segunda-feira, 13 de maio de 2024

Tarcísio usou operação contra PCC para pressionar presidente da Câmara a votar privatização da Sabesp, Agenda do Poder

 O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) usou a Operação Fim da Linha para pressionar o presidente da Câmara de São Paulo, Milton Leite (União Brasil), a acelerar a votação do projeto de privatização da Sabesp.

Leite era contrário à privatização, mas mudou de posição após a operação e votou a favor.

A informação foi confirmada por sete fontes, duas delas com cargos no governo de São Paulo e outra na Sabesp. Todas as identidades serão mantidas em sigilo.

Na madrugada de 9 de abril, dirigentes das empresas de ônibus Upbus e Transwolff foram presos na Fim da Linha, acusados de lavar dinheiro do PCC.

A operação envolveu 64 membros do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), 43 integrantes da Receita Federal e 340 PMs, entre outros.

Na manhã seguinte, o MP-SP listou, entre as testemunhas do caso, o deputado federal Jilmar Tatto (PT-SP) e o presidente da Câmara Municipal de São Paulo, Milton Leite (União Brasil).

Segundo a reportagem apurou, a menção nominal foi um “recado” do governo para pressionar o vereador, responsável por pautar a votação do projeto de lei de autoria do prefeito Ricardo Nunes (MDB) que autoriza a cidade de São Paulo a aderir à privatização da Sabesp.

Foi por causa da Fim da Linha, dizem diversas fontes ouvidas pelo portal UOL, que Leite acelerou a votação do projeto.

“O Fim da Linha tinha endereço: o de Milton Leite”, diz uma dessas fontes.

“Leite citado como testemunha é pior que acusado. Se fosse acusado, poderia apenas negar as acusações. Já como testemunha, precisa dizer a verdade, desperta a dúvida do que pode dizer e quem pode implicar”, diz um parlamentar que pediu para não ser identificado.

Outro parlamentar conta que conversou com um amigo promotor recentemente: “Vocês não têm coragem de investigar Milton Leite, não? E ele respondeu: Não”.

“Se você publicar meu nome, amanhã eu não estou vivo”, completa a fonte.

Procurado, o Ministério Público não respondeu. O governo Tarcísio destacou que o MP-SP “goza de total autonomia e independência”: “Qualquer afirmação oposta trata-se de mera ilação”.

Via assessoria de imprensa, Leite negou “veementemente” que tenha sido pressionado pelo governo. “O ‘acelerar’ a que você se refere é cumprir todo o rito legal, porém reconhecendo que o prefeito Ricardo Nunes pediu agilidade neste processo porque ele é importante para o município.”

‘Chave da Cidade’

Leite sinalizava desde novembro que iria travar a votação. O projeto de lei entrou na Câmara no fim de março.

“A sensação, na Câmara, é de desconforto com o projeto. Hoje, nós não temos votos para aprová-lo. E, no desconforto, eu não voto. O governo tentará acelerar a tramitação na Câmara, mas vai ter muita dificuldade, pois há resistência de vários lados”, disse.

Em 9 de abril, após a deflagração da Operação Fim da Linha, foi expedido um parecer de legalidade para a privatização da Sabesp. No dia seguinte, foi publicado o calendário de audiências públicas sobre o assunto no Diário Oficial.

Em 17 de abril, o projeto patinou: foram 18 votos a favor, 36 contra.

Em 2 de maio, o jogo mudou: 37 votos a favor, 17 contra.

“Na política, não existe coincidência”, conta um parlamentar que já trabalhou perto de Leite, referindo-se ao “timing” entre a Operação Fim da Linha e o avanço das discussões sobre a Sabesp.

“Nada passa sem o aval dele [Leite]”, acrescenta outro. “Todo mundo sabe que ele [Leite] tem os votos que quiser na Câmara”, diz uma fonte da Sabesp.

“A chave para privatizar a Sabesp é o município de São Paulo. E quem segura a chave da cidade é Milton Leite.”

A juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, havia determinado que a Câmara só poderia votar o projeto após apresentar um estudo de impacto orçamentário da privatização e realizar todas as audiências públicas.

O estudo não foi divulgado e nem todas as audiências foram feitas — uma delas, da Comissão de Finanças e Orçamento, estava prevista para 23 de maio.

O que a Câmara considera como “estudo” é um ofício de 26 de abril assinado pelo secretário da Casa Civil, Fabrício Arbex, junto a um documento de quatro páginas assinado pelo secretário executivo Fernando Barrancos Chucre.

O ofício diz apenas que “não se vislumbra qualquer impacto orçamentário-financeiro” no projeto de lei: “A posposta [sic] legislativa não cria qualquer nova despesa ou implica qualquer renúncia de receita para o município”.

A juíza então suspendeu a validade da votação na Câmara. Leite declarou à Folha que a magistrada se equivocou “levada a erro pela oposição, que peticionou inverdades”.

Histórico

Há décadas são citadas relações entre Leite e empresas de transporte na zona sul de São Paulo.

Nas eleições de 2004, por exemplo, a Cooperpam, cooperativa de peruas presidida por Luiz Carlos Efigênio Pacheco, conhecido como Pandora, fez campanha para Leite — eleito pela primeira vez em 1996, ele está no sétimo mandato seguido como vereador.

Uma empresa de Leite, a Lisergo Construções, assinou um contrato de R$ 7 milhões em 2006 para construir uma nova garagem para a Cooperpam. Na época, o contrato foi alvo de investigação.

Foi a partir da Cooperpam que surgiu a Transwolff. Pandora foi um dos presos na Operação Fim da Linha.

Ao portal UOL, Leite afirmou que não recebeu nenhuma comunicação do MP-SP. Enfatizou que não é investigado. “Afirmo que, se for ouvido, será como testemunha”.

Leite era contra a privatização, lembram interlocutores. Isso porque ele foi um dos responsáveis pelo PL que autorizou, em 2009, o contrato entre a Sabesp e a cidade de São Paulo, assinado em 2010.

Foi ele que, na época, insistiu em uma cláusula para garantir que os investimentos feitos pela Sabesp fossem amortizados até o fim do contrato, em 2040.

Amortizar quer dizer que a Sabesp investiu e não deve nada à cidade; e que a cidade, fonte da maior arrecadação da companhia, pagou e não deve nada à Sabesp.

A cláusula caiu nas negociações para o novo contrato para a privatização. Segundo fontes ouvidas pela reportagem, Leite “rifou” a Sabesp para atender a uma exigência de Tarcísio: a cláusula afastaria o interesse da iniciativa privada.

“No contrato atual, Sabesp e São Paulo chegariam ao zero a zero em 2040: ninguém deve nada a ninguém. No contrato novo, sem a cláusula que cita a amortização, a cidade vai ficar devendo bilhões para quem se apossar da Sabesp. É essa a garantia de lucro do negócio”, diz uma fonte da Sabesp.

O contrato que está sendo discutido abre brecha para aumento nas tarifas de água. “Quem vai pagar a conta é o cidadão.”

Leite afirmou que desde o início das discussões na Câmara foi “muito transparente” e que afirmou diversas vezes que não concordava com o texto inicial.

“Deixei claro que a cidade de São Paulo não poderia sofrer nenhuma perda e que as discussões deveriam partir da elevação das contrapartidas ao município.”

“Ao longo das discussões o projeto avançou, o texto foi aprimorado e, por isso, o PL foi pautado e aprovado”, disse.

Com informações do UOL.

Leia mais:

‘Fazendas de carbono’, uma oportunidade de US$ 15 bi ao Brasil, começam a mudar paisagem na Amazônia, OESP

 ebaixo do céu aberto e do sol forte das 11 horas da manhã, Josias Santos, 51 anos, respira fundo após tomar um pouco de água para aliviar o calor intenso. Com a manga da camisa, limpa o rosto sujo pelo suor misturado com a poeira fina que levanta da terra, ainda arenosa e seca, pouco antes da irrigação feita para receber as mudas de espécies nativas na área descampada que um dia foi pastagem de gado. Josias é um dos 20 trabalhadores que atuam na linha de frente, plantando muda por muda, em um projeto de restauração de uma área degradada de pouco mais de 8,3 mil hectares (ou 83 km²) na pequena cidade de Maracaçumé, na divisa do Maranhão com o Pará.

A função é nova para o ex-vaqueiro, que por 22 anos trabalhou nesse mesmo pedaço de chão, na fazenda “Entre Rios”. A propriedade até pouco tempo era voltada para a pecuária, assim como ainda são as demais fazendas vizinhas no município, que tem pouco mais de 20 mil habitantes. “Quando a gente soube que ia ser vendida, teve medo de ficar desempregado. Mas, chamaram a gente, deram treinamento, e hoje estou aqui. É bom, porque vejo que estão recuperando, para ter árvore de novo. Aqui não tinha mais como fazer nada e vai virar floresta de novo, né? O cabra hoje vai derrubando a mata e não se lembra do amanhã”, afirma.

Para ele, o novo modelo de trabalho também compensa, o que fez com que recusasse oferta de outros fazendeiros da região para seguir no ofício com o gado. “O vaqueiro não tem horário certo. O patrão chama, tem que atender.”

A fazenda agora é uma das unidades da re.green, empresa que atua no mercado de crédito de carbono e tem no local sua primeira área na Amazônia Legal. A meta da empresa é restaurar 1 milhão de hectares de Mata Atlântica e Floresta Amazônica em 15 anos. Para dar uma dimensão, o compromisso assumido pelo governo brasileiro internacionalmente, no Acordo de Paris, é de restaurar 12 milhões de hectares até 2030.

A re.green opera no mercado voluntário de carbono, no qual vende créditos para empresas cumprirem compromissos climáticos que não estão sujeitos a obrigações legais de redução de emissões. Cada crédito vendido pela re.green corresponde a uma tonelada de gás carbônico que foi capturado da atmosfera por meio de árvores. A companhia aposta em um segmento em que o crédito custa mais caro: o da restauração ecológica. Nele, áreas degradadas recebem mudas de plantas nativas e são completamente reflorestadas.

Outro segmento do mercado de carbono é o de projetos do tipo REDD+, que só podem ser desenvolvidos em áreas sob pressão de desmatamento. Nesse modelo, o crédito corresponde a uma tonelada de CO2 que deixou de ser emitida. Para se ter esse crédito, engenheiros calculam o desmatamento médio da região. Se o dono da terra conseguir manter a mata nativa em pé, no ano seguinte, tem a diferença convertida em créditos de carbono.

Mudas sendo plantadas em fazenda da re.green em Maracaçumé (MA)
Mudas sendo plantadas em fazenda da re.green em Maracaçumé (MA) • FILIPE BISPO/ESTADÃO

Por trás da re.green estão investidores de peso. Fundada em 2021, a startup angariou R$ 389 milhões em investimentos que vieram do BW (escritório de investimentos da família Moreira Salles), da Gávea Investimentos (do ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga e com participação de Fábio Barbosa, CEO da Natura) e das gestoras de recursos Lanx Capital e Dynamo. Guilherme Leal, da Natura, se juntou a eles. Fraga e João Moreira Salles fazem parte do conselho de administração da empresa.

Até agora, a re.green tem 25 mil hectares, divididos em cinco propriedades: três no sul da Bahia, em área de Mata Atlântica, a do Maranhão e uma em Paragominas, no Pará, no bioma amazônico. Em algumas delas, a estratégia é combinar silvicultura de madeira nativa com projetos de carbono. A empresa afirma que é uma forma de tornar financeiramente viável a restauração em larga escala em locais onde o preço da terra é elevado. Nesse caso, é feito um ciclo de colheita da madeira e, depois, a restauração completa do local com espécies nativas.

“Começamos comprando terras. Mas, nos últimos meses, estamos avançando em uma agenda de parceria com proprietários de terra degradada, tanto de empresas grandes como de pequenos proprietários”, afirma o diretor de tecnologia e inovação da re.green, Fernando Visser. Segundo ele, cerca de 80% dos clientes da startup são americanos ou europeus. Na semana passada, a empresa anunciou um acordo com a Microsoft para viabilizar a captura de 3 milhões de toneladas de carbono pelos próximos 15 anos, um dos maiores negócios de crédito de carbono conhecidos.

Reduzir as emissões de carbono pode ser um processo difícil ou lento para alguns setores econômicos. A compra de um crédito de carbono é uma maneira de compensar as emissões para cumprir compromissos assumidos pelas empresas com seus consumidores e investidores, ou mesmo para cumprir determinações legais (nesse caso, dentro do mercado regulado).

Josias Santos era vaqueiro e agora trabalha no reflorestamento
Josias Santos era vaqueiro e agora trabalha no reflorestamento • FILIPE BISPO/ESTADÃO

A restauração de áreas degradadas é apontada como uma das medidas necessárias para o Brasil atingir as metas previstas no Acordo de Paris, uma vez que apenas zerar o desmatamento, especialmente de vegetação nativa da Amazônia, pode não ser mais suficiente para conter as emissões de carbono do País. Mas não só isso. O mundo olha para o Brasil, quando o assunto é crédito de carbono, pelo potencial de encontrar, aqui, solução para compensar as emissões de poluentes em países onde não há mais florestas ou área disponível para restauração.

A consultoria McKinsey calcula que a demanda voluntária por crédito de carbono deve crescer exponencialmente e esse mercado, pular do patamar atual de US$ 1 bilhão para US$ 50 bilhões em 2030. O Brasil pode abocanhar até US$ 15 bilhões desse total.

“Estamos ainda em um estágio inicial desse mercado, nem perto do que estimamos como potencial. Ainda é um volume ínfimo”, afirma Arthur Ramos, especialista em clima, sustentabilidade e energia, da consultoria Boston Consulting Group (BCG). “Temos crédito de carbono vendido a US$ 2 e a US$ 800. Existe uma corrida também por qualidade no setor”, diz Ramos. Segundo ele, a qualidade virá da capacidade de certificar a existência do crédito.

O mercado voluntário, em que a re.green atua, tem avançado no País, mas não sem passar por dificuldades decorrentes de uma crise global de credibilidade. A desconfiança no setor começou em janeiro do ano passado, quando o jornal inglês The Guardian, a revista alemã Die Zeit e a organização de jornalismo investigativo sem fins lucrativos SourceMaterial publicarem uma reportagem que mostrava que grande parte dos créditos de carbono reconhecidos pela Verra (a maior certificadora do mundo na área) não compensavam emissões como deveriam.

O mercado regulado, por sua vez, depende do avanço de discussões no Congresso. “É inaceitável o tempo que estamos levando para ter uma lei”, afirma Ramos.

Área de restauração da Entre Rios, operada pela re.green, no Maranhão
Área de restauração da Entre Rios, operada pela re.green, no Maranhão • FILIPE BISPO/ESTADÃO

De acordo com o projeto de lei que está em tramitação, o Brasil terá um sistema de comércio de emissões de gases semelhante ao adotado na União Europeia. Esse sistema se baseia no mecanismo de “cap and trade” (limite e comércio em inglês), em que são estabelecidas cotas de emissões para os entes regulados (empresas, por exemplo). Quem emitir menos toneladas de CO2 que sua cota pode vender a diferença para quem ultrapassou seu limite.

O projeto foi aprovado no Senado e encaminhado à Câmara no ano passado. Em dezembro, deputados fizeram alterações e, agora, o texto precisará ser novamente debatido por senadores e retornar à Câmara. No Senado, ainda não há um relator.

“Vejo muito interesse do governo em aprovar com brevidade um projeto. O que tenho ouvido, no entanto, é que há um desalinhamento entre Senado e Câmara, e esse projeto está no meio de um bolo de diversas iniciativas que dependem de um certo consenso das casas para avançar”, afirma Antonio Augusto Reis, advogado e sócio de direito ambiental e mudanças climáticas do escritório Mattos Filho.

Reis avalia que, apesar de a legislação em debate se concentrar no mercado regulado, o impacto de sua aprovação para o mercado voluntário tende a ser algo positivo. “A definição da natureza jurídica do crédito, por exemplo, é muito positiva. Porque hoje o que se tem é insegurança jurídica”, afirma.

Outros atores envolvidos na discussão, porém, afirmam que o PL interfere no mercado voluntário de forma negativa. Segundo eles, isso tem preocupado empresas que desenvolvem esse tipo de projeto.

“É inaceitável o tempo que estamos levando para ter uma lei”

Arthur Ramos

Especialista em clima, sustentabilidade e energia, da consultoria BCG

Uma dessas regras é a de que créditos negociados no mercado voluntário e exportados para um país teriam de ser registrados pelo sistema brasileiro que vai organizar o mercado regulado sempre que esse país comprador quiser usar o crédito para reduzir as emissões com as quais se comprometeu no Acordo de Paris. Esse sistema brasileiro será administrado pelo governo federal.

Se, por um lado, membros da sociedade civil consideram que isso pode aumentar a transparência e a segurança do mercado, por outro, empresas desenvolvedoras de projetos acreditam que aumentará a burocracia e a morosidade.

Essa, no entanto, é apenas uma das discussões em torno do projeto de lei que cria o mercado regulado e que estão travadas desde o começo do ano. “É como se você fosse regular o mercado geral de energia brasileiro e colocasse dez artigos sobre energia solar. O Brasil está regulando seu mercado, criando um teto para emissões, mas colocou um monte de artigos no projeto de lei que são adendos, que não precisariam estar lá. O cenário agora é o de que não tem como (o texto) continuar tramitando”, diz Yuri Rugai Marinho, sócio da Eccon, empresa que também desenvolve projetos de carbono.

Segundo ele, o Brasil estava com um debate mais maduro para regulamentar o mercado em 2023 do que está agora. No ano passado, às vésperas da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP), o governo deu celeridade ao projeto, cujo texto estava alinhado às expectativas do setor privado.

Yuri Rugai Marinho: ‘Cenário é o de que não tem como PL continuar tramitando’
Yuri Rugai Marinho: ‘Cenário é o de que não tem como PL continuar tramitando’ • TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Mesmo antes de o projeto de lei começar a tramitar, o Brasil já estava bastante atrasado na implementação de seu mercado regulado. A diretora de clima do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), Viviane Romeiro, lembra que a criação desse mercado foi prevista em 2009 pela Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima. Apesar de a lei não estabelecer um prazo para a criação do mercado, ela já dava diretrizes para isso.

Por mais de cinco anos, no entanto, pouca coisa foi feita no Brasil, e as discussões em torno de um mercado regulado só começaram a ganhar tração com o Acordo de Paris, em 2015, e conforme a crise climática foi se agravando, destaca Romeiro.

No ano passado, a questão finalmente virou prioridade no governo federal. “Houve um avanço para que o projeto fosse aprovado. Mas há um impasse político. O governo federal está muito a favor da regulamentação. O desafio é no Legislativo”, diz Romeiro.

A diretora do Cebds destaca que o mercado regulado é um instrumento que deve ser usado de forma temporária para impulsionar as empresas a reduzirem suas emissões. “O objetivo não é que grupos se enriqueçam com ele. O mercado voluntário, sim, tem esse objetivo.”

Ainda que o projeto seja aprovado neste ano, deve demorar para que o mercado comece a operar. O texto prevê, após a sanção do presidente, um prazo de até dois anos para a regulamentação. Depois, na fase de implementação, as empresas terão apenas que reportar suas emissões, não sendo obrigadas a limitá-las. “A precificação dos créditos, com muita sorte, deve começar mesmo só lá por 2032”, diz Ronaldo Seroa da Motta, professor de economia da UERJ e especialista em mercado de carbono.

Segundo Motta, enquanto o Brasil demora para colocar seu mercado em funcionamento, a União Europeia, a Nova Zelândia e o estado americano da Califórnia são quem possuem mercados mais desenvolvidos. “Há outros, mas ainda incipientes.”

Como é feito o reflorestamento de uma fazenda de crédito de carbono

No projeto de reflorestamento da re.green, as mudas plantadas nas fazendas no Norte e no Nordeste do país vêm não só de viveiros próximos, mas também do interior de São Paulo. Em 2021, a empresa incorporou o viveiro Bioflora, em Piracicaba, existente desde 1989. A intenção é ter, em São Paulo, um local para garantir a produção de mudas na escala necessária, se os viveiros da Bahia ou da Amazônia não suprirem a necessidade para avançar na velocidade ambicionada. É o que a engenheira florestal Fernanda Guimarães, coordenadora de captação e produção de sementes e mudas, chama de “viveiro regulador”. Hoje, a produção é de 2,5 milhões de mudas por ano, com projeto de expansão para 10 milhões.

Viveiro em Piracicaba (SP); mudas viajam do interior paulista até o Norte e o Nordeste
Viveiro em Piracicaba (SP); mudas viajam do interior paulista até o Norte e o Nordeste • DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

“O nosso foco é a compra local, mas o viveiro de São Paulo é a garantia de que a muda não vai faltar. Muitos viveiros na Amazônia ainda produzem em sacos de 5 quilos. É uma produção artesanal e cara. Precisamos produzir em escala, com custo menor e lucro maior”, afirma Guimarães. Segundo ela, da maneira como o mercado está estruturado hoje, não seria possível fazer a restauração de vegetação em larga escala. “Os viveiros locais têm capacidade pequena de produção. Estamos construindo uma cadeia que seja possível no futuro”, afirma.

Em Piracicaba também são testadas as tecnologias que a re.green pretende levar a rincões do País. A produção de mudas no Brasil é majoritariamente feita em tubetes de plástico. No Bioflora, no entanto, o processo é mecanizado e as mudas são encapsuladas em material biodegradável, sem plástico, e vão direto para o solo.

“Víamos projetos de restauração que eram só por obrigação legal. Quantos desses estão protocolados até hoje sem que tenha sido plantada uma muda? Com o ‘boom’ do crédito de carbono e as pessoas vendo forma de ter lucro nisso, começamos a visualizar a possibilidade de restauração real.”

Fernanda Guimarães

Engenheira florestal na re.green

Ali também há desenvolvimento de clone de espécies nativas para diminuir a dependência de sementes. A semente de Pau Brasil, por exemplo, só é coletada em um mês do ano, dezembro, e tem de ser semeada assim que coletada. É um dos casos em que o clone é tido como essencial. Há dez espécies com clones sendo testados.

Na “Entre Rios”, as primeiras remessas de mudas que estão sendo plantadas vieram todas de Piracicaba. Após percorrerem em carretas frigoríficas os quase 3 mil quilômetros que separam o viveiro no interior paulista da área de plantio no Maranhão, as mudas ficam numa área logo na entrada da fazenda.

Mudas de pau brasil no viveiro da re.green, em Piracicaba, onde empresa testa desenvolvimento de clones de espécies nativas
Mudas de pau brasil no viveiro da re.green, em Piracicaba, onde empresa testa desenvolvimento de clones de espécies nativas • DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Ali, antes do plantio, elas passam até dois meses se aclimatando, recebendo irrigação frequente. Ao mesmo tempo, são submetidas a um processo chamado de “batismo”, que é o tratamento com produtos que ajudam na fixação da raiz da muda no solo e que evitam proliferação de pragas ou ataques de insetos, como o cupim.

“Aqui tem muitos fatores, mas o maior inimigo é o capim, que pode avançar e não deixar a muda crescer. E precisa ter todo um acompanhamento, com adubação e irrigação do solo na área”, aponta Carlos Nunes Junior, gerente de operações da re.green.

Nesta primeira etapa, as espécies escolhidas servem para preparar o terreno para outras, maiores. Como têm crescimento mais rápido, elas melhoram o solo com adubo natural das folhagens e criam sombreamento, criando ambiente propício para o crescimento das árvores de porte maior. “Devemos ter mais de 200 espécies aqui. Queremos gerar uma área com alta biodiversidade de flora”, diz Nunes Junior.

Área de plantio de árvores nativas em fazenda no Maranhão
Área de plantio de árvores nativas em fazenda no Maranhão • FILIPE BISPO/ESTADÃO

O caminho é longo e um dia de trabalho reflete o tamanho do desafio. No primeiro dia de plantio, no início de novembro do ano passado, foram 8 hectares cobertos com mudas de espécies nativas, como mutamba, trema e senna. “Todos os nossos trabalhadores passaram por treinamento prévio da atividade. Aos poucos, pegam o jeito e vão acelerar o ritmo. É uma atividade nova para a maioria deles”, diz João Avelino, da Cultivar, empresa terceirizada para a fase inicial do projeto de restauração.

A meta da re.green é concluir a etapa de plantio em até um ano e meio. Para isso, terá de plantar espécies nativas em cerca de 8,3 mil hectares. A área total da fazenda é de mais de 18 mil hectares. “O processo de restauração tem várias etapas e leva vários anos. Entre seis meses e um ano essas mudas de hoje vão estar numa altura suficiente para vencer a competição. Complementando com as demais atividades de restauração, já vai ter um aspecto de floresta reiniciando”, acrescenta Nunes Junior.

A engenheira florestal da re.green já trabalhava com projetos de restauração antes, junto a grandes empresas. Mas ela conta que só nos últimos três anos viu, de fato, o cenário deslanchar.

“Víamos projetos de restauração que eram só por obrigação legal. Para o cara conseguir vender madeira, tinha que protocolar um projeto (de restauração). Quantos desses estão protocolados até hoje sem que tenha sido plantada uma muda? Com o ‘boom’ do crédito de carbono e as pessoas vendo forma de ter lucro nisso, começamos a visualizar a possibilidade de restauração real”, afirma.

Alternativas

“A ideia de um mercado de carbono que traga dinheiro e volume necessário é super relevante”, diz o pesquisador Paulo Barreto, do projeto Amazônia 2030. Segundo ele, é preciso desenvolver três iniciativas ao mesmo tempo para que o País cumpra suas metas: o controle do desmatamento, um pacote de soluções para promover a pecuária sustentável e as alternativas econômicas para recuperar o pasto já degradado.

Estudo publicado em fevereiro pelo projeto Amazônia 2030, dos pesquisadores Paulo Barreto, Ritaumaria Pereira e Arthur José da Silva Rocha, aponta que a adoção de uma pecuária mais sustentável na Amazônia poderia liberar 37 milhões de hectares de terra para a restauração florestal. A proposta dos pesquisadores é concentrar a produção pecuária, com técnicas de aumento da produtividade, nas regiões que ficam a até 60 km de distância dos frigoríficos da região. Isso daria conta de toda a demanda de carne projetada até 2030. A maioria (55%) dos pastos que ficava além dos 60 km de distância de frigoríficos estavam degradados.

“É meio dramático dizer que a melhor solução para quem desmatou e está com baixa produtividade não seria pasto. Temos que criar outras alternativas para essa situação”, diz Paulo Barreto. Segundo ele, outras atividades, que não o restauro, ligadas à bioeconomia não dariam conta de servir de alternativa para toda área degradada. “Falar dessas soluções faz sentido, mas não vai resolver tudo que foi desmatado. E aí entra o tema da restauração”, afirma Barreto.

Mudas de mogno são plantadas em papel biodegradável no viveiro da re.green em Piracicaba
Mudas de mogno são plantadas em papel biodegradável no viveiro da re.green em Piracicaba • DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Dilson Ferreira, de 47 anos, motorista que trabalha na fazenda da re.green no Maranhão afirma ficar feliz em manter o emprego e conseguir restaurar árvores ao mesmo tempo. Ele apoia o transporte dos funcionários e atua na brigada interna de combate a incêndio no local.

“Eu não entendo nada dessa questão do mercado de carbono. O que sei é que a empresa vai plantar e vão pagar para ela fazer esse serviço. Isso acho que é importante, pois aqui derrubaram muito já. Aqui tinha muito mais mata, chega a ser triste de ver. Mas fico feliz em ter mantido meu emprego e agora participar de algo que vai trazer um pouco da floresta de novo para nossos filhos”, diz.

“O trabalho é igual. Só preciso dirigir. Mas antes levava o povo para derrubar. Hoje, levo para plantar.”

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O 'berço do Rio Grande do Sul' que se prepara para avanço das águas que já devastaram parte do estado, BBC News _ FSP

 Luiz Antônio Araujo

DE TORRES (RS) PARA A BBC NEWS BRASIL

Centenas de quilômetros e 12 dias depois de iniciar seu caminho de destruição no Rio Grande do Sul, as águas de uma das maiores enchentes já vistas no mundo aproximam-se da fase final da jornada ao atingir a porção sul da Lagoa dos Patos.

É o fim, mas já foi o começo. Quando o brigadeiro português José da Silva Paes avistou do oceano a embocadura aberta da lagoa, em 1737, julgou que estava diante de um grande rio.

A ideia inspirou o nome da vila que fundou às margens do canal, Rio Grande, futura capital da província de mesmo nome.

Vista de drone mostra pessoas andando em rua alagada em Eldorado do Sul, Rio Grande do Sul - Amanda Perobelli/Reuters

Quase trezentos anos depois, os gaúchos que contemplam o canal natural que liga a lagoa ao Atlântico têm a impressão oposta à de Silva Paes: ele nunca pareceu tão pequeno diante da enxurrada que terá de despejar.

A Lagoa dos Patos estende-se por 250 km de comprimento e 10,3 mil km quadrados de área. Serve de receptáculo a uma bacia hidrográfica 12 vezes mais extensa.

Em comparação, o Canal do Norte é diminuto: tem 22 km de comprimento e 2 km de largura. Nesse duelo de Davi contra Golias, poucos apostam no canal.

Prefeito da cidade fundada por Silva Paes, Fábio Branco (MDB) torce pelo melhor, mas prepara a população para o pior.

Acostumado a enchentes em razão da vizinhança da lagoa, o município de 211 mil habitantes trabalha com cenários que apontam para 35 mil a 40 mil desalojados pelas águas. Até o momento, a cheia em alguns bairros já empurrou 500 pessoas para abrigos.

Como boa parte dos gaúchos, os habitantes de Rio Grande acostumaram-se nos últimos dias a tirar a sorte com réguas de medição.

Às 19h40 de ontem, o nível da Lagoa dos Patos medido pelo Centro de Convívio dos Meninos do Mar (CCMar) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) era de 2 metros e 36 centímetros, 1 metro e 56 centímetros acima do normal.

A prefeitura identificava 29 áreas de risco, nas quais o trânsito de automóveis era desaconselhado, havia interrompido totalmente o acesso rodoviário às ilhas e suspendido as aulas na rede municipal.

"Estou na área de risco", diz Branco à BBC News Brasil, por telefone. Morador do bairro Saco da Mangueira, ele já tirou móveis e objetos de valor de casa e prepara a transferência da família para a casa de parentes.

Por sorte, o cenário dos próximos dias depende de fatores situados além das margens da lagoa e do canal. Estendido sobre a grande planície litorânea gaúcha, sem serras ou morros no entorno, o mar de água doce que se aproxima depende, para se movimentar, da direção do vento e da ação das marés oceânicas.

Essas variáveis podem ser acompanhadas em modelos computadorizados impenetráveis para pessoas comuns, mas manejados como artefatos cotidianos por pesquisadores como Lauro Barcellos.

Rua alagada no Rio Grande do Sul - Reuters

"Sofreremos um impacto de água numa quantidade que nunca antes conseguimos observar", afirma o diretor do Museu Oceanográfico de Rio Grande. Aos 68 anos, Barcellos dedica-se há 55 aos estudos oceanográficos, numa trajetória que lhe rendeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Rio Grande (Furg).

Muito além de uma luta entre a lagoa e o canal, o especialista mira águas mais profundas. "É difícil fazer uma identificação dos responsáveis. São os grandes sistemas que controlam a evolução da economia do mundo, o desmatamento, a mudança do clima. São vários fatores, umas pessoas acreditam e outras não", reflete.

Não se trata, sobretudo, de caso isolado. "Tudo que acontece já aconteceu. A diferença é que, hoje, ocorre com maior velocidade e a intervalos menores. De setembro até hoje, tivemos oito episódios de eventos semelhantes", explica.

Nem toda boa notícia para Rio Grande é alvissareira para quem está no percurso das águas. O vento do quadrante sul, que deve soprar por pelo menos mais oito dias no sentido contrário ao da corrente, contribui para represar a enxurrada e empurrá-la Lagoa dos Patos acima, prolongando o infortúnio de municípios situados a meio do caminho.

Na segunda-feira (6/5), quando ainda havia pessoas em telhados em Porto Alegre, Canoas, Guaíba e Eldorado do Sul, a lagoa já engolia a orla da Praia das Nereidas, em Arambaré, 144 km ao sul da capital. Na manhã de sexta-feira (10/5), três bairros registravam alagamentos e outros dois apresentavam risco.

Em São Lourenço do Sul, 218 km ao sul de Porto Alegre, muitas casas tinham sido inundadas no final da tarde de sexta-feira (10/5). A prefeitura tinha instalado quatro abrigos, e dois já operavam com lotação máxima.

Em nenhum município das margens da Lagoa, porém, o dia 10 foi tão tenso como em Pelotas. Maior cidade da Metade Sul do estado, com 343 mil habitantes, esse antigo centro da indústria gaúcha de carne já computava a essa altura 632 desalojados distribuídos em sete abrigos da prefeitura e um número incerto de instalações particulares em igrejas, clubes e escolas.

Com o bloqueio da BR-290 em vários pontos e a suspensão da balsa em São José do Norte que faz a travessia do Canal do Norte, Pelotas estava no dia 10 isolada de Porto Alegre por via rodoviária.

A prefeitura começou a remover moradores das áreas de risco na quinta-feira (2/5). Na Colônia de Pescadores Z-3, comunidade de 2 mil habitantes distante 22 km do centro, à margem da lagoa, moradores transferiram-se para a igreja da paróquia João Paulo II. Situado na própria colônia, o templo é célebre por nunca ter sido inundado.

Na noite de sexta-feira (10/5), a prefeita Paula Mascarenhas (PSDB) fez uma live diretamente do Laranjal, balneário na Lagoa dos Patos, onde 80 pessoas e 60 animais tiveram de ser removidos às pressas ao longo do dia.

Diversos bairros de Portos Alegre ficaram alagados - Getty Images via BBC

"Desde terça-feira que a gente vem fazendo um apelo, a gente fez um mapa das áreas de risco, pedindo que as pessoas deixassem as suas casas. Muitas deixaram, mas outras tantas não acreditaram, quiseram esperar para ver e, com isso, se prejudicaram porque tiveram de sair às pressas, com pânico, correria", disse Paula.

Dois dias antes, a água cobriu o trapiche do Laranjal. Agora, o balneário corre o risco de ter cortada a ligação por terra com o resto do município.

Com água não se brinca, ensina Lauro Barcellos. "Água é um elemento extremamente pesado. Um metro cúbico de água pesa aproximadamente uma tonelada. Temos muitas pessoas em áreas onde já se sabe que haverá uma importante subida de nível (da lagoa). Não se pode ficar cego diante disso", afirma.

Para agravar a situação, o sul do estado é castigado desde quinta-feira (9/5) por uma chuva intensa que desliza na ponta-de-lança de uma frente fria na direção norte. Com as quedas nos termômetros, uma pessoa submersa pode ter a temperatura corporal derrubada para cerca de 9ºC.

"Precisamos agir preventivamente", diz Fábio Branco. "E orar para que São Pedro esteja conosco nesta hora."

O santo que detém as chaves do céu – e, por conseguinte, da chuva –, segundo a crença católica, é o padroeiro de Rio Grande. E também do Rio Grande do Sul.