terça-feira, 16 de abril de 2024

Barroso se indispõe com Moraes e Gilmar e corre risco de se isolar no STF, FSP

 Matheus Teixeira

BRASÍLIA

O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, se indispôs com os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes em julgamentos nos últimos meses e colocou em risco seu poder de articulação no tribunal na posição de chefe da corte.

Barroso derrotou Moraes e viu suas teses saírem vitoriosas em ações sobre a chamada revisão da vida toda do cálculo de aposentadorias e a respeito de sobras eleitorais —com possibilidade de levar à troca de sete parlamentares na Câmara dos Deputados.

Já Gilmar ficou irritado após a interrupção da análise de ampliação do foro especial na corte, tese defendida pelo decano. Barroso paralisou o julgamento ao pedir vista (mais tempo para análise) quando já havia quatro votos a favor. O caso agora está parado por pedido de André Mendonça.

Os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes em sessão de julgamento dos primeiros réus dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 - Pedro Ladeira - 14.set.2023/Folhapress

No tema das sobras eleitorais, Barroso e Moraes se desentenderam e protagonizaram no plenário um diálogo ríspido. Depois, longe das câmeras, o clima esquentou ainda mais e o bate-boca prosseguiu.

Ministros relataram à Folha sob reserva que a irritação de Moraes ficou maior porque Barroso teria articulado nos bastidores a mudança de posição do ministro Luiz Fux, que foi decisiva para o resultado do julgamento –o placar acabou em 6 a 5.

Menos de um mês depois, o presidente do Supremo articulou outro revés ao colega. Em 2022, Moraes apresentou uma tese, que saiu vencedora, para autorizar a revisão mais benéfica para incluir salários antigos, pagos em outras moedas, no cálculo das aposentadorias.

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Neste ano, diante da mudança de composição do tribunal, o presidente pautou no plenário um recurso à decisão do ano retrasado e reverteu a regra que havia sido determinada sobre o tema. A mudança de entendimento alivia as contas do governo federal, que via na revisão o potencial de impacto de R$ 480 bilhões.

As duas derrotas impostas a Moraes já tiveram uma consequência. Barroso pediu vista no julgamento sobre ampliação do foro especial em 29 de março, quando havia quatro votos para mudar a regra atual, formulada por Barroso em 2018 e que representou uma das principais marcas de sua atuação no Supremo desde que tomou posse na corte, em 2013.

Pela praxe, quando há pedido de vista, os integrantes do tribunal que ainda não votaram aguardam a retomada da análise do tema para anunciar sua posição.

Nesse caso, porém, Moraes atropelou o colega e antecipou seu voto para se alinhar a Gilmar e ampliar as hipóteses de investigações perante o STF contra autoridades.

Além disso, um discurso de Moraes em um evento de homenagem ao ex-presidente Michel Temer, que o indicou para a corte, também foi interpretado como recados do ministro ao presidente do STF.

"Todas as injustiças dolosas que fizeram contra o seu governo não foram capazes de apagar as marcas, as reformas que foram aprovadas", disse.

Barroso foi o relator de inquérito contra Temer quando ele era chefe do Executivo e deu duras decisões contra o então presidente em apurações sobre a suspeita de esquema ilegal no Porto de Santos, inclusive determinando a prisão de aliados do emedebista, em 2018.

Em uma ordem judicial, afirmou que havia no caso "possível cometimento de crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e associação criminosa/organização criminosa a eles correlatos".

Foi também o julgamento do foro que suscitou a irritação de Gilmar com o presidente da corte. O magistrado, que é o decano do Supremo, não gostou do fato de Barroso ter interrompido a apreciação da matéria quando já se desenhava a formação de maioria.

O decano fez críticas ao colega nos bastidores. Ao final, no entanto, o presidente do tribunal não demorou a devolver o caso e ainda se alinhou a Gilmar em sua tese.

Em 2018, o STF decidiu que, em casos de autoridades com foro, apenas crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao exercício do posto deveriam tramitar na corte.

Agora, Gilmar propôs a ampliação da regra para determinar que a prerrogativa de foro para "crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício".

Barroso acompanhou por entender "adequado definir a estabilização do foro, mesmo após a cessação das funções".

Nos bastidores, a avaliação é que envolve um risco para Barroso se desentender com os dois colegas por se tratar, atualmente, dos membros do tribunal mais influentes dentro da corte e também na relação com os outros Poderes.

Ambos foram decisivos, por exemplo, nas escolhas pelo presidente Lula (PT) de Flávio Dino para o STF e de Paulo Gonet na PGR (Procuradoria-Geral da República).

A atuação dos dois é criticada por outros ministros em conversas reservadas por haver uma avaliação de que, às vezes, eles extrapolam suas atribuições jurisdicionais para influenciar o mundo político e fazer valer suas vontades dentro do tribunal.

Na gestão de Fux à frente do Supremo, de 2020 a 2022, por exemplo, o ministro não conseguiu concretizar marcas que pretendia deixar como presidente, principalmente, por ter se indisposto no julgamento que discutia a possibilidade de reeleição no comando da Câmara e do Congresso dentro da mesma legislatura.

Segundo relatos sob reserva feitos à Folha, Fux se comprometeu nos bastidores a votar para autorizar a recondução dos chefes das duas Casas legislativas. À época, a avaliação era que seria importante permitir que os então presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, se reelegessem porque os dois ajudavam a conter as ofensivas de Jair Bolsonaro (PL) contra o tribunal.

A recondução, no entanto, contraria letra expressa da Constituição. Diante das críticas, Fux recuou e votou contra a reeleição dentro do mesmo mandato legislativo.

Como se tratou de um julgamento virtual, porém, Moraes e Gilmar já haviam se desgastado para, conforme o combinado nos bastidores, inserir uma posição no sistema no sentido de permitir a reeleição.

Os atritos internos no Supremo não são novidade. Barroso e Gilmar, por exemplo, protagonizaram anos atrás alguns dos mais duros embates da corte. Em 2018, tiveram um bate-boca no plenário. "O senhor é a mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia", disse Barroso, que ouviu, como réplica, que deveria "fechar seu escritório de advocacia".

Durante o governo Bolsonaro, no entanto, diante das ofensivas do então presidente contra a corte, os ministros se reaproximaram em defesa do tribunal. A posse de Barroso na presidência do STF, em setembro passado, expôs a reconciliação dos dois.

Como integrante mais antigo da corte, Gilmar fez um discurso em homenagem ao colega e ambos trocaram gentilezas. Os dois se abraçaram ao final da fala.

Por meio de nota, Barroso afirmou, por meio de sua assessoria, "que, em um colegiado, divergências são naturais e saudáveis". "A relação do presidente com todos os ministros tem harmonia e afeto."

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Podemos não estar interessados no apocalipse, mas ele está interessado em nós, João Pereira Coutinho, FSP

 Só o humor nos salva. A TV está ligada, o ataque do Irã a Israel vai rolando na tela. E eu rio com uma entrevista de John Jenkins, antigo diplomata britânico no Oriente Médio, à revista "New Statesman".

Diz ele, com inteira razão, que o mundo ocidental perdeu a capacidade de entender o universo simbólico e religioso da elite teocrática iraniana. E, como exemplo, contou uma conversa que teve, anos atrás, com um conselheiro iraquiano em Bagdá.

Alguém contara a Jenkins que o então presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad deixava sempre uma cadeira vazia nas suas reuniões de governo. Para quem? Para o 12º imã do xiismo, que desapareceu no século 9º.

O conselheiro iraquiano, confrontado com o bom humor de Jenkins, perguntou-lhe se ele não acreditava no regresso do "imã oculto". Jenkins respondeu que, como católico, também aceitava o fim dos tempos. Mas duvidava que o "imã oculto" (o Mahdi) fizesse a sua aparição numa reunião de governo.

Que tem essa história a ver com o ataque em curso?

Tudo, embora eu entenda a perplexidade da pergunta. Nos textos correntes sobre o conflito israelense-palestino, cometem-se dois erros que só atrapalham.

O primeiro é acreditar que ainda existe um conflito israelense-palestino. Não existe. O conflito é israelense-iraniano há, pelo menos, duas décadas.

O segundo equívoco decorre do primeiro: o regime teocrático, usando "proxies" (HamasHezbollah etc.) ou inaugurando hostilidades diretas, combate Israel para destruí-lo, não para garantir a solução dos "dois Estados". Mas por que motivo Teerã quer destruir Israel?

Sim, haverá razões geoestratégicas (e bem pragmáticas) que lidam com a ambição do Irã em ser a grande potência regional no Oriente Médio.

Cadeira estofada estilo século XIX vazia no meio da cena. Textura de sangue escorrendo decora o estofado.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 15 de abril de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

Mas parte da resposta está também na cadeira vazia que Ahmadinejad gostava de ter nas suas reuniões. Na reinterpretação que os aiatolás Ruhollah Khomeini e Ali Khamenei fizeram da tradição messiânica do xiismo desde 1979, é preciso preparar o regresso do Mahdi.

E, para isso, é imperioso remover os "obstáculos" que existem no seu caminho. Israel é o maior deles.

Essa história, que não casa bem com nosso secularismo iluminado, está bem contada no ensaio que Saeid Golkar e Kasra Aarabi publicaram no Middle East Institute em 2022: "Iran’s Revolutionary Guard and the Rising Cult of Mahdism: Missiles and Militias for the Apocalypse". Aconselho vivamente.

Explicam os autores que, tradicionalmente, o retorno do "imã oculto", juntamente com seus 313 soldados para vencer o mal numa batalha apocalítica, implicava uma preparação religiosa e espiritual para os seus seguidores.

Com a revolução iraniana de 1979, o aiatolá Khomeini introduz uma cisão nesse "quietismo xiita". A preparação é também política, desde logo pela instauração de um governo islâmico e de uma guarda revolucionária capaz de velar pelos valores da revolução.

Mas é sobretudo com Ali Khamenei, sucessor de Khomeini como "líder supremo", que o "mahdismo" se converte na lente principal do regime para entender o país e o mundo.

Contam Golkar e Aarabi que, em 1997, com a vitória do "reformista" Mohammad Khatami nas eleições presidenciais, Khamenei fica alarmado com o fato de 73% dos membros da Guarda Revolucionária Iraniana terem votado no "reformismo".

O que veio a seguir foi terapia de choque na formação das novas gerações de guardas revolucionários. A defesa da teocracia e a necessidade de exportar a revolução islâmica no Oriente Médio continuaram sendo os pilares essenciais do regime.

Mas a dimensão escatológica do mahdismo passou a orientar as opções geoestratégicas do Irã na luta contra "o sionismo, o sionismo wahabista e o sionismo cristão".

Ou, traduzindo em linguagem menos cifrada, contra Israel, os sunitas e os Estados Unidos. Não haverá redenção da humanidade com esses demônios no caminho.

Na entrevista, John Jenkins termina com uma paráfrase trotskista: o fato de não estarmos interessados no Oriente Médio não significa que o Oriente Médio não está interessado em nós.

É uma boa frase, embora eu prefira outra: o fato de não estarmos interessados no apocalipse não significa que o apocalipse não está interessado em nós.

Enquanto o mundo não digerir essa verdade inconveniente, qualquer análise sobre a guerra naquelas bandas estará incompleta.