sexta-feira, 3 de junho de 2022

Mauro Calliari - Na beirada de São Paulo, a esperança de uma cidade mais viva, FSP

 Como tantas outras na cidade, a região do Cantinho do Céu é carente. Como tantas outras, tem um nome que evoca paz e serenidade. Como tantas outras, surgiu às margens da legalidade. Como poucas, porém, está sendo objeto de uma intervenção que vai além da infraestrutura.

Originalmente, as margens da Billings eram totalmente cobertas pela mata atlântica. Na década de 1980, empreendedores particulares subdividiram ilegalmente uma chácara e venderam lotes para a população de baixa renda. Assim, uma única propriedade deu origem a três bairros, Parque dos Lagos, Jardim Gaivotas e Cantinho do Céu, com 40 mil pessoas em 10 mil casas, muitas das quais em áreas de risco, outras bem na beira da represa. As casas ocupam todo o espaço disponível dos terrenos de 125 metros quadrados, com um, dois ou mais andares. Na ausência de calçadas, pedestres disputam espaço com motos, carros, vans escolares, ônibus e caminhões de entrega. As árvores sumiram.

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Obras do parque Linear Cantinho do Céu, às margens da represa Billings, na zona sul de São Paulo
Obras do parque Linear Cantinho do Céu, às margens da represa Billings, na zona sul de São Paulo - Divulgação/Sehab

A ideia de requalificar a área não veio por um plano estratégico, mas sim para fazer frente a duas demandas. A primeira, dos moradores, que brigavam por asfalto, água, esgoto e coleta de lixo. A segunda foi uma ação civil pública que na década de 1990 exigiu a remoção de casas por causa do risco ambiental. Diante da impossibilidade de se reverter a situação, diminuindo a densidade e até removendo tanta gente que morava havia anos no local, a Secretaria de Habitação de São Paulo elaborou um plano urbanístico mantendo os lotes existentes e propôs um sistema de drenagem em fundos de vale, eliminação de áreas de risco e implantação de espaços públicos.

As obras na região começaram em 2005, como parte de um programa municipal chamado Mananciais, que ganhou impulso com recursos federais adicionais a partir de 2010. A parte invisível fica embaixo: são obras de infraestrutura como a integração na rede de água e esgoto. A parte visível está nas ruas —pavimentação, coleta de lixo, equipamentos— e nas margens —o projeto de paisagismo.

Entre a água e as casas, o parque linear que surgiu na borda da represa é uma boa surpresa. Ali, há árvores, decks de madeira, bancos, anfiteatro, campo de futebol, pista de skate, trilhas e espaços abertos. No futuro, serão mais de oito quilômetros de bordas interligadas. Nas áreas em que já foi instalado, o parque é um alento, pela qualidade dos materiais e pelo cuidado com os detalhes: bancos confortáveis, piso acessível, acabamento digno. Pessoas sentam no deck, passeiam ou empinam pipa.

Num pequeno passeio de barco ao longo das margens, dá para ver a beleza original da região. Ao longe, a ilha do Bororé, uma porção rural de São Paulo, e, na outra margem, parte da vegetação ainda intocada. Para a secretária Executiva para Mananciais da Sehab, Elisabete França, a intervenção é uma oportunidade de oferecer à população local um espaço de qualidade, que pode até vir a ser parte das opções de lazer de paulistanos que hoje nem conhecem a região.

A história do Cantinho do Céu faz pensar sobre a complexidade de São Paulo e suas contradições.

A primeira é o contraste entre a cidade ‘formal’ e a ‘informal’. Durante décadas, loteamentos legais e ilegais, favelas e outras ‘habitações subnormais’, como são chamadas, foram surgindo cada vez mais longe do centro, sem estrutura nenhuma e, o que é pior, sem o reconhecimento de sua existência. Era comum ver grandes áreas vazias nos guias de rua, como se casas, ruas e pessoas simplesmente não existissem. Nas últimas décadas, os conceitos mudaram. Hoje, fala-se em integração dessas regiões à cidade e não mais em remoção, como era comum até a década de 1980.

Projetos de reurbanização de favelas, com cuidado urbanístico, como os feitos em Paraisópolis ou Heliópolis, as maiores da cidade, trazem melhorias que são bons exemplos dessa integração. A própria concessão de títulos de posse dos terrenos, parte do projeto, trará à legalidade propriedades que hoje, na prática, ainda são irregulares.

Essa história também expõe outra faceta característica da urbanização paulistana: uma legislação muito restritiva associada a uma fiscalização pífia. Assim, nada pode ser construído em determinado local, mas tudo se constrói. A leniência histórica do poder público ajudou a gerar uma falsa dicotomia: habitação ou preservação.

Se é preciso encontrar soluções para moradias dignas, não é possível ignorar a questão mais básica de toda a cidade do mundo: a água. A Billings abastece o ABC e parte de São Paulo. Ocupações irregulares, que jogam dejetos na água, tanto contribuem para a poluição como acabam se prejudicando por causa dela. Em 2017, um estudo com 350 moradores de ocupações irregulares nas margens da represa mostrou que mais da metade tinha infecções intestinais e doenças de pele relacionadas à água. Não é uma escolha entre o meio ambiente e o desenvolvimento. Ambos vão ter que caminhar juntos ou não teremos uma cidade no futuro.

O trabalho também mostra um aspecto raro na gestão municipal, a continuidade. Desde a conclusão da primeira fase, passaram-se mais de dez anos e agora o projeto já está na fase 7. Eu havia feito uma visita nessa época e é um alívio constatar que o trabalho foi mantido mesmo diante de mudanças nas gestões e remanejamento de verbas. Na equipe da Secretaria de Habitação, há uma arquiteta com responsabilidade exclusiva pelo acompanhamento do projeto. Além dela, uma equipe de assistentes sociais negocia com os moradores. É uma conversa difícil. Barracos surgem literalmente da noite para o dia e se estabelecem em meio aos tratores, se equilibrando na beira da represa. Diante da precariedade e do risco, quase 700 famílias tiveram de ser reassentadas. Apesar de poderem optar por uma verba de aluguel ou um apartamento em conjunto habitacional, várias famílias temem ficar longe do local que conhecem.

Finalmente, vale constatar uma preocupação com a qualidade das intervenções. O escritório Boldarini Arquitetos Associados é o responsável pelo projeto desde o início. Numa volta pela região, o arquiteto discorre sobre os desafios do território ou a importância do espaço público para as pessoas, enquanto aponta para um detalhe de um banco, a particularidade do material do piso ou as espécies de árvores nativas a serem preservadas.

Uma intervenção como essa vai custar mais de R$ 220 milhões. É complexo e caro, mas escancarar os problemas, aceitar a complexidade e alocar os recursos certos parece ser o único jeito de fazer mudanças que façam alguma diferença na cidade.


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