Neste maio de 2014, o sujeito dominante das manifestações coletivas não usa máscara porque ele próprio é a máscara
24 de maio de 2014 | 16h 00
José de Souza Martins
FÁBIO VIEIRA/FOTOARENA
Ruptura. Reunião entre cooperativa de ônibus e crime organizado é grave mudança
José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, é autor de 'A política do Brasil Lúmpen e místico' (Contexto)
As manifestações deste maio de 2014 não repetem as de junho de 2013. São outra coisa, ainda que variantes do mesmo estado de inquietação social. Junho de 2013 indicou que a paz do pacto político de 2002 chegava ao fim na brecha que se abria no conformismo dele decorrente. Em maio de 2014 a brecha continua aberta, ocupada por outros personagens. Agora são os sindicalizados, até então submissos aliados do poder, que puxam o cordão do protesto. A ruptura de 2014 mudou a chave dos significados das ocorrências. O cenário é outro, pois inclui dois eventos habitualmente de conciliação, as eleições e a Copa, planejada apoteose de um partido e seu governo, que, no entanto, se realizarão num cenário invadido por novos e hostis coadjuvantes.
Em junho de 2013, o sujeito das manifestações era um sujeito difuso e não institucionalizado. Um sujeito que fazia questão de dizer-se não partidário e recusava bandeiras ideológicas. Sua identidade era a do sem rosto, nas máscaras que participantes usavam. Todos os indícios são de que, apesar das aparências, esse sujeito continua atuando, ainda que nos interstícios das manifestações dos outros. Foi o que se viu na quinta feira, em São Paulo: a manifestação conjunta dos anti-Copa com os sem teto, enquanto ocorria a tumultuada greve dos ônibus e a marcha dos professores municipais. É o primeiro sinal do que Henri Lefebvre chama de coalização dos resíduos, a dos insubmissos que não foram cooptados, os que falam em nome de outra ordenação social.
O sujeito coletivo que aí se manifesta o faz não só quando menos se espera, mas também para reivindicar o que os enquadrados da ordem dominante não esperam nem reivindicam. Fazem-no em nome do que menos tem sentido nas análises políticas convencionais: 20 centavos de aumento na tarifa de ônibus entornaram o caldo das interpretações viciadas nos grandes números e nos grandes acontecimentos. As miudezas próprias da vida cotidiana não se explicam pelo convencionalmente explicável. Elas se propõem como enigma.
Neste maio de 2014, o sujeito dominante das manifestações coletivas tem cara, nome e até endereço. Não usa máscara porque ele próprio é a máscara. São entidades sindicais e corporativas, as das reivindicações previsíveis e compreensíveis. Não raro são cúmplices do que questionam, como os desmandos que culminam na inflação alta, na corrosão dos salários, nas carências que não são as do catálogo do Fome Zero. Em 2013, o povo supostamente manso, diluído no sistema de cooptações que enquadrou a sociedade inteira nas conveniências do poder e do partido que governa, deu o primeiro aviso de que mansidão tem limite. A surpresa é que, em 2014, a forma é outra, mas o recado é o mesmo: a cumplicidade tem o seu dia de basta.
Se há essa convergência entre 2013 e 2014, há uma divergência que dá bem a medida da gravidade do que está ocorrendo: em 2013, a rua falou em favor do povo, de algo que tinha sentido para a maioria do povo; em 2014, a rua fala contra o povo, em nome de grupos restritos e de seus interesses corporativos. A Polícia Militar de Pernambuco abriu as portas da cidade do Recife à baderna e ao saque ao cruzar os braços. Em São Paulo, os trabalhadores dos transportes coletivos puniram quem trabalha e vive nas condições adversas da periferia, da jornada de trabalho duplicada pela agonia do transporte insuficiente. A informação oficial de uma reunião entre gente de uma cooperativa de ônibus e gente do crime organizado, em março, mostra grave mudança no eixo das reivindicações. Esta greve de 2014 deixou de ser greve para se tornar anárquica manifestação de rua, para punir e indiretamente agredir o usuário do transporte. Usaram a reivindicação trabalhista para aterrorizar a população e colocá-la a serviço dos impasses laborais. É um modo de por a sociedade de joelhos, coisa de feitor de senzala, de quem não sabe negociar e até acha que não precisa.
É nesse cenário que caminhamos para os eventos que nos esperam: um deles a Copa do Mundo. As Copas tem sido aqui um momento litúrgico de reafirmação da identidade nacional. Acompanhei nas ruas as Copas do Mundo desde a de 1994. Naquele ano, no centro de São Paulo, onde uma multidão acompanhava os jogos num telão do Anhangabaú, não houve um único crime durante todo o mês do evento. Questionar os absurdos gastos do governo com a Copa é mais do que compreensível num país que alega ter uma multidão de famélicos e resolve os problemas sociais com o suborno do Bolsa Família. Mas questionar, por tabela, o sentido de comunhão que o espírito da Copa encerra é opor-se a um povo que historicamente prefere o encontro ao conflito.
Já em relação às eleições, a coisa é mais complicada. O País para elas se encaminha sem uma proposta de novo pacto político, que as próprias manifestações sugerem, sem um projeto de nação, de que carece. À vista dos acontecimentos destes últimos doze meses ninguém sabe o que vai sair das urnas e, menos ainda, o que nelas vai entrar.
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