quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Joe Biden, a ruína dos democratas, Elio Gaspari, FSP

 O sujeito não gostava de Donald Trump e, em 2020, torceu pela eleição de Joseph Biden. Passou quatro anos fingindo não ter percebido que ele estava senil e torcia para que não disputasse a reeleição. Enganou-se. Depois do seu desastroso desempenho no debate com Trump, a caciquia do Partido Democrata forçou Biden a sair da disputa, e o sujeito passou a torcer por Kamala Harris. Deu no que deu: os republicanos fizeram cabelo, barba e bigode na última eleição.

Aproveitando o ocaso de seu mandato, Joe Biden valeu-se de uma prerrogativa dos presidentes americanos e perdoou seu filho Hunter, que se reconheceu culpado por vários crimes, inclusive evasão fiscal. Era um caso de cadeia na certa.

Homem idoso sobe escada de avião presidencial
Joe Biden embarca rumo a Angola em última viagem internacional de sua gestão, ofuscada por perdão ao filho - Andrew Caballero-Reynolds - 2.dez.2024/AFP

A política americana está com parafusos soltos. Enquanto Biden perdoava o filho e atacava a Justiça, Trump anunciava que o empresário Charles Kushner, pai de seu genro, será embaixador em Paris. Seria apenas um caso de nepotismo, mas Papi Kushner passou dois anos na cadeia, por sonegação e crimes muito maiores que os de Hunter Biden.

Presidentes americanos perdoando delinquentes é coisa frequente, mas nunca houve caso de perdão familiar com ataques ao Judiciário. Com essa medida, Biden passa a disputar com Trump o título de segundo pior presidente no quesito comportamento pessoal. O primeiro lugar ninguém tira de Richard Nixon. Pelo conjunto da obra, a taça continua com George Bush II (2001-2009).

Presidente incapaz os Estados Unidos já tiveram. Woodrow Wilson governou de 1919 a 1921 depois de ter sofrido um acidente vascular cerebral que tolheu-lhe os movimentos e parte da visão.

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Joe Biden aliviou o filho sabendo que, com isso, abre a porta para uma política de perdões amplos, gerais e irrestritos com Donald Trump.

Está entendido que o Partido Republicano expôs seus problemas ao se deixar capturar por Trump. Resta agora a necessidade de se olhar para a crise do Partido Democrata. Ela vem de longe, desde 1993, quando o casal Bill e Hillary Clinton entrou na Casa Branca. Jogaram bruto e enriqueceram. Ele tem a maior marca na indústria dos perdões. Aliviou 450 condenados, inclusive o próprio irmão. O casal acumulou tamanho poder que conseguiu neutralizar a influência de Barack Obama no partido.

Biden colocou no próprio colo um perdão escandaloso e fez isso contrariando suas promessas públicas. Nada a ver com outro perdão, o de Gerald Ford a Richard Nixon, em 1974.

O republicano Ford era um político decente. Perdoou seu antecessor, obrigado a renunciar no rastro do escândalo dos grampos do caso Watergate. Fez isso para cicatrizar feridas que jogariam os Estados Unidos numa crise política duradoura. Trapaça da História: com Donald Trump na Casa Branca, o modo crise passa a ser uma rotina em Washington.

A política americana sempre teve uma sólida capacidade de regeneração. Quando parecia corrompida, depois do desastre dos democratas no Vietnã e da falência da presidência do republicano Nixon, apareceu Jimmy Carter, um governador da Georgia, pouco conhecido. Saído do nada, elegeu-se em 1976.

Para o sujeito que torceu por Biden, resta torcer para que o Barão de Itararé estivesse errado quando disse que, de onde menos se espera, é que não sai nada.

Rui Tavares - O problema é que a mudança mudou, FSP

 Muita gente conhece o início do Soneto 53 (outros atribuem-lhe o número 45) de Luís de Camões: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / Muda-se o ser, muda-se a confiança / Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades". Menos conhecido e citado é o seu fim, que diz: "E, afora este mudar-se cada dia / Outra mudança faz mor espanto / Que não se muda já como soía".

Talvez seja por duas palavras desusadas no português contemporâneo, "mor" por maior, e sobretudo "soía" com o sentido de ser hábito ou costume, que o fim do soneto é menos citável ou hoje menos compreensível. Porque o que Camões nos está a dizer é, fundamentalmente, que a mudança já não é o que era. A mudança mudou.

A imagem apresenta um retrato em tons de sépia de Luís de Camões, o célebre poeta português. Ele é representado com uma expressiva gola elizabetana e uma armadura parcial, sugerindo sua posição como um homem de letras e, possivelmente, um passado militar. Seu olhar é direto e sua barba e bigode são estilizados de acordo com a moda de sua época.
Retrato do poeta Luís de Camões - Reprodução

Não admira que Camões sentisse isso, uma vez que ele nasceu (segundo se crê, faz agora 500 anos) numa das épocas da história que mais mudanças viram, da expansão da imprensa às guerras de religião na Europa e sobretudo à noção para eles inédita do Novo Mundo.

Por isso ele sentia que a mudança já não era apenas aquela sensação a que os gregos antigos chamavam de "panta rhei", ou seja, de que "tudo flui", e com a qual ele começa o poema.

E nem sequer apenas uma mudança cíclica, expectável, como nas estações do ano, a que ele dedicou o meio do poema ("O tempo cobre o chão de verde manto / Que já coberto foi de neve fria / E, em mim, converte em choro o doce canto"). Nada disso: há também outro tipo de mudança, que não só muda as coisas, mas que muda a sua própria textura ou padrão.

Pensamos muito nas coisas que mudam, mas pensamos pouco na própria mudança em si. Mas fazemos mal porque este tema aparentemente vago e teórico tem sérias consequências práticas. É que, na verdade, não há só uma mudança, mas vários tipos de mudança. A alguns tipos de mudança, gostando ou não, estamos acostumados como humanos que somos.

São eles a mudança constante, incremental ou cíclica. A outros tipos de mudança temos resistências emocionais, como no caso da mudança irreversível. E outros ainda —como é o caso da mudança exponencial— são difíceis até de abarcar cognitivamente. O cérebro humano recusa-se a querer compreender; ficamos perplexos e desorientados; perdemos a confiança nas lideranças, revoltamo-nos e queremos voltar ao passado, mesmo sabendo que é impossível.

Como é evidente, estamos a viver um desses momentos. Não só a mudança mudou, como há várias mudanças que mudaram ao mesmo tempo, e todas elas de tipos diferentes.

A pandemia trouxe uma mudança de tipo exponencial: o cérebro tinha dificuldade em aceitar que a infeção de um indivíduo seria amanhã de dez, cem, mil, 1 milhão e assim sucessivamente. Mas o desenvolvimento da inteligência artificial traz também uma mudança de tipo exponencial, e ainda estamos só no início.

A mudança trazida pelas alterações climáticas é disruptora, brutal e provavelmente irreversível. Mudanças trazem outras mudanças: migrações em massa, guerras, colapso institucional, quem sabe mais o quê?

Um dos nossos maiores problemas hoje é que as pessoas têm medo da mudança, os reacionários faturam com isso, e os democratas e progressistas não sabem explicar como prever, gerir e se beneficiar dessa mudança. Quem souber fazê-lo, em cada uma das áreas que listei acima, encontrará o caminho para sossegar a opinião pública e juntar as vontades coletivas. Até lá, o medo da mudança gerará monstros.