domingo, 13 de outubro de 2024

Celso Rocha de Barro-Quem venceu as eleições?, FSP

 A vitória da direita nas eleições de 2024 foi o cruzamento de dois tsunamis que atingiram a política brasileira nos últimos anos. Nenhum é de esquerda.

O primeiro é o surto de extrema direita que começou com o impeachment de Dilma Rousseff e ganhou volume com a eleição de Bolsonaro. Efeitos dessa onda ainda são claramente visíveis nos resultados de 2024: as listas de vereadores mais votados nas capitais estão cheias de extremistas, de Carlos Bolsonaro no Rio a Lucas Pavanatto em São Paulo.

Bolsonaristas puro-sangue ainda podem conquistar as prefeituras de CuritibaFortaleza e Belo Horizonte. Quando parte da liderança bolsonarista tentou se aliar à direita tradicional, seus seguidores se insurgiram e abraçaram extremistas como Pablo Marçal e Cristina Graeml.

A propósito, por algumas horas na noite de domingo os eleitores cariocas chegaram a se iludir, achando que dessa vez Carluxo não teria alternativa a não ser dar expediente como vereador. Mas na segunda-feira o Twitter voltou.

A segunda onda que ganhou volume na política brasileira nos últimos anos foi o fortalecimento dos partidos políticos, iniciado após a reforma política de 2017.

Imagem de Gilberto Kassab com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, rindo
Gilberto Kassab com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas - Danilo Verpa/Folhapress

Os governos petistas haviam proposto reformas parecidas por duas vezes antes disso. Se as reformas tivessem sido aprovadas nos anos 2000, PT e PSDB teriam se consolidado como máquinas partidárias mais sólidas.

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Não foram. As reformas que fortaleceram os partidos só aconteceram em 2017, nos anos de menor popularidade da esquerda desde a volta da democracia e de início do surto de extrema direita.

Ouvi de um ex-dirigente petista: já há direitistas falando de voto em lista fechada, sistema que dá enorme poder às direções partidárias para determinar que deputados serão eleitos. Nos anos 2000, quando o PT propôs a lista fechada, foi acusado de querer instaurar a ditadura das burocracias partidárias.

Com isso, os partidos fortalecidos pela reforma de 2017 foram, sobretudo, os partidos do centrão. O PP, o União Brasil, o PSD de Kassab são máquinas cada vez mais ricas e poderosas. O Congresso Nacional, onde o centrão é mais forte, vem a cada dia roubando da Presidência o controle de um pedaço maior do Orçamento. E os partidos de direita aprenderam com o PT, que por muitos anos foi a única grande legenda a oferecer formação a seus militantes, a ter secretaria de mulheres, de jovens, etc.

O Brasil está se tornando um país de partidos, e as legendas que estão se fortalecendo são as que todo mundo, tucanos e petistas, black blocs de 2013 e bolsonaristas, achavam as piores.

Ninguém discute que a esquerda perdeu, mas qual das duas direitas venceu a eleição de 2024? A direita-redes ou a direita-máquina?

Se o bolsonarismo vencer em Curitiba e Belo Horizonte, poderá dizer que teve uma boa eleição. Mas os grandes vencedores de 2024 foram as novas máquinas partidárias do centrão, que devem governar a maior parte dos brasileiros nos próximos quatro anos.

O que não sabemos é se esses partidos fortes aceitarão o risco de se tornarem partidos que elegem presidente, se aceitarão ir para o centro do alvo. O último grande partido que fez esse papel pela direita teve apenas 1,5% dos votos em São Paulo neste ano e não tem mais vereadores na cidade.

Mexida de Lula no IR afeta muito mais renda do que se imagina. Se for para valer, VTF FSP

 O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende compensar a perda de receita com a isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física para quem ganha até R$ 5.000 cobrando mais imposto de quem ganha mais de R$ 1 milhão por ano, como revelou esta Folha. A isenção é uma promessa de Lula, em 2022. Talvez se torne projeto de lei no ano que vem ou em 2026. Talvez.

Tem-se apenas ideia muitíssimo vaga do que seriam a isenção e a cobrança, sobre quem incidiriam e para qual tipo de rendimento. Vamos tratar disso mais adiante, neste texto.

Um homem com cabelo grisalho e barba, vestindo um terno escuro e uma camisa branca, está falando ao microfone. Ele gesticula com a mão levantada, indicando um ponto importante. Ao fundo, há uma tela com um padrão azul.
O presidente Lula discursa em evento no Palácio do Planalto - Evaristo Sá/AFP

Primeiro: a intenção de não perder receita é o mínimo razoável a esperar. O governo federal tem e terá déficits primários por anos —não consegue nem cobrir suas despesas básicas, que dirá pagar a conta de juros (que é financiada com mais dívida).

Dado o tamanho do estrago, por que não apenas cobrar impostos dos mais ricos, sem isenções, a fim de fazer um remendo na situação preocupante das contas públicas? O governo não quer: diz que não vai aumentar IR para tapar déficit.

Segundo, é mais fácil aprovar lei de isenção de imposto do que aumentar imposto. Tendo aprovado a lei, é difícil arrecadar o tributo maior, por motivos variados. Mudança de imposto muda comportamentos do contribuinte, que tenta fugir do tributo como a caça do caçador —não se trata aqui de evasão.

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Terceiro, o que significa rendimento de R$ 5.000? Suponhamos que seja o rendimento do trabalho (salário ou não). Segundo a Pnad-IBGE para dados de 2023, 90% dos rendimentos mensais do trabalho habituais não passavam de R$ 5.603.

Pelos dados da Receita Federal, dos 38,4 milhões de contribuintes que entregaram declaração em 2022, uns 64% tinham renda tributável bruta de até R$ 60 mil por ano (o percentual varia um tanto, a depender do conceito de renda tributável).

Os números indicam que o país é pobre; que, com a mudança de Lula, ainda menos gente pagaria IR. Por outro lado, claro, a tributação é regressiva e muito rico paga muito pouco.

Quarto, a gente desconhece o modelo da reforma. Estaria isento quem ganha até R$ 5.000 mensais. Pelos mesmos critérios de cálculo de isenção atuais? Suponha-se que sim. Quem ganha mais de R$ 5.000 vai ter isenção de IR para a parcela de sua renda até R$ 5.000? O governo diz que não, a fim de conter o custo da mudança e de não beneficiar pessoas algo mais ricas. Mas não se sabe qual será a tabela de isenções ou alíquotas.

Se não houver isenção de parte da renda até R$ 5.000, vai haver um salto muito grande no imposto de quem ganha até R$ 5.000 e de quem ganha não muito mais do que isso. Não faz sentido —óbvio que a Receita sabe disso. Porém, sem saber de mudança de isenções e/ou de alíquotas para quem ganha mais de R$ 5.000, não dá para pensar no custo e na justiça da mudança.

Quinto, quais rendimentos serão tributáveis? Vai mudar alguma coisa em tipos e alíquotas? A pergunta é ainda mais importante no caso dos mais ricos. A depender do que vai ou não permanecer isento, o tamanho da conta e da mudança de comportamento do contribuinte pode ser maior ou menor.

Dada a incerteza, os cálculos do custo da isenção são birutas. Não se tem ideia da tabela de isenções, de alíquotas e do que vai ser tributado. Por isso também, os cálculos da isenção variam de R$ 35 bilhões a R$ 100 bilhões —um indício de que não sabemos nada.

Muniz Sodré - A vida posta em risco na roleta, FSP

 Bastou a Alexei Ivanovitch jogar uma única vez para que o vício se instalasse (Dostoeivsky em "O Jogador"), com todas as consequências de destruição e ruína. Para o adicto, o fundamento do jogo não é ficar milionário, mas substituir o tempo real por uma mitologia que absorve a angústia do tempo e da morte. A compulsão decorre de uma seriação detentora do poder imaginário de redefinir as condições reais de vida e finitude. O motor neurótico do sistema, verdadeira raiz da paixão, é ganhar e perder sem fim, satisfação e decepção, até que o jogador se autodestrua.

Site de apostas em um laptop - Pedro Affonso - 2.out.2024/Folhapress

Nessa época de intenso pessimismo político, moral e cultural, é também essa a lógica da religião da matéria oferecida como consolação às massas pelos cultos da prosperidade. Aposta-se que um investimento monetário em Deus retornará multiplicado. E o crupiê pastoral adverte que é a primeira coisa a fazer com o salário, pois "Deus não gosta de restos".

Na roleta financeira, os lances são altíssimos, claro, para quem pode. Mas é idêntica a pulsão: o corpo-imagem do sujeito, fabricado pelas novas tecnologias da comunicação, é instado a experimentar o gozo imediato do risco.

Agora soou um alarme: os populares jogos de apostas online, conhecidos como bets, são suspeitos de afetar negativamente o bem-estar da população e a economia nacional. "Ludópata" é a designação científica para o viciado, cujo tratamento ainda não encontra lugar em clínicas médicas.

A questão não é, porém, terapêutica. Sob o capitalismo algorítmico, toda estrutura social passa a funcionar como cassino. O projeto neoliberal consiste no desmantelamento do estado de bem-estar social e na definição do indivíduo como criador único de si mesmo, livre para a obtenção de riquezas. Cada um rodando em torno de si próprio, como uma roleta.

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Esse giro, se excessivo, beira a catástrofe. O nazifascismo foi um giro alucinado e maquinal ao redor dos próprios princípios, sem admitir relações nem limite externo, ou seja, a essência mesma da loucura. O fenômeno ressurge como forma soft de poder, em que se imbricam a razão econômica, a digital e a biológica, para acabar com a distinção entre homem e máquina, entre espírito e matéria. O culto da prosperidade é aspecto popular dessa despercebida religião inespiritual, que absorve crentes e ateus.

Jogos de azar, sempre houve. O que agora acontece é a perfeita adequação entre risco e uma ordem social voltada para a construção do sujeito como empreendedor individual, descomprometido com o comum. Mas o capital disponível contempla só as classes abastadas. Nas subalternas, a carência é consolada pela retórica da prosperidade, que não aponta para trabalho produtivo, e sim para o imaginário da riqueza aleatória.

Aposta-se em tudo: na sobrevivência pessoal, no templo e agora nas bets, o novo cassino online, que o governo se empenha em legalizar, interessado apenas em arrecadar. A Fazenda criou até mesmo uma Secretaria Geral de Apostas e Prêmios. Bet é nada menos que o crack virtual, obscenamente oferecido a crianças, que se tornam crupiês mirins. Fala-se em ludopatia epidêmica, mas se esconde a fonte verdadeira da compulsão. A hipocrisia é oficial.