quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Rui Tavares - O problema é que a mudança mudou, FSP

 Muita gente conhece o início do Soneto 53 (outros atribuem-lhe o número 45) de Luís de Camões: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / Muda-se o ser, muda-se a confiança / Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades". Menos conhecido e citado é o seu fim, que diz: "E, afora este mudar-se cada dia / Outra mudança faz mor espanto / Que não se muda já como soía".

Talvez seja por duas palavras desusadas no português contemporâneo, "mor" por maior, e sobretudo "soía" com o sentido de ser hábito ou costume, que o fim do soneto é menos citável ou hoje menos compreensível. Porque o que Camões nos está a dizer é, fundamentalmente, que a mudança já não é o que era. A mudança mudou.

A imagem apresenta um retrato em tons de sépia de Luís de Camões, o célebre poeta português. Ele é representado com uma expressiva gola elizabetana e uma armadura parcial, sugerindo sua posição como um homem de letras e, possivelmente, um passado militar. Seu olhar é direto e sua barba e bigode são estilizados de acordo com a moda de sua época.
Retrato do poeta Luís de Camões - Reprodução

Não admira que Camões sentisse isso, uma vez que ele nasceu (segundo se crê, faz agora 500 anos) numa das épocas da história que mais mudanças viram, da expansão da imprensa às guerras de religião na Europa e sobretudo à noção para eles inédita do Novo Mundo.

Por isso ele sentia que a mudança já não era apenas aquela sensação a que os gregos antigos chamavam de "panta rhei", ou seja, de que "tudo flui", e com a qual ele começa o poema.

E nem sequer apenas uma mudança cíclica, expectável, como nas estações do ano, a que ele dedicou o meio do poema ("O tempo cobre o chão de verde manto / Que já coberto foi de neve fria / E, em mim, converte em choro o doce canto"). Nada disso: há também outro tipo de mudança, que não só muda as coisas, mas que muda a sua própria textura ou padrão.

Pensamos muito nas coisas que mudam, mas pensamos pouco na própria mudança em si. Mas fazemos mal porque este tema aparentemente vago e teórico tem sérias consequências práticas. É que, na verdade, não há só uma mudança, mas vários tipos de mudança. A alguns tipos de mudança, gostando ou não, estamos acostumados como humanos que somos.

São eles a mudança constante, incremental ou cíclica. A outros tipos de mudança temos resistências emocionais, como no caso da mudança irreversível. E outros ainda —como é o caso da mudança exponencial— são difíceis até de abarcar cognitivamente. O cérebro humano recusa-se a querer compreender; ficamos perplexos e desorientados; perdemos a confiança nas lideranças, revoltamo-nos e queremos voltar ao passado, mesmo sabendo que é impossível.

Como é evidente, estamos a viver um desses momentos. Não só a mudança mudou, como há várias mudanças que mudaram ao mesmo tempo, e todas elas de tipos diferentes.

A pandemia trouxe uma mudança de tipo exponencial: o cérebro tinha dificuldade em aceitar que a infeção de um indivíduo seria amanhã de dez, cem, mil, 1 milhão e assim sucessivamente. Mas o desenvolvimento da inteligência artificial traz também uma mudança de tipo exponencial, e ainda estamos só no início.

A mudança trazida pelas alterações climáticas é disruptora, brutal e provavelmente irreversível. Mudanças trazem outras mudanças: migrações em massa, guerras, colapso institucional, quem sabe mais o quê?

Um dos nossos maiores problemas hoje é que as pessoas têm medo da mudança, os reacionários faturam com isso, e os democratas e progressistas não sabem explicar como prever, gerir e se beneficiar dessa mudança. Quem souber fazê-lo, em cada uma das áreas que listei acima, encontrará o caminho para sossegar a opinião pública e juntar as vontades coletivas. Até lá, o medo da mudança gerará monstros.

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