domingo, 27 de abril de 2025

A identidade ambígua do bandido, Muniz Sodré ,FSP

 Tão elástico é o escopo do identitarismo que até mesmo criminosos podem se vangloriar de uma identidade específica. Há quem se defina orgulhosamente como "bandido e não band-aid". Semanas atrás, morreu em confronto com a polícia carioca um chefe do tráfico, bandido pleno, que se identificava como "Cheio de Ódio". Em "The Alto Knight: Máfia e Poder", filme em que Robert de Niro interpreta dois chefões da máfia, diz um deles que não existe meio-bandido. O que contraria a dosimetria penal de "meio-termo" para o 8 de janeiro, sugerida por Michel Temer.

Toda e qualquer identidade se constrói na relação com a alteridade, buscando unidade nas identificações. A isso se presta a palavra bandido, largo espectro de sentido para outras, como criminoso, celerado, ladrão, chantagista. O italiano "bandito" designa alguém banido do convívio comunitário e mancomunado em bandos, com interesses próprios e disruptivos. Isso amplia o escopo do banditismo além da criminalidade penal, pois "bando" implica também desorganização social e moral de formas institucionais.

É ângulo adequado não só a associações criminosas de grande porte (máfias, milícias, sindicatos da morte) como também a aparatos de Estado que se constituam ilegalmente como autônomos. Um fenômeno ambíguo e ubíquo, portanto, no sentido de ocupar ao mesmo tempo lugares sociais diversos. Não à toa, décadas atrás, um prefeito carioca saudou as milícias como "solução comunitária" para a segurança.

Entre nós, caso despercebido é o do Poder Legislativo em suas três instâncias (municipal, estadual e federal) que, nas grandes capitais, desmoralizam a representatividade. Vereadores originam-se de redutos eleitorais dominados por traficantes e milicianos, sem esconder suas promíscuas fidelidades. Polícias militares milicianizam-se pelo descontrole. Desembargadores vendem sentenças. A promiscuidade tem patamares inquietantes em São Paulo. No Rio de Janeiro, houve a prisão sucessiva de cinco governadores. De um desses, procede a mais deslavada e patética autoidentificação bandida de todos os tempos: "Exagerei".

Mas o alarme soa mais alto quando, no plano federal, muitos se elegem como bandidos-matadores. Ou então quando a formação de bando se define por desconexão com a comunidade nacional.

PUBLICIDADE

Assim é que, segundo as pesquisas, a maioria dos brasileiros se mostra favorável à punição dos golpistas do 8 de janeiro, porém a Câmara arregimenta 262 assinaturas de apoio à anistia ampla. Ainda que não prospere, é vexaminosa a contaminação da dita alta legislatura por espírito alheio ao mais grave dos crimes contra a República, implicitamente abrindo portas à sua repetição.

Vexame possível apenas num contexto legislativo em que interesses de uma súcia (emendas sem transparência, favores eleitoreiros etc.) sobreponham-se à vida nacional. Não é criminalidade penalizável, mas banditismo mesmo. Por isso essa palavra se tornou tão sensível na Câmara: um deputado pode ter seu mandato cassado por denunciar a corrupção das emendas e chamar o líder de "bandido".

Haverá quem ache apenas retórica a elasticidade desse conceito. Mas este é um tempo de choque de realidade, em que caem as máscaras das crenças e das palavras. Com a democracia posta em xeque por sinistras boiadas, é hora de dar nome aos bois, lidar com aparências enganosas pelo que realmente são na verdade do espelho: entidades bandidas.


Hélio Schwartsman - A religião ficou obsoleta?, FSP

 


Por um tempo, pareceu que os EUA não seguiriam o caminho da Europa Ocidental e permaneceriam uma nação firmemente religiosa. Não dá mais para acreditar nisso.

Os números não são mais favoráveis às igrejas. Em 1991, 6,3% dos adultos americanos diziam não ter nenhuma filiação religiosa. Em 2021, eram 29,3%. E as coisas ficam muito piores se deixarmos de olhar para a população como um todo e nos concentrarmos nos jovens. No recorte dos 18 aos 29 anos, os sem religião passaram de 7,9% para 43,4%.Algo parecido ocorre com vários outros indicadores de fé religiosa. Dados impressionantes de fechamento de igrejas, seminários e escolas religiosas reforçam essa percepção.

A imagem apresenta uma composição artística com um fundo verde. No centro, há uma grande moldura dourada contendo a figura de um homem vestido com uma túnica vermelha, posicionado em frente a uma janela com vitral. Ao redor, há quatro molduras menores, cada uma contendo um objeto histórico: uma televisão antiga, um gramofone, um telefone de disco e uma máquina de escrever. Os objetos estão dispostos de forma simétrica em relação à figura central.
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman, esta que será publica também na versão impressa da Folha deste domingo (27 de abril) - Annette Schwartsman/Folhapress

Christian Smith, autor de "Why Religion Went Obsolete" (por que a religião ficou obsoleta), traz esses e muitos outros números. A tese de Smith, como reza o título, é a de que, para os mais jovens, religiões tradicionais se tornaram algo obsoleto. E ele não se limita a constatar isso. Tenta entender as razões que levaram a esse movimento.

Explicações incluem desde o fim da Guerra Fria, que sepultou a ideia do "inimigo ateu", até os ataques do 11 de Setembro, que tornaram mais difícil identificar a religião como uma fonte de moralidade. Mudanças no estilo de vida, que reduziu o tempo disponível para atividades comunitárias, também entram.

Há ainda danos autoinfligidos, como os vários escândalos sexuais envolvendo clérigos. Smith é bem extensivo em suas análises.

PUBLICIDADE

Uma conclusão surpreendente é que os jovens americanos, embora estejam se afastando das religiões tradicionais, não estão necessariamente se secularizando, como teriam desejado os iluministas. Ao contrário, os dados do autor permitem vislumbrar um movimento de reencantamento do mundo, visível no grande número dos que fazem questão de se dizer "espiritualizados" ou que abraçam crenças esotéricas: 16% dos millennials acreditam firmemente em tarô e 21% acreditam, mas sem certeza absoluta.

Meu comentário: pulamos da frigideira para o fogo.


O papado de Francisco e o catolicismo de extrema direita no Brasil, Camila Rocha - FSP

 

Sem dúvida, o papado de Francisco foi um grande contraponto à ascensão de lideranças de extrema direita e regimes autoritários. Seu legado para a Igreja Católica e para o mundo foi de extrema importância para a defesa das igualdades e para a ampliação das vozes do Sul Global dentro da Igreja, vindas da Ásia, África e América Latina.

Atualmente, a América Latina está na liderança no número de fiéis com mais de 40% dos católicos do mundo, e o Brasil segue sendo o país com o maior número absoluto, com 182 milhões devotos, o maior rebanho do mundo.

Não à toa, dentre os líderes religiosos mais influentes do país estão padres católicos. O padre Fábio de Melo é o mais popular de todos, com 26 milhões de seguidores no Instagram, seguido pelo padre Marcelo Rossi, com 10,3 milhões, mesmo número de seguidores do perfil oficial do papa Francisco.

Vestido de branco, um homem acena dentro de um carro com parede de vidro e laterais abertais para uma aglomeração de jovens, muito com camisas amarelas e bandeiras do Brasil
O papa Francisco desfila no papa-móvel no encerramento da Jornada Mundial da Juventude, em Copacabana, no Rio de Janeiro - Daniel Marenco - 27.jul.13/Folhapress

Porém, ao contrário do papa Francisco, Fábio de Melo e Marcelo Rossi jamais se posicionaram abertamente contra o crescimento da extrema direita no país. Sem citar nomes, o papa disse, durante as eleições de 2022: "Peço a Nossa Senhora Aparecida que proteja e cuide do povo brasileiro, que o livre do ódio, da intolerância e da violência", causando descontentamento entre eleitores do ex-presidente de extrema direita.

É justamente a oposição aberta ao papa Francisco que aglutinou e mobilizou setores da extrema direita católica no país nos últimos anos. De acordo com o teólogo Venâncio Romero, professor da Universidade Federal do Sergipe, a expansão das redes sociais, em conjunto com o abandono da formação de base e da piora da qualidade da preparação do clero brasileiro, influenciou a popularização da extrema direita católica no país e a atração de padres pelo tradicionalismo.

Para além de figuras populares nas redes sociais, como o padre Paulo Ricardo, que já soma 2,5 milhões de seguidores no Instagram, movimentos como os Arautos do Evangelho vêm crescendo rapidamente. Fundado em 1999 por João Clá Dias, o grupo está ligado à Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição Família e Propriedade, mais conhecida como TFP, que atuou em prol do golpe de 1964 e da ditadura militar no país.

Em 2011, os Arautos passaram a ser uma associação com caráter pontifício, aceitos pelo papa Bento 16 em 2011, mas que estavam sob intervenção do papa Francisco por conta do tratamento dispensado a seus internos. Os jovens que integram os Arautos do Evangelho usam pesadas vestes medievais a despeito do clima tropical e já foram alvo de agressões físicas, verbais, assédio sexual, alienação parental, tortura, estupro e até homicídio, segundo uma série de denúncias junto à Igreja e à Justiça brasileira.

PUBLICIDADE

Porém, a ampla exposição negativa na mídia e o conflito com o Vaticano parecem não ter tido maior impacto na atuação dos Arautos, que hoje já possuem 3.000 membros e já se espalharam por mais de 70 países.

No clima político atual, o crescimento de seitas como os Arautos do Evangelho tornou-se uma questão séria a ser enfrentada pela Igreja e pela sociedade. E a escolha do próximo papa pode fazer a diferença entre um futuro mais ou menos parecido com a distopia escrita por Margaret Atwood, "O Conto de Aia". Basta uma visita à sede dos Arautos do Evangelho para confirmar que a comparação está longe de ser exagerada.