domingo, 11 de maio de 2025

Muniz Sodré - Quando o diabo faz política, FSP

 "Para obter o seu objetivo, o diabo é capaz até de citar as Escrituras" (Shakespeare em "O Mercador de Veneza"). Um filme a que se pode assistir como paráfrase desse pensamento é "O Diabo de Cada Dia" (2020), de Antonio Campos, sobre uma corrente do mal perpetuada em pequena cidade de Ohio (EUA). Vê-se como a religião molda trajetórias de vida, desenhando personagens com linhas distorcidas, desvirtuando o que se entende por fé. A ignorância total da realidade é aprofundada pela interpretação enviesada da Bíblia a cargo de um duvidoso pastor.

Um vilarejo desses é uma espécie de quintal de grande metrópole, assim como os sul-americanos foram chamados de "quintal" da América pelo neofascismo instalado em Washington. O que transcorre no filme é modelo da obtusidade dos protocolos populares da fé entre nós. Uma infra-teologia, raspas do atraso americano, molda o espaço de onde parte a crença para abraçar o destino humano em suas relações com o invisível. Mas o espanto diante dos comportamentos bizarros exibidos a olhos públicos decorre de quem tenta buscar um mínimo de racionalidade para o que acontece, quando as causas se localizam no mundo equívoco criado pela imaginação mítica do rebanho.

Pouco tempo atrás, pareciam ligadas a um clima alucinatório orações coletivas a pneus de caminhão, indivíduos em marcha como autômatos descontrolados, multidões com celulares acima das cabeças em aparente apelo por uma intervenção dos céus. Amenizado o clima, porém, o fenômeno se reedita nas redes e em frente ao hospital do internamento de Bolsonaro. Numa postagem, dizia um fiel que, abaixo de Deus na Terra, só o numinoso capitão.

Bolsonaristas se ajoelham, abraçam quartel em São Paulo e rezam pai-nosso pedindo intervenção militar, em 2022 - Reprodução

Esses eventos fanáticos resultam da exasperação de uma das subculturas oligofrênicas, plenas de analfabetos funcionais (68 milhões de brasileiros acima de 18 anos, segundo o recente indicador de várias fundações, institutos, Unesco e Unicef), que coabitam com o sistema público de costumes e crenças. É síndrome de doença epidêmica da alma coletiva. O movimento antivacina, fortalecido durante a pandemia da Covid, faz parte de uma latência dessa natureza não só entre nós, como em outros países. Em 1966, numa epidemia de poliomielite, um pastor holandês proibiu os paroquianos de vacinar seus filhos, sob o pretexto de uma "punição de Deus". Numa antiga concepção judaico-cristã, qualquer calamidade seria interpretada como castigo de Deus a pecadores. Para espíritos mais obscuros, "coisa do diabo".

Daí ao salto no mundo da política é apenas circunstância, quando profecias bíblicas se tornam políticas de Estado. Diabo, outro nome para terror existencial, é matéria de neofascismo com Trump. Ao modo de Lúcifer, ele forjou uma foto em trajes papais e tem oficiado ritos cristãos. Eventos desrespeitosos, principalmente agora com um novo papa. A amplitude dessa efervescência fake não tem escala geográfica. Tanto faz país, metrópole, vilarejo, as quatro paredes de um templo suburbano ou uma "church" (o inglês marca a diferença de uma instalação de ricos), pastos para o pior do ser humano. Com ou sem inferno: não à toa, já se disse que "o diabo é um otimista se acredita que pode piorar as pessoas" (Karl Kraus).


A neve de 'O Eternauta' também é a neve do esquecimento, Sylvia Colombo FSP

Toda distopia carrega traços do mundo real. Com "O Eternauta" não é diferente. A série da Netflix carrega os mortos das ditaduras argentinas.

A série de ficção científica estrelada por Ricardo Darín, baseada na HQ "O Eternauta", não marcou os argentinos apenas por sua qualidade técnica. Para boa parte do público local, ela toca em uma ferida aberta: a da última ditadura militar e da história pessoal de seu autor, Héctor Germán Oesterheld.

A imagem mostra uma pessoa vestindo um casaco marrom e uma máscara de gás, com um capuz azul. A pessoa está em um ambiente nevado, com flocos de neve caindo ao redor. Ao fundo, há uma paisagem de gelo e neve, sugerindo um clima frio e inóspito. A pessoa carrega uma mochila e uma arma nas costas, indicando um cenário de sobrevivência.
Ricardo Darín em cena da série 'O Eternauta', da Netflix - Mariano Landet/Divulgação

O que para muitos espectadores estrangeiros pode parecer apenas uma distopia gelada ambientada em Buenos Aires, para os argentinos é também um espelho da violência que o país viveu —e de uma família que ousou resistir com palavras e imagens.

Oesterheld não foi apenas o maior roteirista de HQs da Argentina. Foi também pai de quatro filhas, todas desaparecidas entre 1976 e 1978, junto a seus companheiros e dois netos por nascer. Ele próprio desapareceu em 1977, depois de se engajar na guerrilha Montoneros. A única sobrevivente da família foi Elsa Sánchez, sua mulher, que passou a vida buscando respostas e criando dois netos salvos do horror.

No livro "Los Oesterheld", de Alicia Beltrami e Fernanda Nicolini, essa história é contada em detalhes. Nos anos 1960, os Oesterheld viviam num chalé em Beccar, cercados por livros, desenhos e longas conversas sobre arte, literatura e política.

As quatro filhas de Héctor cresceram num ambiente intelectualmente fértil, em que se discutia desde quadrinhos até revoluções. Essa casa viva e criativa se transformaria também num ponto de ebulição política: as meninas se engajaram na militância estudantil e social, e o próprio Héctor, encantado com a paixão e os argumentos das filhas, acabou se envolvendo com os montoneros. Sua escuta atenta e seu idealismo o levaram da ficção ao front ideológico, num movimento que selaria o destino de toda a família.

Veio, porém, a repressão. Levou primeiro uma das meninas, depois outra, até que as quatro desapareceram. Héctor foi sequestrado em 1977, após anos vivendo na clandestinidade. Um dos netos, Martín, passou por um centro de tortura, mas sobreviveu.

Na clandestinidade, Oesterheld escreveu uma segunda versão de "O Eternauta", ainda mais sombria e politizada. Na nova trama, a protagonista leva o nome de guerra de sua filha assassinada, Maria. Se antes a história falava de uma nevasca tóxica e de um herói coletivo que resiste a uma invasão invisível, agora ela passa a expor o luto. Como se, diante da impossibilidade de enterrar suas filhas, o pai as resgatasse em forma de personagem.

"O Eternauta" resgata algo essencial para os argentinos: a capacidade de imaginar o futuro. Em tempos de invernos simbólicos —como os que vivem hoje sob um governo que despreza a memória e sabota políticas de direitos humanos—, esse exercício de ficção vira também um gesto de resistência. A narrativa de um país congelado, tomado por uma força invisível, ecoa como uma metáfora cruel e como advertência: o apagamento da história começa com a censura, mas triunfa no esquecimento.

Não é à toa que as Avós da Praça de Maio retomaram essa ideia com potência: "Você está assistindo 'O Eternauta'? Então talvez seja hora de procurar sua verdadeira identidade." Com ela, reacende-se a busca pelos netos e netas desaparecidos —inclusive os da família Oesterheld.

Pode ser que alguém que esteja assistindo à série e tem dúvidas sobre sua origem decida buscar a entidade e descubra ser mais um neto recuperado, entre os mais de 500 que foram roubados.

 

Copom e o modo petista de governar, Samuel Pessoa, FSP (a ver)

 Na quarta-feira (7), o Copom (Comitê de Política Monetária) do BC (Banco Central) decidiu elevar a taxa Selic de 14,25% para 14,75%. Afirmou que, "para a próxima reunião, o cenário de elevada incerteza, aliado ao estágio avançado do ciclo de ajuste e seus impactos acumulados ainda por serem observados, demanda cautela adicional na atuação da política monetária e flexibilidade para incorporar os dados que impactem a dinâmica de inflação".

Muito provavelmente, até a próxima reunião estará mais clara a desaceleração da economia mundial em consequência da guerra comercial. Além dos efeitos defasados do aperto monetário sobre a atividade econômica, o Copom poderá alegar a situação mundial como mais um motivo para interromper o ciclo de elevação da taxa Selic.

A imagem mostra duas pessoas sentadas em uma mesa durante uma reunião. À esquerda, um homem com cabelo escuro e liso, usando um terno escuro e gravata, parece concentrado. À direita, um homem mais velho, com cabelo grisalho e barba, está com a cabeça baixa e uma expressão pensativa. O fundo é composto por um padrão de ondas em tons de azul.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), à direita, em anúncio de investimentos em Indústria da Defesa, no Palácio do Planalto. À esquerda está Fernando Haddad - Gabriela Biló/Folhapress

A grande dificuldade do Copom será construir uma narrativa para iniciar, em algum momento do segundo semestre do ano, um ciclo de redução. O Copom prevê que a inflação de preços livres termine o ano em 5,3%. O IPCA de abril, divulgado nesta sexta (9), apontou que os preços livres subiram 5,8% nos últimos 12 meses. Será que haverá sinais de moderação da inflação nos próximos meses?

O modo petista de governar é forçar a economia a operar além dos seus meios. Gera uma queda insustentável do desemprego. Os salários se elevam acima da produtividade, a rentabilidade do setor privado se reduz, as exportações líquidas caem, e a inflação de serviços se eleva. Todos esses fatos têm ocorrido. Por exemplo, em abril, a inflação dos serviços subjacentes fechou em 6,7%.

A dificuldade é que a queda da inflação em 2025 requer alguma desaceleração da economia em razão da redução da demanda agregada. Se a desaceleração ocorrer somente por se ter atingido o limite da capacidade produtiva, a inflação não se reduzirá: teremos a economia andando de lado, com inflação ainda em elevação.

A janela para a queda da demanda está estreita: no primeiro semestre, de fato a execução fiscal tem reduzido o gasto. No entanto, a partir do início do terceiro trimestre, com o pagamento dos precatórios e a evolução do novo empréstimo consignado, terá passado a janela em que a demanda se contrairá.

A política monetária fortemente contracionista reduz o consumo de bens duráveis e o investimento. No entanto, na direção contrária temos os estados com caixa para elevar os investimentos, em 2026 teremos eleições, e, mais para o final do ano, o programa MCMV deve ter novo impulso. Adicionalmente, diversos investimentos em infraestrutura, fruto de programas de concessão, têm prazo contratual para entrega. São insensíveis à política monetária. No ano próximo temos a mudança da tabela do IRPF e, é possível, elevação do benefício do programa Bolsa Família, entre outros botões que podem ser apertados para estimular a economia e ajudar a popularidade de Lula em ano eleitoral.

A menos que haja uma forte inversão do ciclo da economia mundial, tudo sugere que caminharemos com juros elevados e economia a plena carga até as eleições. As empresas e as famílias sofrerão muito com a piora de suas dívidas, mas, enquanto a roda da economia estiver girando, a gente vai levando. Quando o ciclo econômico virar —após as eleições, independentemente de quem for eleito, haverá um ajuste fiscal—, a fragilidade do setor privado após período tão longo de aperto monetário cobrará seu preço.

O ajuste da economia no final de 2026 promete. Cada vez mais 2026 se parece com 2014.