domingo, 5 de novembro de 2023

A internet que vicia, FSP

 Vitória Oliveira

Doutoranda em direito pela USP, é pesquisadora do Grupo Direito e Politicas Públicas

Beatriz Kira

Professora de direito na Universidade de Sussex (Reino Unido) e pesquisadora do Grupo Direito e Politicas Públicas

Diogo R. Coutinho

Professor da Faculdade de Direito da USP e pesquisador do Grupo Direito e Politicas Públicas

Recentemente, Nova York, Califórnia e dezenas de outros estados norte-americanos ajuizaram ações contra a Meta alegando que a empresa enganou repetidamente o público sobre os perigos que suas plataformas Instagram e Facebook representam para a saúde mental de crianças e adolescentes, incluindo o risco de vício e uso compulsivo das redes sociais.

Essa resposta jurídica baseia-se em evidências científicas: há cada vez mais indícios de danos à saúde causados pelo vício na internet.

O caso traz à tona uma questão de política pública urgente, mas ainda pouco explorada no nosso país: de acordo com dados do levantamento Global Overview Reportbrasileiros gastam, em média, nada menos que 9 horas e 32 minutos por dia utilizando a internet. Usamos o WhatsApp mais do que americanos, franceses, australianos e canadenses juntos. Também gastamos duas vezes mais tempo que os americanos no Instagram —mais de 15 horas por mês. Dados da Statista indicam que o Brasil é o segundo país que mais usa TikTok no mundo —atrás apenas da China, nação de origem do aplicativo.

Adolescente usa smartphone na cidade de Egan, Minnesota, nos EUA - Annie Flanagan/NYT - NYT

Esses indicativos da falta de controle sobre o tempo que passamos ligados à internet não são fruto do acaso. Há um modelo de negócios por trás: na economia da atenção, "enganchar" usuários virou parte do jogo. Ou seja, o uso compulsivo e, em última instância, o vício, não são apenas efeitos colaterais negativos para os usuários. Preocupantemente, se tornaram objetivos estratégicos para ganhos econômicos em algumas plataformas digitais, especialmente em redes sociais. A população mais jovem é particularmente vulnerável.

Ainda que hoje não tenhamos dimensão de todos os danos, a história da regulação do cigarro nos mostra que não podemos deixar que a indústria domine as discussões sobre saúde pública. De forma análoga às estratégias adotadas pelos fabricantes de cigarro nos anos 1950 e 1960 (e também pelos fabricantes de alimentos ultraprocessados), a indústria de tecnologia aposta na agenda da autorregulação para evitar responsabilização governamental. Essa estratégia, apelidada de "armadilha da auto-ajuda" pela pesquisadora Gaia Bernstein, envolve a adoção de mecanismos como os alertas de uso prolongado ou restrições de tempo de tela.

Ainda que algumas dessas ferramentas possam, de fato, auxiliar os usuários a diminuírem seu uso, elas se mostram insuficientes, pois impingem o ônus de "controle" nos usuários, em vez de modificar os estímulos que tornam a plataforma viciante. Ademais, tais mecanismos de limitação do tempo de tela usualmente coexistem ou estão contaminados por padrões obscuros ("dark patterns"), termo cunhado para definir truques de design e que nos induzem a fazer coisas que não gostaríamos de fazer.

Para prolongar o tempo de uso de seus usuários, plataformas podem empregar técnicas como rolagens de tela (que, movida com a ponta dos dedos do usuário, nunca termina de mostrar conteúdos), "defaults" prejudiciais ao usuário e autoplay. Essas estratégias podem ser caracterizadas como "design viciante"Apesar de sutis, os truques não são banais. A literatura, cada vez mais, demonstra o uso generalizado e a eficácia de estratégias como essas em sites e aplicativos.

No Brasil, a Secretaria de Políticas Digitais lançou uma importante consulta pública a respeito do uso de telas e dispositivos digitais por crianças e adolescentes (plataforma "Participa + Brasil"). Essa iniciativa pode representar uma janela de oportunidade para intervir e remediar os danos que o uso excessivo da internet causa, especialmente em populações vulneráveis.

Seja pelas mudanças trazidas no uso da internet com a pandemia de Covid-19, seja com o avanço de regulações de plataformas digitais, este é o momento adequado para discutirmos, também no Brasil, qual futuro digital queremos. Afinal, se a internet pode ser vista como uma espécie de droga, precisamos regulá-la para garantir que a nossa atenção, recurso escasso e valioso, seja direcionada aos nossos melhores interesses, não perdida em ansiedade e horas inúteis de rolagem infinita.


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