quinta-feira, 29 de maio de 2014

Desigualdade, por Delfim Netto na Folha


Folha presta um excelente serviço à sociedade brasileira ao continuar dando espaço à interessante discussão em torno do livro do economista francês Thomas Piketty, "O Capital no Século 21".
Foi imenso o "choque" que a obra produziu após o lançamento de sua tradução em inglês. Olhada com cuidado, a sua tese está longe de provar empiricamente o inevitável fim do "capitalismo", imposto por alguma "lei" histórica (o que Marx pensou ter feito com o uso de argumentos lógicos).
Reduzida à sua essência, ela é o resultado de pura aritmética: se a taxa de retorno do capital (que ele, como a maioria dos economistas em seus modelos chama de "r") for permanentemente maior do que a taxa de crescimento do PIB (que ele, como os economistas, chama de "g"), então haverá, necessariamente, uma acumulação de renda e patrimônio que, ao fim e ao cabo, submeterá a democracia ao controle do capital e tornará o "capitalismo" disfuncional.
O problema não é econômico, é político! Não tem nada a ver com "esquerda" ou "direita". Instituições mal construídas permitem que uma classe se aproprie do excedente econômico produzido pelo trabalho, como ocorria no regime colonial e ocorre no capitalismo de "compadres"...
O problema é que "g" e "r" não são constantes e não satisfazem, necessariamente, a desigualdade: "r" sempre maior do que "g". Dependem da qualidade das instituições e, portanto, são de extrapolação duvidosa. A relação entre eles controla aritmeticamente, no longo prazo, a distribuição da renda entre o trabalho e o capital e a acumulação dos patrimônios. São as instituições e o jogo dialético permanente entre o bom funcionamento dos "mercados" e o bom funcionamento das "urnas" que determinam a relação entre "g" e "r".
O livro de Piketty já produziu dois resultados notáveis. O primeiro, muito triste para nós que amamos a França. Infelizmente, o francês transformou-se numa língua paroquial em matéria de economia, para prejuízo do próprio pensamento econômico universal. O livro só teve a merecida repercussão quando vertido para o inglês.
O segundo, é que mostra a insanidade do "cientificismo" que domina a pobre modelização de alguns economistas que têm inveja da física e se recusam entender que o átomo da economia (o cidadão comum, sujeito da política do governo) tem memória, aprende e reage num jogo dinâmico com a autoridade. E, o que é pior e mais grave, protesta e vota!
A distribuição da renda sempre implicará uma valorização filosófica. Como ensinou Adam Smith há mais de 250 anos ("A Teoria dos Sentimentos Morais", 1759), se a economia for um dia "ciência", ela há de ser uma ciência moral. 

Geólogo aposta na criação de "piscinões verdes" para combater as enchentes

Urbanismo

Geólogo aposta na criação de "piscinões verdes" para combater as enchentes

A multiplicação dos bosques florestados urbanos está entre as medidas defendidas por Álvaro Rodrigues dos Santos para aumentar a permeabilidade nas cidades. Veja artigo na íntegra

28/Maio/2014
 
Google ilustrativas
Piscinões verdes contra as enchentes
As enchentes urbanas tem sua principal causa na incapacidade das cidades em reter suas águas de chuva, o que as faz, pela impermeabilização generalizada de sua superfície, lançar essas águas em enormes e crescentes volumes, e em tempos progressivamente reduzidos, sobre um sistema de drenagem que não mais lhes consegue dar a devida vazão. O excesso de córregos canalizados e o intenso assoreamento por sedimentos, lixo e entulho que atinge todo o sistema de drenagem urbana só fazem agravar o problema.
Não é por outro motivo que o Coeficiente de Escoamento Superficial - parâmetro que expõe a relação entre o volume das águas que escoam superficialmente sem infiltrar no terreno e o volume total de uma chuva - na cidade de São Paulo está atingindo a escandalosa ordem de 80%. Ou seja, 80% do volume de uma chuva pesada que cai na capital paulista escoa superficialmente comprometendo rapidamente seu sistema de drenagem. Inversamente, em uma floresta, ou um bosque florestado urbano, o CES fica em torno de 20%; ou seja, cerca de 80% do volume das chuvas torrenciais é retido pela floresta, alimentando em boa parte, por infiltração, o lençol freático.
Fica claro que, ao contrário do que gostam de afirmar nossos governantes, as enchentes urbanas não acontecem por um eventual excesso de chuvas, ou, mais prosaicamente, por vingança dos deuses, e muito menos como efeito do polêmico aquecimento global, mas sim, liminarmente, pela absurda compulsão com que as cidades procuram livrar-se de suas águas pluviais o mais rápido que possam. 
Frente a esse claro diagnóstico é estranho e inconcebível que os programas oficiais de combate às enchentes, insistindo isoladamente nos dispendiosos projetos de ampliação das calhas de nossos principais rios, não tenham até hoje implementado um arco de medidas voltadas a recuperar a capacidade da cidade em reter suas águas de chuva, ou seja, medidas que atacariam as enchentes em suas causas elementares.
Inúmeros são os dispositivos e expedientes conhecidos para o aumento da retenção das águas de chuva, como calçadas e sarjetas drenantes, pátios e estacionamentos drenantes, valetas, trincheiras e poços drenantes, reservatórios para acumulação de águas de chuva internos aos lotes, multiplicação dos bosques florestados na cidade, etc. Todos devem se implantados, pois será a somatória de seus efeitos que propiciará os resultados hidrológicos esperados. Como um bom exemplo, por sua eficácia hidrológica e por seus enormes trunfos ambientais, vale destacar a importância da multiplicação dos bosques florestados urbanos, entendidos como espaços da cidade assemelhados a uma verdadeira floresta. Comportar-se-iam como verdadeiros e virtuosos piscinões verdes, tão diversos dos atuais deletérios piscinões, que comportam-se como verdadeiros agentes de deterioração sanitária, ambiental e urbanística das regiões onde vem sendo instalados.
Importante considerar que para que os bosques florestados realmente cumpram um papel representativo no combate às enchentes teriam que ser disseminados em profusão por toda a área urbana, o que, do ponto de vista ambiental, já seria um espetacular ganho. Muitas praças nossas, hoje praticamente sem árvores, e inúmeros terrenos públicos totalmente abandonados, poderiam ser transformados rapidamente em bosques florestados. Pode-se trabalhar na perspectiva de, ao final de um determinado prazo, cada sub-bacia hidrográfica urbana passe a contar com um mínimo de 12% de sua área total cobertos por pequenos, médios ou grandes bosques florestados, o que, em termos hidrológicos, significaria reduzir, somente via esse expediente, em cerca de 10% ou mais o volume pluvial que escoa hoje para o sistema de drenagens urbanas colaborando para a ocorrência de enchentes.
Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br) é ex-diretor de Planejamento e Gestão do IPT, autor dos livros "Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática", "A Grande Barreira da Serra do Mar", "Cubatão", "Diálogos Geológicos" e "Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções", além de consultor de Geologia de Engenharia e Geotecnia.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Nuno Ramos: Suspeito que estamos... (definitivo)




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Há tempos venho tentando responder ao convite para escrever nesta página três. O jornal me propôs vários temas, mas nunca me senti preparado para dar conta de nenhum. Então resolvi escrever sobre o que não sei, mas suspeito.
Suspeito que o tema primordial e decisivo da sociedade brasileira sempre tenha sido, e seja ainda, a violência. A vida no Brasil nunca valeu muito. Hoje vale ainda menos. Giramos em torno disso como um animal preso ao poste. Suspeito que o sentimento de agoridade que nos caracteriza faça fronteira com essa violência. Suspeito que precisaríamos, como contraponto, de maior lentidão e inércia.
Perto da violência, suspeito que tudo saia do lugar. Noções como alto e baixo, direito e esquerdo, bem e mal, certo e errado se confundem. Por estar em toda parte, suspeito que esse tema aproxime-se, entre nós, do impensável, e que traga em seu DNA, como esses vírus de mutações constantes e velozes, alguma coisa metamórfica que sempre se transfigura e escapa.
Suspeito no entanto que haja um vínculo estreito entre violência e burrice urbana. Além de morar em São Paulo, andei recentemente por Salvador, São Luís, Manaus, Natal –suspeito que sejam, todas elas, cidades apodrecendo sob o sol. Quarteirões tombados tombando, de um lado; prédios totalmente desconectados da cidade (além de feios), sem cota nem propósito urbano, de outro. Suspeito que entre o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a especulação imobiliária uma curiosa aliança esteja aos poucos se fazendo –ruínas orgulhosas copulando com despautérios azulejados de 30 andares.
Suspeito que cada detalhe desses grandes centros urbanos esteja em situação igualmente trágica. Suspeito, por exemplo, que quase todas as praias em cidades desse porte tenham ficado estreitas, comprimidas contra um muro de arrimo. Como não podemos mais transportar o paredão dos egoístas (a expressão é de Le Corbusier) cem ou 200 metros no sentido da montanha, suspeito que será preciso aterrar o mar para termos novamente praias em escala decente. Suspeito que muitas vezes as piadas que fazemos com os portugueses se apliquem a nós.
Suspeito que a indústria cultural brasileira seja também ela violenta. Assisti a Luciano Huck "modernizando" a ximbica de um espectador. Vi esse espectador chorar, depois mover os braços como se quisesse abraçar os joelhos do apresentador. Suspeito que isso seja cruel. Suspeito que isso seja cretino.
Suspeito que o tropicalismo tenha naturalizado nossa indústria cultural até um ponto sem retorno, e que o ciclo de conquistas democráticas provenientes dessa operação tenha já se encerrado há décadas. Suspeito que perceber o tiquinho de crueldade que haveria em atirar bacalhau nas pessoas não faça mal nenhum ao país; surpreender um ríspido sargento no modo como Ivete Sangalo dança e canta também não. Suspeito que acessar algo de ridículo no "Jornal Nacional" –a falsa intimidade da dupla, seu balé de rostos virando para a câmera, a ruga na sobrancelha de William Bonner, como um aluno estudioso se preparando para começar uma prova, a gostosíssima Patrícia Poeta descrevendo, e ainda mais com esse nome, a chegada de um tsunami ou terremoto de nove graus na escala Richter– seja uma conquista nacional relevante. Suspeito, no entanto, que nessa área caminhemos para uma verdadeira hagiografia, unilateral e coletiva (daí o esforço, essencialmente religioso, de controlar biografias).
Suspeito que a falência do caríssimo estado brasileiro esteja maquiada por uma espécie de chantagem inconsciente –com uma distribuição de renda como a nossa, sem ele seria ainda pior. Suspeito que esse raciocínio seja imobilista e refém de si mesmo, e que tenhamos perdido completamente qualquer medida de eficiência que permita cobrar o Estado como um prestador de serviços (com a morte galopante da Política, suspeito que seja nisso que ele venha se transformando).
Suspeito que a enorme migração do imaginário político para o econômico nos países desenvolvidos tenha ocorrido após uma razoável distribuição de renda via imposto e conquistas sindicais. A tirania da vida econômica sobre a política, entre nós, se deu num quadro social ainda trágico, que solicitaria muito da política. Suspeito que nossa falta de agudeza e imaginação políticas sejam, por isso, eticamente imperdoáveis. Suspeito que imaginação política no Brasil seria a capacidade de transformar o aumento de renda, a partir do Deus-PIB, em aumento de direitos, a partir do Deus-cidadania.
Tenho 54 anos e suspeito que os únicos projetos nacionais com Pê razoavelmente grande que acompanhei sejam o Plano Real e o Bolsa Família. Suspeito que não estejam tão distantes do imaginário desenvolvimentista, árido e autoritário, dos anos 70 e que afinal isso seja pouco para toda uma geração –e se suspeito que estou sendo injusto com um grupo enorme de pequenos projetos que poderia chamar de redemocratização, que me permitem inclusive escrever isto aqui num grande jornal, suspeito também que isso não passe de obrigação cívica.
Por sinal, suspeito que tenhamos perdido completamente a medida dessa obrigação, e que toda a cultura brasileira venha enfrentando fortes problemas de escala. O que é o máximo? O que é o mínimo? De onde o horror não passa? Dessa vez chega? Qual o limite? Mesmo em casos extremos (conectar um pescoço humano a um poste com uma trava de bicicleta, por exemplo), suspeito que nossa medida continue vaga, elástica.
Suspeito que o termo dívida interna, de memória econômica, descreva bem o país –devemos aos deserdados, aos desocupados, aos desmantelados, aos desabitados, aos destrambelhados e aos desmemoriados. Devemos renda, saúde, educação, claro, mas também avencas, bueiros, ruas, parques, chicletes, remédios tarja preta; devemos água potável, brinquedos, lanternas, poços artesianos; devemos livros, trufas, CDs, lentes de contato, filmes de arte, óculos escuros, museus, proteína, alface. Devemos aos pobres, aos índios, aos pretos e aos pardos, mas também aos albinos, aos esquizofrênicos, aos insones, aos priápicos, aos tiozinhos de padaria, aos mitômanos e aos sexualmente indecisos. Devemos demais aos cães atropelados, prensados contra o "guard-rail". Devemos aos palhaços de bufê infantil e aos papais noéis de shopping. Suspeito que nossa dívida interna seja impossível de descrever.
Suspeito que deus não exista –ou não tenha paciência para nenhum dos assuntos de que lembrei aqui.
Suspeito que a risada, o pôr do sol, o hino à alegria e o acorde maior estejam sendo de alguma forma privatizados. Suspeito que Paulo Coelho, o padre Marcelo Rossi e o bispo Edir Macedo sejam três faces de uma mesma e última privatização –a do infinito. Suspeito que estatizar essas coisas seja ainda pior.
Suspeito que a Portuguesa vai falir, acabar. Suspeito que Galvão Bueno não vai se aposentar nesta Copa, nem na próxima.
Suspeito que estamos fodidos.
NUNO RAMOS, 54, é artista plástico e escritor
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