sexta-feira, 9 de maio de 2025

Mundo secular olha para o conclave com admiração e inveja, João Pereira Coutinho, FSP

 Sentado num café de Lisboa, olho para a TV e vejo um plano fixo da chaminé do Vaticano. Passa uma hora, duas. O mundo aguarda por um novo papa —e, por mundo, não falo apenas do mundo católico. Falo da comunidade de crentes e não crentes, com os olhos postos numa modesta chaminé. Como explicar o fascínio?

Escrevi nesta Folha que a adoração progressista de Francisco, para além de revelar confusão doutrinal, era sobretudo um sintoma da falta de repertório e de referências da esquerda contemporânea. Alguns leitores protestaram. Mantenho.

Um homem com óculos e cabelo grisalho, vestido com vestes religiosas vermelhas e brancas, acena com a mão direita. Ele está em um ambiente formal, possivelmente em uma cerimônia religiosa, com um fundo vermelho. Ao fundo, é possível ver outra pessoa, parcialmente visível, também vestida de maneira formal.
O papa Leão 14, Robert Prevost, na Basílica de São Pedro - Tiziana Fabi/AFP

E, para eles, nova tese: o mundo secular olha para o conclave com admiração, quase inveja. É como se os rituais da eleição papal —portas fechadas, sigilo absoluto, escolha colegial— fossem um bálsamo contra os ruidosos processos da política democrática.

Esse contraste piora em tempos de polarização extrema e de escolhas populares grotescas, como temos visto nos quatro cantos da Terra.

Ali, sob o mais belo tecto pintado por mãos humanas, há tradição, solenidade, mistério. Para usar uma expressão célebre, o "desencantamento do mundo" não passou pela Santa Sé.

E quando o eleito é apresentado ao povo, não há choro e ranger de dentes entre facções ou fiéis. Ninguém invade a Basílica de São Pedro para quebrar a "Pietà" de Michelangelo ou o Baldaquino de Bernini.

Numa eleição papel, não há perdedores. A unidade simbólica entre o líder e o seu rebanho é imediata, como se viu quando Leão 14 apareceu ao público.

Por isso pergunto: até que ponto a atenção desmedida do mundo secular aos protagonistas e rituais da Igreja não revela, no fundo, o vazio cultural —e talvez até espiritual— desse mundo?

Fumo branco para quem souber responder.

Calma, leitor ansioso: serei o último a defender um retorno aos tempos do Sacro Império Romano-Germânico, quando o imperador era escolhido por métodos semelhantes. Não troco a soberania popular e a transparência dos seus processos decisórios por nada. A democracia liberal é um avanço, não um retrocesso, ainda que aumente o número daqueles que a repudiam.

Além disso, concordo com Marianne Rozario, pesquisadora da Universidade de St. Andrews, sobre as distorções midiáticas e políticas que se criaram durante o conclave: a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Falar de cardeais "conservadores" ou "progressistas" é uma imposição absurda de conceitos políticos mundanos a um universo onde a doutrina, o consenso e a transcendência têm importância capital.

Esse desatino continua com o novo papa. É de esquerda? É de direita? Será um firme opositor de Donald Trump, seu compatriota maligno?

É o que eu digo: se os democratas americanos não fazem o seu papel (e não fazem), eles esperam que seja o papa a lutar contra o anticristo. E por que não?

Leão 14 pode ser uma referência a Leão 13, o "papa dos trabalhadores", o autor do "Rerum Novarum" (1891), o obreiro intelectual da doutrina social da Igreja.

Mas também pode ser uma referência ao primeiríssimo dos Leões, Leão Magno, que conseguiu travar Átila, o Huno, e seus instintos destrutivos contra Roma. Nessa chave interpretativa, Trump é o novo Átila. Não é delírio, leitor. Juro que já li algures.

Nossas cabeças estão cheias de política, de má política, como se a ideologia tivesse colonizado todos os cantos da nossa cabeça, ou da nossa alma. Também aqui persistimos no erro de ter as ideias fora do lugar.

Violência no trânsito leva um acidentado a cada 2 minutos às emergências do SUS, FSP

 Fábio Pescarini

São Paulo

A violência do trânsito no Brasil fez disparar o número de pessoas socorridas por serviços de emergência do SUS (Sistema Único de Saúde). Somente em 2024, aproximadamente 228 mil vítimas de acidentes envolvendo veículos automotores e bicicletas acabaram internadas em serviços hospitalares custeados com verba pública.

É como se a cada cerca de dois minutos um acidentado desse entrada nessas emergências. Em média, essas pessoas ficam seis dias internadas para tratamento.

O número é o maior em ao menos uma década. O total de hospitalizados em unidades do SUS por causa de acidente de trânsito no país no ano passado é 45% superior aos 157,6 mil casos de 2015.

Os dados fazem parte de um levantamento inédito realizado pela Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego) e pela Abramede (Associação Brasileira de Medicina de Emergência). O levantamento não disponibiliza informações sobre tratamentos particulares.

Percentualmente, o crescimento na quantidade desses hospitalizados na década supera o da frota de veículos motorizados no país, que passou de 90,6 milhões de unidades registradas em 2015 para 124 milhões no ano passado —alta de 37%, de acordo com a Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito).

A partir de dados de 2023, o estudo mostra ainda que houve mais mortes em acidentes de trânsito do que por arma de fogo —34.810 óbitos contra 30.254, respectivamente. Em 71% dos municípios morrem mais pessoas em sinistros envolvendo veículos do que baleadas, também conforme as associações médicas.

"O trânsito brasileiro é uma epidemia silenciosa. As emergências estão lotadas de vítimas de circunstâncias evitáveis, com um custo humano, social e econômico altíssimo", diz Antonio Meira Júnior, presidente da Abramet.

A pesquisa, a partir de bases oficiais de dados do Ministério da Saúde, aponta que nos últimos dez anos o SUS contabilizou 1,8 milhão de internações por causa de sinistros de trânsito, totalizando R$ 3,8 bilhões em despesas hospitalares diretas.

O levantamento não aponta os principais traumas e lesões dessas vítimas de acidentes que precisaram ser socorridas a hospitais.

A imagem mostra um acidente de trânsito envolvendo um caminhão e um carro. O caminhão está tombado, com a parte traseira voltada para cima, e uma das rodas está sobre o carro, que está bastante danificado. O cenário é de uma estrada, com detritos espalhados ao redor e vegetação ao fundo
Acidente envolvendo carreta e carro em Teófilo Otoni (MG); internações por causa de acidentes de trânsito cresceram na última década - Divulgação - 21.dez.24/Corpo de Bombeiros de Minas Gerais via AFP

Mas, assim como nos casos de mortes, os motociclistas são as principais vítimas entre os internados, com 60% dos casos no período analisado.

Em 2024, o número chegou a pouco mais de 150 mil internações dos que estavam em motos, quase o dobro dos hospitalizados nos demais modais —77,5 mil pessoas— incluindo pedestres, ciclistas e pessoas que estavam em carros, ônibus e caminhões.

Os pedestres formam o segundo maior grupo de vítimas atendidas nas emergências por acidentes de trânsito, com 16% dos casos no período. Em seguida, aparecem os ciclistas e ocupantes de automóveis, ambos com 7% do total de registros entre 2015 e 2024.

Na comparação entre 2023 e 2024, porém, caiu a quantidade de acidentados a pé que precisaram de internação —passou de 35.629 para 29.733 casos envolvendo ciclistas, redução de 16,5%.

"Atuamos diariamente nas emergências e vemos o peso dessa tragédia nos hospitais. Isso exige resposta do Estado, da sociedade e de todos os atores do sistema de mobilidade", diz a presidente da Abramede, Camila Lunardi.

O estudo foi feito por causa do Maio Amarelo —mês de conscientização sobre violência no trânsito.

A maioria dos internados —78%— é de homens. Entre todos os socorridos, 49% são adultos com idade entre 20 e 39 anos.

Mas a exposição ao risco no trânsito começa desde os primeiros anos de vida, aponta o texto das associações médicas, muitas vezes associada à ausência de equipamentos de retenção infantil, como cadeirinhas: 15% dos casos estão entre menores de 20 anos.

"Embora representem uma fatia menor em termos absolutos [9%], os idosos são mais vulneráveis à gravidade das lesões e à evolução desfavorável dos traumas", diz o estudo.

Região com maior frota de veículos —59 milhões de unidades registradas em 2024, segundo a Senatran—, o Sudeste liderou o ranking de internações no ano passado, com 93 mil ocorrências. À frente do Nordeste (66 mil) e do Centro-Oeste (25,4 mil).

O estado de São Paulo, sozinho, responde por 387.991 das 747.757 internações na década.

"Como médicos, estamos profundamente preocupados com a preservação da vida e da saúde dos brasileiros. Ver tantos recursos sendo consumidos por tragédias evitáveis no trânsito é frustrante", diz Meira Júnior.

Governo aprova Plano Nacional de Economia Circular, FSP

 Fernanda Mena

São Paulo

O governo aprovou nesta quinta-feira (8) um Plano Nacional de Economia Circular, que pretende criar um ambiente regulatório favorável ao desenvolvimento de negócios, meios de produção e formas de consumo que reduzam desperdícios e otimizem recursos.

São 18 objetivos e mais de 70 ações para os próximos dez anos que devem contar com recursos doe ministérios envolvidos no tema, como o do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic), Meio Ambiente (MMA), Fazenda (MF), Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), além de BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e Finep (Financiadora de Estudos e Projetos).

O plano foi elaborado pelo Fórum Nacional de Economia Circular (Fnec), formado por 14 assentos de ministérios e órgãos de governo e outros 14 compostos por indústria e sociedade civil, liderados pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic).

Submetido a consulta pública, o documento angariou mais de 1.600 contribuições. Mais da metade delas foi incorporada ao texto aprovado na reunião desta quinta do Fnec.

Material reciclável separado na planta da Flacipel, que pertence ao grupo Multilixo, tem a maior esteira de triagem mecanizada da América Latina com inteligência para separar os itens por cor, por tipo de matéria-prima, entre outros
Material reciclável separado na planta da Flacipel - Bruno Santos/Folhapress

"Fiquei impressionado com a participação obtida na consulta pública. Não é trivial a gente ter tanto interesse num tema novo e que eu considerava áspero para o conjunto da sociedade", afirmou o secretário de Economia Verde, Descarbonização e Bioindústria do Mdic, Rodrigo Rollemberg, que preside o Fnec.

O Fnec foi estabelecido pelo mesmo decreto (12.082/2024) que instituiu, no ano passado, a Estratégia Nacional de Economia Circular, documento que traz as diretrizes para a implementação de políticas que promovam a chamada circularidade na produção e no consumo no Brasil.

A Estratégia integra a nova política industrial adotada pelo governo federal, Nova Indústria Brasil (NIB), e a economia circular é um dos eixos formadores do Plano de Transformação Ecológica, coordenado pelo Ministério da Fazenda (MF), e do Plano Clima, liderado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

Diferentemente da economia linear, modelo atual baseado na tríade extrair-produzir-descartar, a economia circular prioriza a não geração de resíduos e de poluição, a circulação de materiais e produtos pelo maior tempo possível e a regeneração dos ecossistemas.

Trata-se de um modelo de produção e consumo que promove inovação tecnológica e desenvolvimento sustentável ao mesmo tempo em que contribui para a descarbonização da economia.

O plano foi dividido em cinco grandes eixos, tem 18 objetivos e mais de 70 ações. "O primeiro eixo diz respeito à melhora do ambiente institucional e regulatório. O segundo fomenta a cultura, educação, ciência, tecnologia e inovação para promover o redesign dos produtos de modo que eles possam ser reaproveitados", explica o secretário.

"O terceiro trata da redução no uso de recursos e na geração de resíduos. O quarto, liderado pelo Ministério da Fazenda, propõe instrumentos financeiros de auxílio a essas ações. E o quinto trata da necessária articulação interfederativa e do envolvimento de trabalhadores, especialmente de cooperativas de catadores de materiais recicláveis", completa.

O plano dialoga com o projeto de lei 1.874 de 2022, que estabelece a Política Nacional de Economia Circular. Criado pelo senador Jacques Wagner (PT-RJ) e votado em regime de urgência no Senado Federal, a política está parada na Câmara dos Deputados desde o início de 2024.

"O PL está para ser votado desde março de 2024. Obteve apoio de um movimento orgânico de deputados da direita à esquerda, do PT ao PL, que pediram urgência na votação. Seguimos nessa expectativa", afirma Luísa Santiago, diretora da Fundação Ellen MacArthur no Brasil, ONG internacional que atua no tema da economia circular.

Segundo ela, o PL surgiu no governo de Jair Bolsonaro (PL) como uma tentativa de "não deixar as pautas ligadas à questão ambiental morrerem". Em 2021, segundo ela, o Brasil recebeu um convite para integrar a Coalizão de Economia Circular da América Latina e Caribe, mas ficou para trás de países como Chile, Colômbia e Peru, que já criaram suas políticas e planos de economia circular.

"O atual governo entendeu a relevância do tema, se apropriou dele e se adiantou em relação à Política Nacional de Economia Circular. Quando ela for aprovada, o plano executivo estará pronto", explica.

"O plano será o instrumento de execução, na prática, da Política Nacional de Economia Circular. E vai dialogar com outros planos do governo, como o Plano Nacional de Bioeconomia, a Estratégia Nacional de Descarbonização da Indústria e com o Plano Clima e Mitigação. É um instrumento de grande valia", afirma o secretário da Economia Verde.

Entre os temas tratados pelo plano estão a mudança de regras e barreiras sanitárias atualmente existentes em relação a sistemas de reúso de embalagem, duplas taxações de determinados materiais ou cadeias e capacitação da indústria para projetar produtos, serviços e sistemas alinhados à economia circular.

Segundo Rollemberg, do Mdic, todos os titulares dos setores industriais do Brasil participaram da elaboração do plano. "A recepção está muito positiva. E essa é uma questão imperativa, seja por todos os acordos internacionais que estão sendo negociados, seja pelas exigências dos mercados consumidores. As empresas terão de se adaptar porque existem aí grandes oportunidades também."