Repórter policial do jornal The Baltimore Sun desde 1982, quando terminou a faculdade, David Simon chegou ao fim da primeira década de trabalho irritado com os chefes e infeliz com os caminhos que o jornal estava tomando.
Acolheu, então, a ideia ouvida de um investigador e pediu autorização ao chefe da polícia da cidade para acompanhar o trabalho da divisão de homicídios por um ano, com o objetivo de escrever um livro sobre a experiência. Inexplicavelmente, observa, a proposta foi aceita e resultou no livro "Divisão de Homicídios".
Com o título de "estagiário policial", Simon entrou para a polícia em janeiro de 1988. Enfrentou, como seria de se esperar, enorme desconfiança dos policiais, que foram contra sua presença no departamento, além de sofrer bullying, nos momentos de folga, por ter baixa resistência a bebidas alcoólicas.
Falando pouco, escutando mais e anotando com discrição tudo o que via e ouvia, terminou sendo aceito e incorporado à turma de investigadores.
Com graves problemas sociais, a cidade de Baltimore exibiu em 1988 uma taxa de 8,4 homicídios por mil habitantes, ou 237 assassinatos, um número bem alto que obrigava os investigadores a lidarem, cada um, com cerca de 15 casos por ano, o dobro do que seria recomendável.
"A televisão nos deu o mito da busca frenética, da perseguição em alta velocidade, mas a verdade é que isso não existe", escreve. "A divisão de homicídios sempre chega depois de os cadáveres tombarem."
Com um texto cristalino, descrições detalhadas, alguma ironia e eventualmente uma ponta de humor, Simon transporta o leitor para as cenas de crime e salas de interrogatório.
Veja a descrição que faz de um policial, Tom Pellegrini, um mestre nos interrogatórios: "Com seu jeito lento e lacônico, levava três minutos para dizer tudo que tinha comido no café da manhã ou, então, cinco minutos contando uma piada envolvendo um padre, um pastor e um rabino. Embora isso fosse incrivelmente irritante, era perfeito para interrogar criminosos".
Publicado originalmente em 1991, "Divisão de Homicídios" mudou os rumos da carreira de Simon. Em 1993, o livro inspirou a criação de uma série, chamada "Homicídio", exibida em sete temporadas na rede NBC, até 1999. Ainda tateando no riscado, ele elaborou alguns roteiros para a série.
No Brasil, a série foi apresentada na TV Manchete e pelo canal pago USA, hoje Universal Channel. Em 2023, a série chegou finalmente a uma plataforma de streaming, a Peacock, infelizmente não disponível no Brasil.
Já fora do jornal, em parceria com Ed Burns, um ex-policial da divisão de homicídios, Simon publicou "The Corner", uma investigação sobre uma região de Baltimore dominada pelo tráfico de drogas. O livro de 1997 virou uma minissérie da HBO em 2000, mas o título não está mais disponível no Max.
A obra-prima de Simon nasceu em 2002. "The Wire", ou "A Escuta", uma série de 60 episódios em cinco temporadas, mergulha com mais profundidade e complexidade em todos os temas que o jornalista abordou nos trabalhos anteriores e em sua vida como repórter. A série pode ser vista no Max.
Uma das realizações mais ambiciosas da chamada era de ouro da TV americana, é uma série policial, mas vai muito além dos crimes investigados, com a clara intenção de provocar debates públicos.
Simon mostra os projetos absurdos para restringir o tráfico de drogas, discute a decadência do porto de Baltimore, expõe o sistema público de educação, descreve as minúcias do jogo político na cidade e, num fecho de ouro, aponta a câmera para próprio jornal em que trabalhou para iluminar a crise da imprensa escrita e a tentação do sensacionalismo.
De volta a "Divisão de Homicídios", é preciso registrar o trabalho da editora Darkside, que preenche uma lacuna importante com a publicação deste livro no Brasil, tantos anos depois da edição original. Com 740 páginas, em capa dura, muito bem traduzido por Diego Gerlach, o catatau inclui um texto altamente esclarecedor de Simon escrito em 2006, 15 anos depois do lançamento.
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