Les grand pays le sont pour l’avoir voulu (Charles de Gaulle).
Nós, brasileiros, não temos como tangenciar a proposição enunciada pelo general De Gaulle: queremos ou não queremos ser um grande país?
Ao empregar o verbo vouloir (querer), o general implicitamente afirmou tratar-se de um problema de vontade. Expressão, aliás, que nos é muito familiar. Sempre que tentamos entender nosso atraso, alguém vitupera que nos falta “vontade política”. Peço vênia ao leitor para destrinchar um pouco essa fórmula em benefício da clareza e do realismo. Imaginar que uma nação inteira possa manifestar uma vontade homogênea a respeito de alguma coisa é bom como retórica (Ernest Renan: “a nação como um plebiscito de todos os dias!”), mas deixa a desejar quando se trata de elucidar um objetivo de tamanha grandeza.
A mim me parece que “querer o desenvolvimento” implica pelo menos quatro requisitos. Primeiro, um conjunto de lideranças e um sistema de instituições que se incumba de fixar prioridades realistas para o país, admitindo, naturalmente, espaço para discordâncias, mas ao mesmo tempo rechaçando alternativas sem pé nem cabeça. Segundo, uma elite (na acepção neutra, sociológica do termo) que assegure a normalidade das instituições, integrada por indivíduos cultos, dotados de caráter e de um genuíno senso de responsabilidade em relação à coletividade. Terceiro, um conjunto razoavelmente coerente de ideias (a quem prefira, o anacrônico ideologias) que legitime e esclareça tais ideias para o subconjunto mais amplo possível da sociedade. Quarto, líderes que personifiquem (carismatizem) a aspiração desenvolvimentista, convocando a sociedade para um padrão civilizado de convívio e de bem-estar.
Se o que De Gaulle pretendeu ao redigir a sentença em epígrafe foi expressar suas dúvidas quanto ao Brasil vir um dia a ser “um grande país”, penso que seríamos forçados a lhe dar razão. Temos, sem dúvida, uma minoria de grosseiros que se compraz em humilhar cidadãos de condição social inferior (“você sabe com quem está falando?”). Admitindo, ademais, que elites na acepção indicada são indispensáveis como um muro de arrimo para a estabilidade das instituições, atualmente não temos. Decididamente, não. Chego mesmo a cogitar que nossa estrutura institucional esteja em franco retrocesso.
Nossas ideias – ou, caso prefiram, o debate sobre o modelo de crescimento –, quando mal emergíamos da monocultura e da escravidão, eram anêmicas, e nem vejo como poderiam ter sido diferentes. Em seguida, sob o signo do positivismo de Augusto Comte e do nacional-desenvolvimentismo de Getúlio Vargas, tiveram uma efêmera serventia como orientação para o começo, ou seja, para o que os economistas denominam a “fase fácil” da industrialização. Hoje, à falta de melhor expressão, vejo-me obrigado a descrevê-las como uma incompreensível maçaroca. Insistimos num modelo de crescimento lastreado no investimento público, quando a tecla quase única da imprensa e do governo é qual será o tamanho do buraco orçamentário do ano que vem. Ou seja, continuamos enrolados numa mescla de ideologias peremptas que apenas sobrevivem em certos ambientes universitários, notadamente nas ciências humanas, e em alguns dos países que lhes deram origem.
É certo que não atingimos uma profundez comparável àquela em que hoje vivem os argentinos. Eles, que tudo tinham para crer na agropecuária, despencaram, e poucos se atrevem a especular sobre quando voltarão à tona. Nós, que durante décadas menoscabamos nosso potencial agrícola, ainda estamos com o pescoço acima da água graças ao agronegócio, complementado pela exportação de minérios. Não sabemos como criar empregos para uma população que ultrapassa os 200 milhões e já um tanto envelhecida, como há poucos dias mostrou o IBGE. Mas, bem ou mal, ainda estamos boiando, isso é um fato.
Para tocar no tema de um convívio social pacífico, o leitor notará que não me faltou coragem. Mas pode e deve repreender-me por haver até aqui me omitido sobre todos os pontos relevantes para no mínimo a metade inferior da distribuição de renda. Convívio pacífico com a criminalidade crescendo a toda brida é, obviamente, um disparate. Imaginar que os desprovidos da sorte possam apreender noções que postulamos como necessárias à construção de um “grande país” é um disparate do mesmo tamanho.
Admitamos, entretanto, que mesmo o nosso tradicional otimismo e nosso proverbial senso de humor têm tido razões para se sustentar. Dias atrás, uma celebridade econômica de cujo nome no momento não me recordo declarou que nos próximos anos o crescimento econômico brasileiro será alavancado pelo Nordeste. Exultai, nordestinos! Rejubilai-vos! Assim o queira Deus. Salvo melhor juízo, o economista-chefe de um grande banco norte-americano prognosticou que o Brasil será a Suíça da América Latina. Tranquilizei-me ao reler a frase. Ele disse Suíça “da América Latina”, e passou ao largo do horizonte temporal em que atingiremos tão benfazejo estágio. Tudo estará bem se acabar bem; o que não podemos é esquecer as sábias tiradas do Marechal De Gaulle.
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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRAS DE CIÊNCIAS
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