Dora Cavalcanti
O ponto de partida para repensar se as férias em dobro de juízes e procuradores devem ou não ser mantidas implica reconhecer que as duas carreiras, em especial a primeira, se destacam pela responsabilidade e consequente desgaste emocional que demandam cotidianamente.
Tomar decisões sobre a vida, a liberdade, o trabalho e o patrimônio das pessoas é atribuição das mais delicadas. Além disso, diferentemente do que se ouve muitas vezes, integrantes do Poder Judiciário costumam sim trabalhar muito.
Estabelecidas essas premissas, é preciso pensar em caminhos que assegurem condições de trabalho compatíveis com a relevância das funções exercidas, mas dispensem os dois meses de férias, desde sempre percebidos pela sociedade como um privilégio injustificável.
Os questionamentos dos brasileiros vão da falta de isonomia à morosidade nos processos, mas talvez o mais cabal deles resida em uma pergunta simples. Se juízes e procuradores muitas vezes trocam parte dessas férias por dinheiro, não seria este um sinal inequívoco de que não precisam tanto assim de 60 dias por ano para repor suas energias? Isso sem falar que, aos dois meses de férias, se somam os 17 dias do recesso forense, totalizando quase 80 dias garantidos de descanso.
Segundo o Ministério da Economia, as férias dobradas de algumas carreiras custam R$ 4 bilhões por ano aos cofres públicos. Mesmo assim, o governo federal não incluiu juízes, promotores, procuradores e parlamentares na PEC 32, que trata da reforma administrativa. Existem três propostas de emenda à Constituição que tentam limitar o benefício. Entretanto, atendendo a associações de magistrados, o Congresso freou a tramitação das PECs alegando que a pandemia impede a discussão sobre o tema. Assim, vamos adiando a solução de problemas.
Analogias podem gerar falsos paradigmas, mas é comum comparar a carreira de juiz à de advogado, pois ambos têm a mesma formação acadêmica. Muitos dizem que para se dedicar à magistratura um juiz abre mão da possibilidade de acumular fortuna, mas sabemos que o estereótipo do advogado muito rico está bem longe de retratar a realidade da classe. No quesito descanso, então, o abismo não poderia ser mais gritante. A imensa maioria dos advogados autônomos dificilmente consegue tirar férias por não ter com quem dividir a responsabilidade por conduzir suas causas.
A definição das políticas públicas, desnecessário dizer, há de ser sempre pautada pelo interesse da coletividade. O aprimoramento do sistema de Justiça deve ter como eixo central a figura do jurisdicionado, que espera uma solução rápida e justa para o conflito em que se vê envolvido.
Um bom começo seria redirecionar recursos advindos do fim dos 60 dias de férias para a realização de mais concursos públicos. O 188º Concurso para a Magistratura Estadual de São Paulo, por exemplo, teve 23.122 inscritos para 310 vagas e 86 aprovados. Ou seja, somente 25% das vagas foram preenchidas.
Nessa perspectiva, dentre as evidências do desacerto dos 60 dias de férias, não podemos fechar os olhos para seu efeito mais lesivo: a corrosão da relação entre a sociedade e o Judiciário. Precisamos aprofundar com seriedade esse debate, buscando mecanismos que assegurem uma carga razoável de trabalho e o merecido descanso —sem que para isso se mantenha uma regra que agrava a distância entre os atores do processo.
É correto que juízes e procuradores tenham férias de 60 dias por ano? SIM
Se redução avançar, teremos o Judiciário mais lento na pacificação dos conflitos
A PEC que reduz as férias da magistratura e dos membros do Ministério Público inscreve-se no rol de proposições em curso com o objetivo de comprometer a efetividade do sistema de Justiça que, nos últimos anos, investigou, condenou e prendeu figuras que sempre haviam transitado ao largo dos tribunais.
Essa reação, que já despontava no Congresso, ganhou força com a pandemia. Discursos não republicanos, propalados no púlpito político, aproveitam-se do fato de as atenções estarem voltadas para o enfrentamento à crise sanitária para avançar projetos que, em outros tempos, seriam combatidos corpo a corpo, com o envolvimento estridente da sociedade.
Vamos nos ater a alguns casos atuais para denotar os contornos do ataque ao sistema de Justiça. O Parlamento derrubou em abril o veto ao dispositivo da lei anticrime que proibia a realização de audiências de custódia por videoconferência —o que levará a violações de direitos, em razão da superlotação carcerária, e à demora na resolução das demandas judiciais.
Outro exemplo é o substitutivo do novo Código de Processo Penal, que contém mais de 800 artigos e cuja comissão realizou audiências públicas no prazo concentrado de dez dias —uma verdadeira corrida sem motivo de urgência, posto que a proposta tramita há dez anos. Dentre tantas preocupações com a matéria, o que mais nos avilta são os artigos que mudam o procedimento do júri para a apuração de homicídios, levando à impunidade.
Também podemos citar a reforma administrativa, que, embora incida apenas sobre o Executivo, enfraquece as carreiras de Estado como um todo, com danos permanentes, sobretudo na qualidade dos serviços. Há, ainda, a tentativa de alteração da Lei de Lavagem de Capitais: o texto proposto no primeiro momento promovia retrocessos incalculáveis para o deslinde desse tipo de delito, com o condão de evitar a punição dos acusados.
Todas essas investidas pretendem, em um esforço coordenado, golpear o arcabouço jurídico-institucional que, a despeito de sua imperfeição, levou ao desmonte de esquemas de corrupção imemorialmente incrustados na administração pública. A diminuição das férias de juízes e procuradores entra nesse conjunto de medidas que, ao cabo, desembocarão em uma prestação jurisdicional menos eficiente. E o motivo é óbvio.
Magistrados e integrantes do Ministério Público, mesmo que imbuídos do mais elevado espírito público, só assumem as funções porque obtêm, em contrapartida, uma situação de trabalho que lhes garante segurança —e sem a qual poderão abandonar o serviço público, justamente por vislumbrarem, na iniciativa privada, a possibilidade de melhores condições de vida.
Tal debandada não seria um problema não fosse o Brasil um país incapaz de ocupar os cargos vazios já existentes. O que faremos com a vacância que emergirá da eliminação das prerrogativas das carreiras? Reportagens recentes já ilustram esse movimento de diáspora, do primeiro grau ao Superior Tribunal de Justiça.
A verdade é que as novas vagas também não serão preenchidas, de modo que todo o trabalho antes executado pelos servidores exonerados se acumulará nas mãos de quem segue no posto. O Brasil possui o maior número de processos entre as nações do mundo —80 milhões, uma média de 8,4 casos julgados por cada magistrado diariamente: 50 mil folhas por mês.
A consequência irreversível será um Judiciário congestionado e lento na pacificação dos conflitos, em prejuízo dos cidadãos.
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