quarta-feira, 1 de junho de 2022

O chá, Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo


01 de junho de 2022 | 03h00

Você gosta de chá? Entre nós surge o desejo a partir do frio (ou imagino que a bebida possa tanto ajudar a atrair quanto a afastar o sono). Esse seria o hábito do chá no Ocidente e pode, claro, incluir alguma socialização. 

Kakuzo Okakura escreveu O Livro do Chá (Estação Liberdade) para falar de outra maneira. Surge um ritual. É uma cerimônia em que o universo da sala, os utensílios, a ordem de tudo para o tempo do mundo. Por quê? Nas palavras do autor: “Quando consideramos quão pequena é a xícara do prazer humano, quão rápido ela transborda de lágrimas, quão fácil ela se esgota em nossa sede insaciável por infinitude, deixando apenas borra, não deveríamos nos censurar por darmos tanta importância à xícara de chá” (p. 30-31). Para Kakuzo, trata-se de celebrar o efêmero e a “formosa tolice das coisas”.

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Outro traço interessante do espaço do chá: a assimetria. Se é curva a porcelana, será anguloso o vaso. As coisas devem se revelar aos poucos Foto: Wikimedia Commons

Ele foi um observador de dois mundos, já que viveu entre o Japão e o Ocidente. O olhar comparativo recaiu sobre hábitos decorativos das flores. Entre nós toneladas de flores cortadas e, ato contínuo, lançadas fora. Na casa de chá nipônica, há uma flor em um lugar especial, um arranjo simples que resume, em poucas coisas, tudo o que é possível ver. 

Outro traço interessante do espaço do chá: a assimetria. Se é curva a porcelana, será anguloso o vaso. As coisas devem se revelar aos poucos. É necessário o olhar atento. O tempo atarefado do mundo de fora se interrompe. A limpeza absoluta sem perder a naturalidade. A desigualdade de formas para fazer nossa percepção não recair na similaridade contínua. Um momento congelado em meio a forças estetizantes. Interrompa-se a guerra, suspendam-se os negócios; ignoremos os atritos que se multiplicam no mundo externo. Ali há outro universo com regras distintas. Tudo isso integra o “chaísmo”, o culto do chá.

Alguém pode dizer que o culto do chá e das regras e estéticas é a atualização dos brioches de Maria Antonieta. Ao ler o livro, eu passei a pensar o contrário: é pelo mundo ser difícil, tomado de dor e violência, que a pausa ritualizada deixa de ser uma expressão performática e desponta como filosofia de vida. Em um universo feito de delicados bonsais e sons de harpas angelicais, a cerimônia do chá seria, talvez, um sintoma aristocratizante vazio, um roteiro sem alma e excessivo. Como a vida é um trabalho de Sísifo: um rolar de pedras laborais, boletos, dramas familiares, escândalos políticos e falta de dignidade generalizada, a xícara de chá se transforma em pausa indispensável para a sanidade. Na estrada de 2022, a sanidade psíquica deixou de ser um dom do universo e virou uma conquista pessoal diária. A esperança pode endurecer e, pelo menos, pode ser amolecida com chá. 

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