segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Joel Pinheiro da Fonseca - O Enem é ideológico?, FSP

 Sinais de que o ano se aproxima do fim: decoração de Natal nas lojas e discussões sobre a "ideologia" no Enem. Desta vez não foi diferente: a bancada do agro já pediu que o MEC anule três questões da prova, por terem "cunho ideológico".

Nos anos anteriores, a preocupação com a "ideologia" (fantasma que ninguém define direito) na prova se centrava em temas de sexualidade —lembremos da pergunta sobre o dialeto LGBT, em 2018, que fez tremer a família brasileira— e da ditadura militar, que chegou a ser banida da prova.

No campo da sexualidade, este Enem não ousou. Já a ditadura voltou a figurar, como deve ser. Ideológica era a decisão de censurar menção a um período importante de nossa história recente.

Estudantes aguardam abertura de portão da Unip (Universidade Paulista) na Aclimação, em São Paulo; Enem é uma das principais portas de entrada no ensino superior
Estudantes aguardam abertura de portão da Unip (Universidade Paulista) na Aclimação, em São Paulo; Enem é uma das principais portas de entrada no ensino superior - Zanone Fraissat - 5.nov.23/Folhapress

Há boa variedade de temas, inclusive vários que destoam de opções ideológicas simplórias: a opressão de mulheres afegãs com a volta do Taleban, a política da China para esmagar minorias étnicas, o imperialismo dos incas, a devoção popular da Cavalgada de Santana. A questão 71, uma das três que revoltou a bancada do agro, é uma das mais interessantes: apresenta dois pontos de vista opostos —um otimista, um pessimista— sobre a nova corrida espacial protagonizada pelos super-ricos. O que há de ruim nisso?

Uma das outras perguntas (70) que incomodou o agro fala do desmatamento na Amazônia, mas com uma nuance importante: diz que a soja não é responsável por ele. Discutir o desmatamento já é "ideologia"? Sobra a questão 89, que realmente traz uma visão bastante negativa do agronegócio moderno, embora isso venha como a opinião de um autor a ser lida e interpretada pelo estudante, e não como a afirmação de um fato.

Na seleção de autores, aí sim, ficam claras as preferências ideológicas do Enem: Sartre, Foucault, Merleau-Ponty, Paulo Freire, Milton Santos. São autores de referência, e não há nada a se objetar em sua inclusão, mas falta diversidade. Em particular, faltam vozes mais à direita. A prova quase nada afirma sobre a realidade; fora uma ou outra questão, temos só leitura e interpretação de textos.

Sendo assim, o mosaico de textos deveria abarcar a diversidade ideológica da produção intelectual do país e do mundo, algo que só virá se nossa academia passar a valorizar o debate de ideias, e não a mera reprodução das mesmas referências.

O Enem me fez lembrar da minha passagem pela academia brasileira, na graduação e mestrado em filosofia. O estudante não é, em nenhum momento, chamado a se posicionar. É-lhe pedido apenas que interprete diferentes autores. O acadêmico brasileiro se esconde atrás das citações, deixando ver suas preferências apenas na escolha dos comentadores que citará. É o mesmo espírito do Enem.

E aí mora o maior problema: toda essa sofisticação na leitura de textos acaba impedindo a referência à realidade, sem a qual nada daquilo faz sentido. O que costuma ser visto como um mérito da prova —não demandar "decoreba"— é uma fraqueza. Ela exclui mais do que inclui. A leitura dos textos é difícil. As respostas são ambíguas. Não raro, mais de uma se encaixa. Caetano Veloso, que tem duas músicas citadas numa questão, disse que não conseguiria responder. Para ele, todas as alternativas estão certas.

O que será mais democrático: lançar o estudante num mar de textos, alguns com palavras difíceis e temas de que ele nunca ouviu falar, ou cobrar um pouco menos disso e um pouco mais de datas e fatos importantes da nossa história e do nosso presente? Se ele não sabe quem foi Tiradentes ou quando começou a ditadura, qual a chance de que consiga ler e interpretar Foucault?

Nenhum comentário: