domingo, 25 de maio de 2014

País compacto


Escritor lusitano fala de uma São Paulo que não é nem Portugal nem Brasil: ‘É um problema sozinho ou uma solução sozinha’

24 de maio de 2014 | 16h 00

Valter Hugo Mãe
Minhocão no domingo. ‘Pura liberdade de expressão e íntima procura da felicidade’ - DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
Minhocão no domingo. ‘Pura liberdade de expressão e íntima procura da felicidade’
Valter Hugo Mãe, escritor português nascido em Angola, é autor, entre outros livros, de 'A máquina de fazer espanhóis' e 'O filho de mil homens' (Alfaguara). Este texto saiu originalmente no jornal Público.
São Paulo é um país compacto. Os edifícios acumulam-se como se precisassem de garantir segurarem-se uns nos outros com um braço esticado. As ruas ficam irregulares, serpentes emaranhadas no dorso das quais gente e automóveis passam num equilíbrio esperto. São Paulo é para espertos.
As serpentes são tão sedutoras quanto terminais, e há uma língua bífida procurando alimento incansável. Atarefada. Adoro a portuguesa língua bífida do Brasil. Isso de ser lusa e índia, de ser paisagem campestre e construção. O português do Brasil é uma babélica solução de sucesso.
Os taxistas perguntam-me como fui arrumar de falar tão bonito. Digo que estou num outro Portugal. Um senhor respondeu-me que São Paulo não é nada, nem Portugal nem Brasil. É um problema sozinho. E eu perguntei se não seria uma solução sozinha. Ele achou que sim. Só por existir solução se podia formular o problema. Rimos.
Umas moças passavam para o caríssimo shopping Iguatemi. Estavam de pernas abundantes à mostra. Ele comentou: perninha de asfalto, trabalhada meticulosamente a salto alto. As melhores pernas do mundo. Rimos. A nova garota da nova Ipanema. Sem praia. Só praça e avenida. Um amor em cada segundo. Todos os homens são candidatos. Achei demasiado generoso. Mas quero acreditar.
Pode levar anos a criar conforto. Quando o código bem encriptado da metrópole começa a ser quebrado, São Paulo é uma força bruta, uma central eléctrica que opera no coração. Ficamos com o coração predial, quer dizer, feito de assoalhadas, andares, janelas e terraços, vistas, esconsos de subir e descer, vãos, síndicos que dizem sim, sorriem. Montes de gente. Ficamos com montes de gente no coração. Como um verdadeiro condomínio.
O coração arranha os céus. É verdade que em cidade gigante o coração também sabe crescer. Ele pode bem arranhar os céus.
Domingo cedo, o minhocão voador está fechado ao trânsito, a folia da saúde põe gente a correr, andando, passeando os cachorros, paquerando num certo flagrante descomplicado. Num país compacto não dá para complicar o desnecessário. As pessoas ficam satisfeitas com a normalidade. Tudo o resto é pura liberdade de expressão e íntima procura da felicidade. Gostamos todos de olhar e ser olhados. No minhocão, domingo de manhã, não há gente feia. Somos todos desportistas e lindos. Passamos lindos ao nível do segundo ou terceiro piso dos prédios. Somos tão exuberantes quanto copas de árvores. Poderíamos acolher pássaros, não seria nada de estranho. Sentimos que qualquer coisa pode acontecer. Qualquer coisa boa, quero dizer.
Há uma mulher a vender água de coco bem fria. Diz umas palavras, recebe dois reais ou três. Acerta com a lâmina no coco e tem todos os dedos intactos. Perguntei se algum dia deu medo. Ela diz que não. No início dava raiva, por ser lenta a servir os clientes. O tempo dá pressa ao trabalho e dá lentidão ao amor.
Fiquei a matutar nessa ideia. O tempo dá pressa ao trabalho e lentidão ao amor.
Respondi-lhe que ia anunciar a alguns homens passando que ela estava ali disponível. Ela gritou. Disponível mas em segredo, que o seu marido ainda abria coco mais certinho do que ela. Para lhe abrir a cabeça, ele precisava só de um dedo. Quando a cumprimentei com um até logo, ela murmurou: mas diz, sim, baixinho. Se for de valer a pena, a gente morre por amor.
São Paulo é um país assim. De valer a pena. Contendo tudo, os perigos enrolados nas coisas boas, as aventuras, as esperanças, a inexistência da fealdade, a sensação intensa de estarmos vivos, de termos sempre alguém. Em São Paulo temos sempre alguém. Conta-se que há maluco para tudo. Há, claramente, uma maluca para nós. Que maravilha, saber que somos sempre alguém para alguém.
Só em lugar pequeno é que há quem fique proscrito. Lugar grande absorve. Todas as pessoas renascem ao virar da esquina. Todas as pessoas renascem ao descer de um transporte público. A oportunidade de voltar a ser feliz está na base de cada instante.
Em São Paulo, todas as pessoas renascem ao virar da esquina. Isso faz-me tão bem. Gosto por de mais.

Apologia do boné


Lei que veta uso do acessório no Rio violenta um símbolo de identidade da periferia

24 de maio de 2014 | 16h 00

MV Bill
'Bonezaço' ocupou o Parque Madureira - Fabiano Rocha / Agência O Globo
Fabiano Rocha / Agência O Globo
'Bonezaço' ocupou o Parque Madureira
MV Bill, rapper, documentarista e escritor carioca, é co-autor, com Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares, de'Cabeça de porco' (Objetiva, 2005). Seu último CD é 'Monstrão' (2012). 
Vivemos numa época assustadoramente violenta. Sair para o trabalho ou mesmo para comprar pão podem se tornar verdadeiras aventuras. Para ser franco, meus pais diziam o mesmo do tempo deles. Mas é fato que passam os anos e as formas de violência no Brasil tomam novos contornos. As pessoas têm medo de sair de casa e até de ficar em casa. Nesse caos diário, é preciso que a sociedade dê respostas em diversas áreas, como segurança e ética, entre outras - já que não é possível conviver com tantas anomalias sem reagir. No entanto, medidas totalitárias não são bem-vindas. Medidas que reforcem o preconceito e a discriminação não são bem-vindas. E medidas que só atingem grupos historicamente marginalizados também não são bem-vindas. 
Uma delas, a meu ver, é a bem-intencionada lei estadual que entrou em vigor no sábado, dia 17, no Rio. Em termos gerais, a lei 6.717/14, de autoria da deputada estadual Lucinha (PSDB-RJ), proíbe “o ingresso ou permanência de pessoas utilizando capacete ou qualquer tipo de cobertura que oculte a face nos estabelecimentos comerciais, públicos ou abertos ao público”. A justificativa da autora do projeto é “impedir que criminosos tentem driblar as câmeras de segurança durante abordagens e assaltos”, como afirmou em uma entrevista. 
Não tenho nada contra a deputada, inclusive acho coerente que as pessoas sejam proibidas de andar com rostos cobertos fora do carnaval e das manifestações populares. Em minha opinião isso deve mesmo ser proibido, pois significa um risco à segurança. No que se refere especificamente aos bonés, diz a redação da lei: “Os bonés, capuzes e gorros não se enquadram na proibição, salvo se estiverem sendo utilizados de forma a ocultar a face da pessoa”.
É aí que vejo o problema. A expressão “salvo se estiverem sendo utilizados” dá margem a uma subjetividade na interpretação da lei que não me agrada em nada. Nem a mim nem a nenhum dos milhões de brasileiros historicamente marginalizados que sabem, desde pequenos, que a tal da subjetividade nunca será favorável a nós. É a subjetividade que nos impede de ser bem atendidos em uma loja de grife. A subjetividade no Brasil é construída no contexto de uma sociedade que nivela pobres a marginais que estão sempre na iminência de cometer algum delito - aguardando apenas uma oportunidade e uma forma de se esconder.
Não podemos incluir uma manifestação cultural como é o uso de bonés numa esfera de critérios que nada tem de objetiva, nem está expressa na referida lei. Particularmente, não consigo imaginar os seguranças do Jockey Clube apreendendo os lindos chapéus dourados das socialites cariocas ou paulistanas com o argumento de que seus olhos precisam ser vistos pelas câmeras de segurança. Tão pouco os empresários que igualmente desfilam seus chapéus importados pelas tribunas da vida.   
Não estou aqui fazendo uma comparação apressada entre “os bacanas” e a periferia, nem estou dizendo que a lei em si vá contra os jovens das favelas. Estou chamando a atenção para uma reflexão que os parlamentares devem fazer sempre, antes de votar uma lei: ouvir todos os interessados, para levar em conta os hábitos e costumes de um povo. Como no Jockey Clube, em que os chapéus de luxo fazem parte de uma cultura - e suprimi-los seria uma violência contra ela -, no caso dos jovens de periferia ligados ao funk, ao rap e todas as manifestações culturais do hip-hop, o boné faz parte de uma cultura real, de construção de identidade, resistência e atitude. 
Não é de hoje que esses jovens sofrem com a agressividade de policiais que, em suas batidas, identificam os que usam bonés com bandidos. O boné incomoda talvez por ser exatamente um equipamento que identifica a origem e o orgulho dessas pessoas. Não seria o caso de ouvi-las antes de elaborar e votar uma lei como a 6.717/14? Mas não. O que ocorreu foi uma opção pela subjetividade de quem vai arbitrar sobre esse tema e julgar se o boné esta ou não dentro dos padrões da lei: gerentes de estabelecimentos comerciais, seguranças privados e policiais.  Não estamos aqui reproduzindo a lógica do “sabe com quem você tá falando”?
Eu também quero viver em um lugar seguro, onde o comércio funcione tranquilamente e as pessoas, seja nas favelas, nas periferias ou nos centros urbanos, tenham os mesmos direitos de ir e vir em paz. E tenham, inclusive, os mesmos direitos de terem suas culturas preservadas. 
Faço aqui uma “apologia” do boné porque não vou deixar de usar e não vou permitir que me achem um bandido por isso, como sempre acharam. Não me posiciono contra a lei para criar polêmica, mas porque penso de verdade que bonés, assim como outros tipos de chapéu e quaisquer peças de vestuário fazem parte de períodos históricos determinados e identificam pessoas e grupos que não podem ficar sob o julgamento arbitrário de cada um. 
Da mesma forma que peças memoráveis como a boina de Che Guevara, o chapéu-coco de Charlie Chaplin ou o chapéu de frutas de Carmem Miranda marcaram época, também poderemos lembrar dos bonés que meus amigos Dexter e Mano Brown, assim como tantos outros MCs, sempre usaram - e se tornaram referência para muitas pessoas. Seja o chapéu do Gog, rapper de Brasília, ou o do grande mestre Cartola, da Mangueira, cobrir a cabeça com histórias não pode ser sinônimo de cobrir o rosto de vergonha - por terem te impedido de circular com algo que, para muitos, é quase uma parte do próprio corpo.
Leis foram feitas para serem cumpridas, mas também emendadas, questionadas ou revogadas. Acredito que a intenção foi boa e torço para que ela dê certo. Porém, seus critérios de aplicação têm que estar expressos na própria lei e não baseados no que cada um acredita. Se for assim, aí tiro o meu boné pra lei.

O variável humor das ruas

Neste maio de 2014, o sujeito dominante das manifestações coletivas não usa máscara porque ele próprio é a máscara

24 de maio de 2014 | 16h 00

José de Souza Martins
Ruptura. Reunião entre cooperativa de ônibus e crime organizado é grave mudança - FÁBIO VIEIRA/FOTOARENA
FÁBIO VIEIRA/FOTOARENA
Ruptura. Reunião entre cooperativa de ônibus e crime organizado é grave mudança
José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, é autor de 'A política do Brasil Lúmpen e místico' (Contexto)
As manifestações deste maio de 2014 não repetem as de junho de 2013. São outra coisa, ainda que variantes do mesmo estado de inquietação social. Junho de 2013 indicou que a paz do pacto político de 2002 chegava ao fim na brecha que se abria no conformismo dele decorrente. Em maio de 2014 a brecha continua aberta, ocupada por outros personagens. Agora são os sindicalizados, até então submissos aliados do poder, que puxam o cordão do protesto. A ruptura de 2014 mudou a chave dos significados das ocorrências. O cenário é outro, pois inclui dois eventos habitualmente de conciliação, as eleições e a Copa, planejada apoteose de um partido e seu governo, que, no entanto, se realizarão num cenário invadido por novos e hostis coadjuvantes. 
Em junho de 2013, o sujeito das manifestações era um sujeito difuso e não institucionalizado. Um sujeito que fazia questão de dizer-se não partidário e recusava bandeiras ideológicas. Sua identidade era a do sem rosto, nas máscaras que participantes usavam. Todos os indícios são de que, apesar das aparências, esse sujeito continua atuando, ainda que nos interstícios das manifestações dos outros. Foi o que se viu na quinta feira, em São Paulo: a manifestação conjunta dos anti-Copa com os sem teto, enquanto ocorria a tumultuada greve dos ônibus e a marcha dos professores municipais. É o primeiro sinal do que Henri Lefebvre chama de coalização dos resíduos, a dos insubmissos que não foram cooptados, os que falam em nome de outra ordenação social. 
O sujeito coletivo que aí se manifesta o faz não só quando menos se espera, mas também para reivindicar o que os enquadrados da ordem dominante não esperam nem reivindicam. Fazem-no em nome do que menos tem sentido nas análises políticas convencionais: 20 centavos de aumento na tarifa de ônibus entornaram o caldo das interpretações viciadas nos grandes números e nos grandes acontecimentos. As miudezas próprias da vida cotidiana não se explicam pelo convencionalmente explicável. Elas se propõem como enigma. 
Neste maio de 2014, o sujeito dominante das manifestações coletivas tem cara, nome e até endereço. Não usa máscara porque ele próprio é a máscara. São entidades sindicais e corporativas, as das reivindicações previsíveis e compreensíveis. Não raro são cúmplices do que questionam, como os desmandos que culminam na inflação alta, na corrosão dos salários, nas carências que não são as do catálogo do Fome Zero. Em 2013, o povo supostamente manso, diluído no sistema de cooptações que enquadrou a sociedade inteira nas conveniências do poder e do partido que governa, deu o primeiro aviso de que mansidão tem limite. A surpresa é que, em 2014, a forma é outra, mas o recado é o mesmo: a cumplicidade tem o seu dia de basta. 
Se há essa convergência entre 2013 e 2014, há uma divergência que dá bem a medida da gravidade do que está ocorrendo: em 2013, a rua falou em favor do povo, de algo que tinha sentido para a maioria do povo; em 2014, a rua fala contra o povo, em nome de grupos restritos e de seus interesses corporativos. A Polícia Militar de Pernambuco abriu as portas da cidade do Recife à baderna e ao saque ao cruzar os braços. Em São Paulo, os trabalhadores dos transportes coletivos puniram quem trabalha e vive nas condições adversas da periferia, da jornada de trabalho duplicada pela agonia do transporte insuficiente. A informação oficial de uma reunião entre gente de uma cooperativa de ônibus e gente do crime organizado, em março, mostra grave mudança no eixo das reivindicações. Esta greve de 2014 deixou de ser greve para se tornar anárquica manifestação de rua, para punir e indiretamente agredir o usuário do transporte. Usaram a reivindicação trabalhista para aterrorizar a população e colocá-la a serviço dos impasses laborais. É um modo de por a sociedade de joelhos, coisa de feitor de senzala, de quem não sabe negociar e até acha que não precisa. 
É nesse cenário que caminhamos para os eventos que nos esperam: um deles a Copa do Mundo. As Copas tem sido aqui um momento litúrgico de reafirmação da identidade nacional. Acompanhei nas ruas as Copas do Mundo desde a de 1994. Naquele ano, no centro de São Paulo, onde uma multidão acompanhava os jogos num telão do Anhangabaú, não houve um único crime durante todo o mês do evento. Questionar os absurdos gastos do governo com a Copa é mais do que compreensível num país que alega ter uma multidão de famélicos e resolve os problemas sociais com o suborno do Bolsa Família. Mas questionar, por tabela, o sentido de comunhão que o espírito da Copa encerra é opor-se a um povo que historicamente prefere o encontro ao conflito. 
Já em relação às eleições, a coisa é mais complicada. O País para elas se encaminha sem uma proposta de novo pacto político, que as próprias manifestações sugerem, sem um projeto de nação, de que carece. À vista dos acontecimentos destes últimos doze meses ninguém sabe o que vai sair das urnas e, menos ainda, o que nelas vai entrar.