segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Christian Lynch - Com disputa entre Poderes, Brasil vive baderna institucional, FSP

 

Christian Lynch

Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), editor da revista Insight Inteligência, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa

[RESUMO] Em análise da conjuntura política do país, autor argumenta que reconstruir um modelo de governabilidade estável se tornou inviável, já que cada Poder busca reafirmar a sua supremacia sem um pacto mínimo de convivência. Enquanto o Executivo busca recuperar seu poder de agenda, o STF resiste a perder espaço, a extrema direita bolsonarista tenta voltar à Presidência e o centrão se empenha em consolidar sua hegemonia no Congresso.

O artigo 2º da Constituição afirma que os Poderes da República são "independentes e harmônicos entre si". Trata-se de uma quimera: se são independentes, não são automaticamente harmônicos e, se pretendem sê-lo, precisarão moderar essa independência.

A harmonia institucional não decorre do texto constitucional, mas de modelos de governabilidade criados a partir de sua interpretação —modelos capazes de coordenar expectativas, prerrogativas e ambições de cada Poder, criando previsibilidade em suas relações. Quando esses modelos existem, o regime constitucional respira; quando se desfazem, o país entra em espiral de instabilidade.

Diversos deputados em trajes formais estão reunidos em plenário, muitos segurando celulares para fotografar ou filmar. A maioria está em pé, interagindo entre si, com expressões neutras, em ambiente interno com mesas e cadeiras.
Deputados observam resultado de votação de projeto de redução de penas que beneficia Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira - 9.dez.25/Folhapress

Ao longo de dois séculos, tais modelos variaram conforme conjunturas e correlações de força. O chamado modelo regressista ou saquarema, criado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, estabilizou, nos anos 1840, um sistema parlamentar em que o Executivo imperial impunha direção ao nascente Estado nacional. A política dos governadores, inaugurada por Campos Sales em 1900, traduziu-se em um arranjo que garantiu ao Executivo republicano a governabilidade coordenando as oligarquias estaduais.

Já no período pós-1988, o presidencialismo de coalizão organizado por Fernando Henrique Cardoso ofereceu, a partir de 1994, uma estrutura relativamente estável de trocas institucionais e permitiu previsibilidade à condução política. Nenhum desses arranjos era idílico, mas todos domesticaram o conflito e contiveram a instabilidade.

Há dez anos, contudo, o Brasil vive sem modelo eficiente de governabilidade. O que funcionara desde os anos 1990 —o presidencialismo de coalizão com dominância do Executivo— entrou em colapso. Assistimos a Poderes que se digladiam, se sabotam e tentam se anular mutuamente, em um ambiente em que a possibilidade de golpe, alto ou baixo, reaparece sempre que um deles se percebe acuado.

A República funciona como uma permanente guerra de trincheiras, sem regras estáveis, arbitragem reconhecida ou horizonte de acomodação. Nenhum ator reconhece limites estáveis ao exercício de sua autoridade.

A instabilidade crônica explodiu com a Lava Jato, que inaugurou aquilo que chamei de revolução judiciarista: uma investida de inspiração neoconstitucionalista que atribuiu ao Judiciário um protagonismo sem precedentes, convertendo-o de árbitro em ator político central. O próprio modelo de governabilidade, o presidencialismo de coalizão, passou a ser combatido como intrinsecamente corrupto.

Desfeita a lógica que coordenava expectativas e administrava conflitos, instalou-se a luta institucional: decisões judiciais com pretensão de dirigir o país, um Ministério Público investido da missão de purificar a República e um sistema político acuado. O equilíbrio possível implodiu, e nada foi colocado no lugar.

O Legislativo dominado pelos partidos da direita institucional, vulgarmente chamados de centrão, reagiu, tentando neutralizar o Judiciário apoderando-se do Executivo. O impeachment de Dilma Rousseff deve ser compreendido nesse contexto, não como mero desdobramento de crise econômica ou dos protestos de rua, mas como operação de reposicionamento institucional do Congresso contra a preeminência do STF (Supremo Tribunal Federal) e da Lava Jato.

Apoiado por Gilmar Mendes, Michel Temer desmontou, gradualmente, os dispositivos de poder acumulados por Curitiba. Foi o "termidor" da revolução judiciarista. Não por acaso, o Tribunal Superior Eleitoral, então presidido por Gilmar, absolveu Temer e o manteve no poder: por "excesso de provas".

A eleição de Jair Bolsonaro representou um baque inicial nesse processo. Bolsonaro jamais compreendeu a máquina do Estado e nunca formulou diagnóstico realista da conjuntura. Seu populismo reacionário era guiado pela ignorância e pelo negacionismo, travestidos de senso comum conservador. Apostou em um bonapartismo retrógrado, que restauraria a ditadura militar por meio de um cesarismo de WhatsApp.

O fracasso o jogou no colo da classe política que dizia combater. Ao enterrar a Lava Jato e alugar o governo ao centrão para sobreviver, entregou-lhe as chaves do Orçamento, abrindo-lhe caminho para a captura do Executivo. Simultaneamente, a extrema direita declarou guerra ao STF, produzindo um ambiente de hostilidade permanente que o centrão soube instrumentalizar —ora como ameaça, ora como biombo.

Realizou-se então metade do sonho do centrão: estabelecer, no Brasil, por uma espécie de parlamentarismo bastardo, a hegemonia de uma oligarquia congressual autorreprodutível, financiada pelo Fundo Eleitoral e pelas emendas parlamentares. Nesse sentido, a eleição de Lula, em regime de governo minoritário, não foi má para o bloco. O centrão não queria a autocracia estúpida de Bolsonaro, que ameaçava inclusive seu espaço; queria um Executivo fraco, dependente, obrigado a negociar sua sobrevivência cotidiana com um Congresso hegemonizado por lideranças conservadoras.

A debilidade estrutural do governo, somada à distância ideológica entre a média do Executivo (social-democrata) e a média do Parlamento (conservadora), criou o ambiente ideal. Pôde ocupar metade da Esplanada e entregar apoio apenas seletivo, jamais estrutural, à agenda presidencial.

Na impossibilidade ou na falta de desejo de assumir regime parlamentarista, o centrão limita-se a conservar e, quando possível, ampliar a hegemonia adquirida com a apropriação do Orçamento, o controle da agenda e a expansão da própria base parlamentar. Opera como polvo de múltiplos tentáculos, ajustando simultaneamente sua relação com três polos: a extrema direita bolsonarista, o STF e o Executivo fragilizado.

Apoia o STF contra o golpismo mais radical —porque o golpismo ameaça também o Congresso—, mas resiste à anistia ampla dos golpistas, porque não deseja recolocar Bolsonaro no jogo de 2026. O centrão quer a extrema direita como força útil, não dirigente. Por isso, deixa ao STF o serviço sujo de punir deputados golpistas, preservando-se do desgaste perante o eleitor radicalizado.

É nesse contexto que se compreende o acordo informal entre governo e STF. Separado do Congresso por distância ideológica incontornável e destituído dos instrumentos tradicionais de cooptação, Lula buscou no STF alguma compensação.

O tribunal, por sua vez, deseja punir os golpistas que tentaram destruí-lo e prevenir que um novo ciclo legislativo, especialmente no Senado, organize o impeachment de ministros em 2027. Daí o "judiciarismo de coalizão": recorrer ao tribunal, sobretudo aos ministros mais novos, como Flávio Dino, para conter perdas legislativas, preservar parte do poder orçamentário e impor limites ao apetite predatório do Congresso. É aliança de circunstância entre dois Poderes em posição defensiva: o Executivo, fragilizado, e o STF, desafiado.

Mas o centrão reage também a essa aproximação. Seu segundo grande objetivo —além de preservar a autonomia orçamentária que garante sua reeleição indefinida— é a absoluta impunidade de seus membros. Não basta controlar o Orçamento, é preciso controlar o alcance das decisões judiciais que atinjam deputados e senadores, golpistas ou corruptos. Para manter coesão e eminência, os líderes precisam assegurar aos parlamentares que seus mandatos dependerão exclusivamente deles. Ou seja, blindagem corporativa.

Quando a Câmara se recusa a cassar o mandato de Carla Zambelli, afrontando o STF, envia o recado: nenhum freio judicial será aceito quando tocar nas condições de autoproteção da oligarquia. A ordem de Alexandre de Moraes ao presidente da Câmara para cassar a deputada, no dia seguinte, evidencia o caráter particularmente agressivo da guerra entre Legislativo e Judiciário.

Em síntese, reconstruir um modelo tornou-se inviável porque cada Poder disputa supremacia. O Executivo tenta recuperar o poder de agenda do antigo presidencialismo de coalizão. O STF, fortalecido desde o mensalão, resiste a perder espaço. A extrema direita bolsonarista tenta voltar ao poder para destruir o sistema que a limita. O centrão empenha-se em consolidar sua hegemonia e neutralizar ou cooptar o Judiciário. Mais: quer recuperar o Executivo e a administração pública, não mais pelas mãos disfuncionais e golpistas do clã Bolsonaro, mas por meio de um candidato seu.

Essa assimetria impede um pacto mínimo de convivência: cada Poder tenta recuperar, preservar ou expandir seu espaço institucional.

A hegemonia parlamentar existe, mas não constitui modelo de governabilidade porque não é reconhecida como legítima pelos demais atores. Um regime pressupõe aceitação mútua, previsibilidade e deferência recíproca. Não foi o que vimos nos últimos dias —ao contrário.

Diante das eleições que se avizinham, o STF, o bolsonarismo e o governo atacaram o centrão quase simultaneamente e por motivos distintos. Contra o alijamento da família Bolsonaro de seus planos eleitorais, a extrema direita lançou a candidatura presidencial do filho mais velho do ex-presidente, agora presidiário. O STF também moveu suas peças: diante da ofensiva para promover impeachment de ministros em 2027, Gilmar Mendes alterou por liminar a interpretação da lei para blindar todo o tribunal. Já o governo fez o que pôde: segurou o pagamento de emendas, condicionando-o à aprovação de sua agenda.

Pressionado por todos os lados, o centrão distribuiu como prêmios de consolação seus presentes de fim de ano: ao bolsonarismo, a redução de penas dos envolvidos no golpismo, mas não a anistia; ao STF, o avanço da nova lei de impeachment, dificultando a remoção de ministros; ao Executivo, o andamento do projeto de redução da jornada laboral de seis para cinco dias e o restabelecimento do texto-base do projeto antifacção.

Em cada movimento, inclusive na proporção em que cedeu, porém, o centrão reafirmou sua condição a partir do Congresso como árbitro da política nacional. Montesquieu pode estar no inferno, mas não há dúvida sobre quem está no céu —ou quase: o centrão.

Reconstruir um modelo de governabilidade a partir do texto constitucional não é tarefa simples. É preciso algum consenso sobre o destino institucional —consenso distante, especialmente da extrema direita, empenhada em destruir a própria Constituição. O mero triunfo de qualquer dos três Poderes não parece oferecer automaticamente qualquer resolução duradoura da crise.

Do lado do Executivo, mesmo que Lula recuperasse parte das prerrogativas executivas do antigo presidencialismo de coalizão, isso não resolveria o problema: nenhum modelo anterior de governabilidade atribuía ao STF papel político de relevo. Embora o judiciarismo tenha sido constante na República, o tribunal jamais foi protagonista; tampouco atuou como poder moderador informal —papel, como se sabe, indevidamente exercido pelas Forças Armadas.

Por outro lado, a aceitação pura e simples da pretensão do STF como ator central não tem como resolver a situação. Há um problema de desenho institucional na Constituição, que torna o tribunal ao mesmo tempo órgão de cúpula do Judiciário e Corte constitucional. A Corte não pode ser árbitro e parte interessada ao mesmo tempo.

Para piorar, sua pretensão de supremacia tem sido aparentemente utilizada por determinados ministros para o exercício de práticas pouco republicanas, para não dizer corruptas. Daí que, por receio de punição ou simples arrogância dos honestos, muitos deles resistam a se submeter a códigos éticos de conduta e, principalmente, a qualquer possibilidade de controle externo.

Por fim, a formalização da hegemonia do centrão em sistema semipresidencial parece inteiramente inviável. O STF deseja a mudança do sistema, supostamente o bloco também, mas há resistência intransponível da esquerda hoje no governo, historicamente presidencialista.

Além disso, há dúvidas sobre a constitucionalidade de mudança sem plebiscito ou referendo, hipótese em que ela provavelmente seria novamente repelida, agora pela terceira vez. Na dúvida, a direita prefere ficar como está: mandando sem responsabilidade enquanto sonha em eleger seu próprio presidente.

Em um quadro como esse, a tendência sistêmica a longo prazo seria a estabilização oligárquica: o famoso acordão preconizado por um notório centrônico da década passada, "com o Supremo, com tudo". Em outras palavras, blindagem geral.

Mas essa estabilização tampouco garante estabilidade. A insatisfação crescente com a mais baixa qualidade da democracia fatalmente alimentará novas candidaturas antissistema: outro Bolsonaro, um Pablo Marçal, qualquer figura disposta a capitalizar o ressentimento acumulado. O arranjo oligárquico evitaria a quebra explícita, mas produziria uma erosão silenciosa que fragilizaria instituições, preparando terreno para novas aventuras antidemocráticas.

Avançamos, assim, para 2026. Nesse clima de baderna institucional e ideológica, chegam à mesa do eleitor os pratos do banquete eleitoral: o facho-reacionarismo da extrema direita, sempre pronto a vestir o manto da resistência à "tirania" do STF e do "comunismo", a democracia social da centro-esquerda, prometendo governar com poderes que já não possui, e o conservadorismo oligárquico centrônico, cada vez mais senhor do jogo.

Bom apetite.

Lula é o maior beneficiário do efeito Magnitsky, FSP

 

Faltando duas semanas para fechar o ano, Lula recebe um presente dos Estados Unidos e chegará fortalecido para o início da disputa eleitoral em 2026. Nos mais de 100 mil grupos públicos de WhatsApp e Telegram monitorados em tempo real pela Palver, as questões geopolíticas dominaram as discussões ao longo da última semana, tendo como resultado um saldo positivo ao presidente.

A Lei Magnitsky foi o eixo central dos debates. Enquanto a sanção contra Alexandre de Moraes e sua esposa era tratada como um trunfo para a direita, a conversa seguia uma linha narrativa consistente e dominante: Washington como alavanca, o STF como alvo e a direita como beneficiária.

Dois homens sentados em poltronas opostas em sala com cortina azul ao fundo. Homem à esquerda veste terno escuro com gravata vermelha, homem à direita usa terno escuro com gravata vinho e fone de ouvido. Mesa pequena com toalha vermelha e vaso de flor entre eles.
Lula e Trump durante encontro na Asean. - Evelyn Hockstein - 26.out.2025/REUTERS

Mas, depois que os Estados Unidos derrubaram a sanção na última sexta-feira (12), a interpretação mudou. Entre as mensagens que tomaram posição sobre o que a Magnitsky "significava" dali em diante, 50% migraram para um ceticismo explícito, com argumentos em prol da soberania nacional e a ideia de que não existe "atalho estrangeiro" para resolver o Brasil.

Essa ruptura aparece também na forma como Donald Trump foi reavaliado. A retirada da sanção acionou um gatilho emocional negativo para a direita, que é a sensação de recuo. Entre as mensagens que avaliaram a decisão, 66% criticaram Trump, com enquadramentos de fraqueza, imprevisibilidade ou desistência, e 34% defenderam a medida como parte de um cálculo legítimo de interesses americanos. A frustração levou uma parcela da direita a comparar Trump com Reagan, reforçando a falta de coragem.

Ao mesmo tempo, a relação Trump-Lula foi lida com menos romantismo. Quando ambos aparecem juntos nas conversas, a disputa é entre duas narrativas: negociação pragmática e conflito econômico. Entre os que escolheram um desses caminhos, 59% enxergaram a relação pela lente de pressão e atrito, como tarifas, chantagem e custo para o Brasil, enquanto 41% destacaram aproximação e negociação direta, com sinais de recalibração e conversa "por cima" dos intermediários.

Entre as mensagens que avaliaram o impacto da reviravolta sobre o presidente, 95% afirmaram que Lula saiu fortalecido e 5% sugeriram enfraquecimento. O argumento é que a ofensiva externa de Eduardo apenas serviu para produzir ganhos políticos a Lula, seja como beneficiário do discurso de soberania, ou da retomada do canal direto com Trump.

Além da pauta externa, a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do PL da Dosimetria abriu espaço para a esquerda se reorganizar. Nas mensagens dos últimos sete dias, entre os que tomaram lado, 77% se posicionaram contra a anistia e 23% a favor, sinalizando que a esquerda conseguiu mais coesão. É importante destacar que uma parcela da direita também foi contra a medida, pois enxergou como insuficiente, apontando que teria sido a sinalização que Trump precisava para revogar as sanções de Moraes.

Nesse contexto, Lula chega ao ano eleitoral com vantagem sobre os adversários. A Lei Magnitsky, que havia servido como esperança e promessa de virada, trouxe o ônus do conflito para dentro da direita e serviu apenas para expor quem perdeu, quem ganhou e quem precisa, rapidamente, reconstruir uma narrativa diante do novo cenário.

O efeito doméstico mais visível dessa virada foi a cisão dentro da direita. A estratégia internacional de Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo, que vinha alimentando esperanças de uma interferência estrangeira, passou a ser criticada, provocando divisões internas. Antes da queda da Magnitsky, considerando as mensagens da última semana, entre os bolsonaristas que opinaram sobre Eduardo/Paulo, 52% eram de apoio e 48% de crítica. Depois da retirada das sanções, as críticas chegam a quase 60%. É nesse terreno que a ironia "camisa 10 do Lula" ganha tração.

Mais um tijolo no muro da desigualdade, Pierpaolo Cruz Bottini - FSP

 Pierpaolo Cruz Bottini

Advogado e professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP

O Brasil é um país desigual. Tem 63% de toda a riqueza nas mãos de 1% da população, enquanto a metade mais pobre divide 9,3% da renda total. No campo do direito penal, essa desigualdade tem uma dimensão ainda maior. Desde a seleção dos abordados pela polícia até a execução das penas, pobres, negros e pessoas de baixa escolaridade são os alvos preferenciais do sistema penal.

Pessoas negras e moradores da periferia têm quatro vezes mais chances de serem abordadas pela polícia do que brancos em bairros ricos. A população dos presídios é composta de pobres com baixa escolaridade: 61% não completaram o ensino médio, e apenas 0,92% têm curso superior completo.

A imagem mostra dois homens carregando grades de metal em um local ao ar livre. O céu está claro e azul, e há uma estrutura ao fundo que parece ser um edifício. Os homens estão vestidos de forma casual, um deles usa um chapéu. As grades estão dispostas em uma área que parece estar sendo preparada para um evento ou contenção.
Movimentação de grades e segurança na praça dos Três Poderes um dia antes do julgamento da trama golpista - Gabriela Biló - 1º.set.25/Folhapress

Há crimes e contravenções que apenas os menos favorecidos podem praticar, como o delito de tomar refeição em restaurante ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento, em que o ato reprovável não é o calote, mas a falta de recursos, a ausência de bens para fazer frente à dívida; ou a vadiagem, descrita como o ato de entregar-se habitualmente à ociosidade sem ter renda que lhe assegure meios de subsistência. Ilícita não é a ociosidade, mas a falta de renda que assegure essa ociosidade.

Por outro lado, leis que tratam de crimes usualmente praticados pelos mais abastados preveem benefícios não estendidos aos demais. Nos crimes fiscais, o pagamento do valor devido, mesmo depois da condenação do réu em todas as instâncias, extingue a punibilidade do delito, acaba com qualquer possibilidade de aplicar a pena. Esse favor não existe para os demais crimes patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça, como o furto ou a apropriação indébita. Nesses casos, mesmo que o valor seja restituído e reparado o dano, a pena será imposta.

A mesma diferença de tratamento ocorre quando a Justiça reconhece o princípio da insignificância, que afasta a aplicação da pena para delitos de considerados de pequeno valor. Nos crimes comuns, como o furto, o limite da insignificância alcança, quando muito, 10% do salário-mínimo. Nos fiscais, consideram-se insignificantes valores até 20 mil reais, porque sonegações até esse montante não são passíveis de execução fiscal. O resultado: um terço dos presos no Brasil foi condenado pelo crime de furto, enquanto os tributários representam 1% do mesmo conjunto.

Há algo errado com um sistema que faz pesar o direito penal sobre uma parcela da população, enquanto poupa outros do incômodo do castigo, muitas vezes diante de agressões mais graves ao bem comum. Que concede benefícios para certos delitos, em geral praticados pelos mais abastados, e prega a prisão como único remédio para tantos outros, encerrando atrás de grades um contingente de 700 mil pessoas, todas da mesma classe social.

Para agravar esse quadro lamentável, o Congresso Nacional começou a discutir um projeto de lei que altera os tempos de progressão de regime de prisão, com o objetivo de minorar as penas do ex-presidente Jair Bolsonaro, dentre outros. Se aprovado, os condenados pela maior parte dos crimes previstos na lei penal, desde que não hediondos e que o réu seja primário, poderão progredir do regime fechado —com restrição de liberdade em tempo integral— para o semiaberto —no qual é possível deixar a prisão para trabalhar durante o dia— quando cumprido 1/6 da pena. Isso não vale para todos os delitos: os condenados por crimes contra a vida, integridade ou patrimoniais, com violência ou ameaça, alcançarão o benefício apenas quando cumprido 1/4 da pena.

Mais uma vez, a desigualdade. Não parece proporcional ou justo dificultar a progressão de regime àquele que praticou um roubo ou uma lesão corporal leve e facilitar a execução da pena do chefe que cometeu assédio sexual, do agente público que desviou dinheiro da saúde, de quem se envolveu em corrupção ou fraude a licitações, queimou ilegalmente milhares de hectares de floresta ou daquele que tentou dar um golpe de Estado com violência ou ameaça.

Roubar um celular é grave, merece punição e tem pena de prisão de 4 a 10 anos. Mas tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, um governo legitimamente constituído é mais grave, tanto que a pena prevista é maior, de 4 a 12 anos de prisão. O primeiro delito afeta o patrimônio de uma pessoa, o segundo abala os fundamentos da democracia, e tem por consequência, em regra, prisões injustas, torturas, censura e arbitrariedade.

Nada justifica um tempo de progressão menor ao segundo, a não ser a usual benevolência com que o Brasil costuma tratar certos criminosos, em especial quando não são pobres, pretos e moradores das periferias.