o direito da família mais progressista que o mundo já vira. O código estabeleceu o casamento civil em lugar do casamento religioso e criou a igualdade legal entre homens e mulheres. A ilegitimidade foi abolida, conferindo a todos os filhos o direito de receber sustento dos pais. Permitiu o divórcio a pedido de qualquer dos cônjuges; não seria necessário apresentar motivo. Foram estendidos direitos a pensão para homens e mulheres caso fossem inválidos ou pobres. Em 1927, após intenso debate, a lei se tornou ainda mais radical. Um novo Código da Família reconheceu o casamento de facto ou a união estável como equivalentes jurídicos do casamento civil. O novo código também simplificou o procedimento de divórcio. Marido ou mulher poderia receber o divórcio simplesmente mediante o preenchimento de um formulário num cartório. O cônjuge seria informado do divórcio por meio de um cartão postal.
Em pouco tempo a legislação começou a enfrentar graves problemas sociais. Muitos homens se aproveitaram da facilidade do divórcio para se casar e abandonar várias mulheres, deixando todas com filhos. O alto desemprego entre as mulheres nos anos 1920 tornou o divórcio particularmente doloroso. As mulheres enfrentavam dificuldades para obter pensão para si e para os filhos, e algumas foram obrigadas a recorrer à prostituição. Como resultado da 1ª Guerra Mundial, da guerra civil e de uma terrível fome em 1921, havia 7 milhões de crianças sem teto na União Soviética. Viviam nas ruas e sobreviviam roubando e apelando para o crime e a prostituição. O Estado não tinha recursos para cuidar delas. Os camponeses também tiveram problemas com o divórcio. O lar camponês incluía a terra, os animais, as ferramentas e a habitação, tornando quase impossível para as mulheres divorciadas viver com independência no vilarejo. As mulheres começaram a abortar em grande número.
Já em 1930 Josef Stalin conseguiu eliminar tanto a oposição de esquerda quanto de direita dentro do Partido Bolchevique, e o Estado começou a buscar novas soluções para os problemas sociais. O Estado rejeitou a primeira visão socialista para adotar uma nova abordagem repressiva. Na tentativa de tirar as crianças sem teto das ruas e reduzir a criminalidade, foram aprovados castigos mais rigorosos para os crimes cometidos por menores de idade. O divórcio se tornou mais difícil de obter. O famoso “divórcio por cartão postal” foi abolido. Os homens que deixavam de pagar pensão passaram a ser processados criminalmente. E, em 1936, o aborto se tornou ilegal. Líderes do Estado e do partido rejeitaram oficialmente a ideia anterior segundo a qual família, Estado e Direito “feneceriam”. Foi dada nova ênfase à unidade familiar enquanto chave para o controle social. Muitos dos primeiros juristas foram detidos, enviados a campos de trabalho ou executados.
O sonho soviético não fracassou completamente. Nos anos 1930, durante o grande impulso de industrialização, as mulheres ingressaram na força de trabalho. Foram beneficiadas pela educação em massa e pela mobilidade ascendente. O Estado criou centros para cuidar de crianças e refeitórios. Mas o trabalho do lar nunca foi de fato socializado. As mulheres trabalhavam fora de casa e se ocupavam da maior parte do trabalho do lar. Elas assumiram o “duplo fardo”.
A primeira visão bolchevique ainda não foi concretizada: independência econômica para as mulheres, um salário digno que permita às trabalhadoras sustentar a família, emprego em período integral, benefícios de saúde e licença-maternidade e a socialização do trabalho no lar. Em muitos países, as mulheres carecem de acesso a um controle de natalidade seguro e barato e ao aborto legal. A violência contra as mulheres é endêmica, seja nas ruas ou na família. As lições do primeiro experimento soviético são claras. É impossível criar relações mais livres entre homens e mulheres sem o controle de natalidade, aborto legal, emprego em período integral, creches e outras instalações. Hoje, quase cem anos após a Revolução Russa, as mulheres do Pussy Riot e outros grupos ainda estão lutando pelos direitos das mulheres. Seus atos nos lembram de uma antiga canção das tecelãs:
“A liberdade não chega voando como um pássaro / A liberdade não desaba como a chuva de verão / A liberdade é algo conquistado a duras penas / É preciso trabalhar por ela, lutar por ela / Dia e noite, de novo e de novo / E cada geração precisa lutar por ela mais uma vez”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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Wendy Goldman é professora da Universidade Carnegie Mellon e autora de 'A mulher, o Estado e a Revolução' (Boitempo). Escreveu este artigo especialmente para o Aliás

Esguelha ideológica - XICO GRAZIANO


O ESTADO DE S.PAULO - 10/06

O teatro separatista, mais uma vez, repetiu-se no campo. Na primeira cena, o governo anuncia o Plano Agrícola e Pecuário para a "agricultura empresarial". Passado alguns dias, divulga o Plano Safra da "agricultura familiar". Belos discursos, amoldados para cada evento, animam uma trama típica do maniqueísmo político. Um país, duas agriculturas.

O Brasil é a única nação importante do mundo que separa a sua agropecuária em dois lados: o do "agronegócio" e o "familiar". Uma política que deveria reforçar a ação pública em favor dos pequenos produtores no campo, desgraçadamente, serve ao modo de governar que distingue a sociedade entre "nós" e "eles". Ou, pior, entre os "bons" e os "maus". Dividir para reinar, ensinava Maquiavel.

Quem, em 1996, criou o programa de apoio e fortalecimento da agricultura familiar (Pronaf) foi o então presidente Fernando Henrique Cardoso. A ideia inicial era, na prática, resguardar uma fatia dos recursos do crédito rural - sempre abocanhado pelos poderosos do agro -, obrigando sua alocação compulsória aos pequenos produtores rurais. Estes foram definidos como os de área máxima com até quatro módulos fiscais. Havia ainda a destinação de recursos públicos, a fundo perdido, para investimentos na infraestrutura de produção e comercialização de núcleos associativos e cooperativados. Funcionou muito bem.

Essa estratégia de desenvolvimento rural considerava que, pequenos ou grandes, todos os agricultores, independentemente das características da produção, precisam e merecem progredir na vida, incorporando as modernas tecnologias para elevar a produtividade, conquistar qualidade, conseguindo, assim, competir na economia de mercado. Sob esse prisma, qualquer política voltada para o meio rural deve ser integradora. Jamais divisionista.

Ao mudar o governo, de Fernando Henrique Cardoso para Lula, a gestão da agricultura brasileira acabou separada em dois ministérios. A partir de então, o conceito de "agricultura familiar" começou a ser totalmente deformado, passando a significar os "pobres" no campo, em oposição aos "ricos", aglutinados no "agronegócio". Jamais, em tempo algum, se produziu tamanha bobagem no pensamento agrário. Mera, e retrógrada, ideologia.

Sabem os estudiosos da economia e da administração, mesmo os iniciantes, que por "familiar" se considera a gestão de um negócio, independentemente do tamanho do empreendimento. Ao contrário das corporações, uma empresa familiar se rege pelas decisões de seus próprios donos. Na agricultura significa que os proprietários tocam com seu trabalho a fazenda, havendo apenas auxílio eventual de mão de obra assalariada. Familiar, sempre, refere-se ao comando da atividade produtiva.

Nos EUA, as estatísticas mostram que cerca de 90% dos agricultores se classificam como familiares. Graças ao avanço da mecanização, um pai com dois filhos, por exemplo, mostra-se capaz de conduzir áreas de terra cada vez maiores, submetidas à elevada tecnologia. Essa tendência da agricultura norte-americana se assemelha aqui, no Brasil, especialmente à das fronteiras do Centro-Oeste. Grandes fazendas, com soja ou milho, exploram-se espetacularmente com mão de obra familiar, não raro a mulher participando dos trabalhos de campo, sentada no banco do trator, ao lado do marido e dos filhos. Agronegócio familiar.

Inexiste contradição nos termos. Mas, por aquelas razões difíceis de explicar, talvez por causa da histórica ojeriza ao sistema latifundiário, aqui somente se considera familiar quem é pequeno produtor rural. Passou a ser o tamanho, e não a gestão, o critério fundamental. Remetido ao jogo da política, o conceito de agricultor familiar desvirtuou-se completamente, acabando associado à pobreza rural, ao atraso, à subsistência na terra. Nele se incluíram os assentamentos da reforma agrária.

A esguelha ideológica cresce quando se limita o agricultor familiar à produção de comida popular. O discurso enviesado diz assim: "O agronegócio serve à exportação, quem alimenta o povo é a agricultura familiar". Besteira pura. No Paraná, por exemplo, que é grande produtor nacional de soja, quem domina o campo são os sitiantes enquadrados no Pronaf. Seu sucesso depende do cooperativismo. Na famosa Cocamar, situada em Maringá, entre 12 mil associados, 80% cultivam até 50 hectares. Conduzem suas lavouras familiarmente, participam diretamente do agronegócio, remuneram-se pela receita da exportação dos grãos. Modestos, mas capitalistas, numa boa.

Sim, é verdade que a maioria dos alimentos básicos (arroz, feijão, mandioca, leite, batata) advém de pequenas propriedades. Fato estatístico. Quando, porém, se analisam as condições da produção e o fluxo de comércio, verifica-se que, majoritariamente, o abastecimento nas grandes cidades se garante pelo trabalho de agricultores que, embora pequenos, utilizam elevada tecnologia, ligados no mercado. Pequenos, e bons, empresários rurais.

Essa complexidade da economia agrária submerge no palco da encenação política. Quando a presidente Dilma Rousseff anunciou, primeiramente, um crédito de R$ 156,1 bilhões para o agronegócio e, depois, de R$ 24,1 bilhões para a agricultura familiar, cavou artificialmente um fosso que, na realidade, inexiste na roça. As cerimônias turvam a realidade agrária.

A agricultura sustentável de que o Brasil carece não se construirá apartando os agricultores entre patronais e familiares, como se existissem os de primeira e os de segunda classe. Ao contrário. Ao favorecer os mais fracos, incluindo os assentados da reforma agrária, uma política agrícola inteligente buscará integrá-los, juntos, ao ciclo do progresso tecnológico no campo.

Sem segregação.

Figueiredo estava certo - PAULO FIGUEIREDO FILHO


O GLOBO - 11/06

Menos da metade das obras de infraestrutura foi entregue


É verdadeira a história que circula na internet de que o presidente João Figueiredo recusou-se a promover a candidatura do Brasil à Copa do Mundo, sob o argumento de que o país teria outras prioridades. Dissera, ao então presidente da Fifa e seu amigo, João Havelange: “Você já viu uma favela no Rio de Janeiro ou uma seca no Nordeste? Acha que eu vou gastar dinheiro com estádio de futebol?” A estimativa de Havelange era de que toda a Copa custaria estrondoso US$ 1 bilhão da época, algo como R$ 6 bilhões em valores de 2014.

Foi por uma dessas peças do destino que eu, neto do presidente que recusara a Copa mais de duas décadas antes, recebi como uma das primeiras tarefas na minha passagem pelo setor público, em 2007, a coordenação da candidatura do Estado do Rio — e, consequentemente, do Brasil — para sediar a Copa do Mundo de 2014. Acabávamos de sediar, com sucesso, os Jogos Pan-Americanos, e a Copa do Mundo no país do futebol parecia um tremendo sonho. Foi um raro momento de convergência de interesses e união de todas as esferas de governo e da CBF, que mergulharam de cabeça na candidatura, com engajamento pessoal do presidente Lula.

Lembro-me da sensação de euforia quando conquistamos o direito de sediar o evento maior do futebol. Aquela seria uma Copa diferente, prometiam. A organização alardeava que os estádios seriam integralmente custeados pela iniciativa privada, incluindo a reforma do Maracanã, orçada à época em R$ 300 milhões. O Brasil assumiu, por escrito, um compromisso de resolver gargalos antigos de infraestrutura e mobilidade e teríamos até um trem-bala ligando as duas maiores cidades do país. Haveria tempo de sobra para a preparação. Era a grande chance do Brasil. Pesquisas mostravam que mais de 90% da população apoiavam a Copa do Mundo aqui. Talvez, então, Figueiredo estivesse enganado.

Hoje, sete anos depois, às vésperas da competição, eu e boa parte do país somos forçados a reconhecer a sabedoria do meu avô. Pesquisas recentes mostram que o apoio à Copa no Brasil caiu para 52% da população. Pudera: o custo total da competição deve chegar a R$ 30 bilhões. Menos da metade das obras de infraestrutura foi entregue e os estádios viram seus custos de construção quadruplicarem em alguns dos casos mais escandalosos de superfaturamento da história da República. Por pura ganância de alguns, gastamos cerca de R$ 11 bilhões do dinheiro dos contribuintes apenas na construção das arenas da Copa.

O sonho virou pesadelo e, como Figueiredo antecipara, tantos bilhões teriam sido suficientes para custear integralmente casas populares a quase 2,5 milhões de pessoas ou sete vezes e meia o orçamento original da transposição do Rio São Francisco. Mas, em vez disso, acabaremos com estádios de futebol vazios e um gosto amargo na boca do que a Copa poderia ter sido e da chance que desperdiçamos. É, parece que Figueiredo conhecia o Brasil melhor do que ninguém.