Novichok: graças ao Kremlin atual, o mundo conhece este grupo de substâncias neurotóxicas que tem eficácia quase garantida na eliminação de opositores do regime. Falo de eficácia quase garantida porque, apesar de tudo, Alexei Navalni, o principal rosto da oposição a Vladimir Putin, conseguiu sobreviver depois de ser alvo de um atentado em 2020.
Eis a história do espantoso "Navalny", de Daniel Roher, disponível na HBO –e eu confesso que nunca assisti a um documentário assim.
Vemos Navalni, em pleno voo interno na Rússia, sentindo dores lancinantes e colapsando. O avião aterra de emergência. Navalni é levado para o hospital, mas a família e a sua equipe exigem tratamento no exterior. Navalni é transferido para a Alemanha. Sobrevive.
Se o documentário fosse apenas isso, já seria instrutivo e marcante: a vida é barata por aquelas bandas.
Mas o melhor, ou o pior, vem depois: recuperado, Navalni começa a investigar quem tentou matá-lo. Rapidamente encontra os nomes, os rostos, até os números de telefone dos seus algozes.
E é então que se dá o momento definidor deste filme: Navalni, simulando que é um alto funcionário do Kremlin, conversa com o cientista responsável pelo seu envenenamento.
O cientista não desconfia de nada e, com uma candura arrepiante, explica ao próprio Navalni como se deu o ataque, o veneno utilizado, a quantidade ministrada, a peça de roupa onde foi colocado —as cuecas—, até a cor das ditas cujas —azuis.
Navalni e a sua equipe não sabem como reagir. Nem nós, que assistimos a uma confissão dessas ao vivo. Em poucos minutos, a natureza surreal e criminosa da Rússia de hoje manifesta-se de forma banal e involuntariamente cômica.
O que permite formular, uma vez mais, a pergunta que não quer desaparecer: como foi possível ao Ocidente iludir-se com a "nova Rússia" de Putin quando havia tantos sinais de que os seus vícios remontavam aos tempos antigos? Uma cegueira imperdoável.
Depois dessa prova, e de a tornar pública, Navalni resolve regressar à Rússia. Sem ilusões: ele sabe que, desembarcando no país, a prisão é o seu destino. Mas também sabe que não regressar seria uma vitória para Putin.
Quando o vemos, despedindo-se dos filhos e embarcando com a mulher rumo ao seu funesto destino, percebemos de que é feita a coragem. É feita de sacrifício.
A nossa cultura gosta de endeusar falsos heróis –gente que, no conforto do sofá, imagina que está derrubando gigantes nas redes sociais. Ou, inversamente, mártires que "dizem as verdades" no Twitter e são "cancelados" por isso.
Se "Navalny" servir para moderar o narcisismo desses comediantes, já terá cumprido metade da sua missão. A outra metade é esperar que Navalni saia um dia das masmorras para viver, ou até liderar, num país que merecia outra sorte.
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