domingo, 12 de janeiro de 2025

ADILSON PAES DE SOUZA E GABRIEL FELTRAN - PEC da Segurança, encampada por Lula, é projeto de extrema direita, FSP

 Adilson Paes de Souza

Doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano e pós-doutorando em psicologia social pela USP

Gabriel Feltran

Professor titular da Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris) e diretor de pesquisa no CNRS (Centro Nacional da Pesquisa Científica da França). Autor, entre outros livros, de "Stolen Cars: a Journey Through São Paulo's Urban Conflict"

[RESUMO] Imersa em corrupção, degradação institucional e letalidade, a segurança pública do Brasil é pior que o inferno de Dante, sustentam autores. A execução de um homem no aeroporto de Guarulhos, a prisão de militares suspeitos de planejar o assassinato do presidente e a PEC da Segurança Pública, proposta pelo governo Lula (PT), expressam a falência da política de segurança do país.

Dante Alighieri, protegido pelo poeta Virgílio, visitou o inferno e nos contou seu périplo pelos nove círculos. O elevado grau de degradação da sociedade da sua época, instituições inclusas, se mostrou por inteiro. Nada de mau lhe aconteceu.

segurança pública do Brasil é bem pior que o inferno de Dante. Nela, fazemos os mesmos périplos por círculos infernais e repetitivos há décadas, mas não temos nem a proteção do poeta nem, muito menos, a da Constituição. Estamos entregues à nossa própria sorte, assistindo a casos sequenciais de violência e de destruição rápida das instituições, governados agora por aqueles que deveriam ser objeto de investigação.

Policial militar durante operação em Manguinhos, na zona norte do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 8.jan.25/Folhapress

Vale relembrar aqui três episódios recentes. No primeiro, uma organização criminosa —não sabemos ainda se o PCC ou se formada por policiais— executa um homem com tiros de fuzil, à luz do dia, no desembarque do aeroporto de Guarulhos. O homem assassinado colaborava com o Estado em investigações sobre crimes bilionários da principal facção do país, que também denunciava a participação de policiais, e não tinha nenhuma escolta estatal.

Ou tinha? Não sabemos o que pensar, porque quem o escoltaria seriam policiais militares contratados por ele mesmo, a título privado. Esses seguranças privados (ou policiais?) haviam sido recrutados por outro policial da ativa, empresário de segurança privada e, ao mesmo tempo, investigado pela Corregedoria da PM.

É ainda mais difícil entender por que essa escolta não estava presente na chegada do seu protegido ao aeroporto. Pura incompetência? Não surpreenderia. Ou será que o que ele dizia em sua delação já não interessava nem à facção, nem a parte das polícias, nem mesmo aos seus seguranças? Não sabemos, dadas as tantas camadas de absurdo do caso. Tampouco sabemos por que as investigações não avançam, bloqueadas por disputas sórdidas dentro da própria instituição policial.

Inocentes foram baleados durante o atentado, e um deles, motorista de aplicativo, morreu no dia seguinte. Muito mais que um "acerto de contas" entre bandidos, a ação dá um recado para todos nós: a racionalidade que define quem deve viver ou morrer não emana, no Brasil, da lei. O que interessa são as cifras, os números, o dinheiro. A força do regime de acumulação criminal, atuando em relação direta com agentes do Estado, supera de longe a força republicana das instituições.

Como poderia ser diferente se a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo é dirigida por um policial expulso da Rota por matar demais, que construiu carreira política demonstrando seu orgulho por ter matado demais e agora frequenta festas em hotéis de luxo na Europa?

Mal termina o primeiro episódio e, no segundo, temos quatro oficiais de alta patente do Exército e um policial federal presos suspeitos de planejar o assassinato do presidente da República, do vice-presidente e de um ministro do STF. Apenas isso, no bojo de um plano de golpe militar.

Essa trama, que envolve a alta patente do Exército, comprova a falta de controle republicano sobre as Forças Armadas e sobre as polícias, especialmente as militares. Se as cinco pessoas presas arquitetaram o plano, agiam em nome de quem e de que projeto de poder? Quem seriam os executores? Os nomes dessas pessoas precisam ser revelados e todas devem ser julgadas. Se condenadas, devem ser expulsas das Forças Armadas sem direito aos salários vitalícios garantidos pela aberração do instituto da "morte fictícia".

Vale notar que essas prisões aconteceram alguns dias depois de um novo atentado terrorista em plena praça dos Três Poderes, em Brasília. Não foi o primeiro nem o segundo dos últimos tempos, mas tudo se passa como se fosse mais um caso isolado. Haveria uma ideologia unificando esses atentados às instituições? Seria ela a normalizada ideologia de extrema direita que prega "assassinar bandido", que chama opositores políticos de bandidos e que embala o secretário de Segurança Pública de Tarcísio de Freitas (Republicanos), cuja gestão dobrou a letalidade policial em São Paulo?

Tampouco sabemos, infelizmente, por que não há investigações oficiais que relacionem esses casos e suas motivações ideológicas, econômicas e político-institucionais.

O terceiro episódio dantesco está consubstanciado na tramitação da chamada PEC (proposta de emenda à Constituição) da Segurança Pública. Engana-se muito quem acredita na medida, divulgada com alarde e pompa, como uma boa iniciativa do governo federal para garantir melhor governança da segurança pública no Brasil.

De cara, vejamos que a PEC não toca em nenhum dos quatro pontos centrais que estão na origem do nosso desastre securitário, segundo o consenso entre especialistas: mercados ilegais em expansão; polícias corrompidas, politizadas e autônomas frente a qualquer controle; sistema prisional dominado por facções e, assim como elas, em expansão; incapacidade de garantir soberania estatal sobre territórios e de esclarecer crimes letais.

Além disso, a PEC mantém a mesma estrutura falida de duas polícias existente nos estados e no Distrito Federal. Corporações que não apenas não conversam e cooperam entre si como disputam recursos públicos e privados, em uma espiral de militarização. A PEC também silencia sobre o papel das Forças Armadas nas atividades de segurança pública. Há receio em tocar nesse tema?

A PEC ainda acirra a desconfiança e a competição entre os órgãos, agora em nível federal, atacando indiretamente a PF (Polícia Federal), o único órgão que se destaca por ações contra corrupção policial, ao propor a transformação da PRF (Polícia Rodoviária Federal), a mais politizada à extrema direita das polícias, em polícia ostensiva federal. O recado é que a ênfase na investigação não bastaria, seria preciso militarizar.

Espera-se mesmo que, com isso, a proposta republicana do Susp (Sistema Único de Segurança Pública) será fortalecida? Ou será mais provável a indução federal da autonomia definitiva das polícias?

No final de 2023, o governo federal já havia perdido uma ótima oportunidade de mexer no sistema, quando preferiu a conveniência política de se aliar à bancada da bala para aprovar a Lei Orgânica das PMs, que já foi objeto da nossa crítica nesta Folha.

Tal medida exacerbou a militarização das forças de segurança e induziu a militarização e a privatização da ordem pública no plano municipal, notadas nas eleições do ano seguinte. A nova norma também afrouxou ainda mais o controle, com a consequente ampliação da autonomia e da ideologização das polícias, que, evidentemente, aparecem agora como força importante nos bastidores da PEC da Segurança Pública.

O governo Lula (PT) demonstra não ter nem capacidade técnica para compreender nem capacidade política para controlar a área mais relevante na garantia da soberania nacional e da nossa frágil democracia.

As ações mais relevantes do governo na segurança pública não parecem sequer partir de seus quadros, mas das bases de poder do sistema realmente existente, que emana dos matadores de rua instilados pelo ódio e sustentados por ideologias de extrema direita. Indiretamente, o governo federal acena com a legitimação desses matadores que, hoje, ocupam cargos de liderança em instituições e lutam, em cada estado, contra os atores da segurança com algum apreço pela Constituição Federal.

O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski (esq.), o vice-presidente Geraldo Alckmin e o presidente Lula durante reunião, no Palácio do Planalto, com governadores sobre segurança pública - Pedro Ladeira - 29.out.24/Folhapress

Sustentados ideológica, econômica e politicamente pela extrema direita, matadores reais se posicionam no aeroporto de Guarulhos, na praça dos Três Poderes e mesmo como formuladores tácitos de uma PEC. Pior, eles nem ao menos são notados. A PEC da Segurança é projeto dessa extrema direita, tocado hoje com apoio do governo Lula e travestido de reforço do Susp.

Sejamos claros: a indução nacional da política de segurança pelo Susp só é desejável se for feita substantivamente —portanto, na contramão das políticas de morte pública e lucro privado existentes hoje. Reforçar nacionalmente essas políticas não interessa nem ao país nem a qualquer força política democrática, nem mesmo a partir de um prisma pragmático.

No entanto, temos visto essas forças supostamente democráticas se juntarem, a cada dois anos, aos atores que apostam no medo e no caos para auferir lucro político do populismo penal. A pauta da segurança pública ganha mais relevo a cada eleição, à medida que a situação de insegurança piora.

Incrivelmente, em vez de os atores hoje dominantes na área serem responsabilizados por essa piora, eles têm sido premiados social, política e economicamente. Da direita à esquerda, o discurso repressivo —enviar mais recursos a polícias matadoras— é o mesmo.

Sabemos que a falência da segurança pública, como a de outras políticas públicas, é uma atividade rentável. Empresas privadas proliferam e obtêm lucros robustos com suas mais variadas atividades: segurança de edifícios e condomínios, escolta de cargas, análise de riscos, planos municipais, segurança de executivos, blindagem de veículos, escolta de valores, vigilância eletrônica etc. A lista é tão grande quanto o potencial de crescimento dos negócios. Quanto mais insegurança pública, maior tende a ser o lucro privado.

Agentes públicos, que deveriam atuar em prol da segurança, são agora guiados por dinheiro. Quanto menos controle público sobre a segurança, maior a liberdade para lucrar. Políticos ávidos por poder e dinheiro gostam da ideia, exploram o medo e ganham votos e devotos.

Nos três episódios que abordamos, tão diferentes entre si, há agentes estatais lutando para que não se investigue, para que não se caminhe na direção substantiva e para que a opacidade institucional e a insegurança sejam aprofundadas.

Há ainda, felizmente, os que se opõem a eles, dentro e fora das instituições. Por quanto tempo eles suportarão esse inferno?

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