quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Ruy Castro - Acabou, mas ainda tem, FSP

 "Antigamente diziam que ou o Brasil acabava com a saúva, ou a saúva acabava com o Brasil", escreveu Rubem Braga. "Agora estou bastante velho, me lembro dessa história e vejo que continua havendo saúva e continua havendo Brasil. O pessoal é muito afobado."

O afobamento não se limita à saúva. Em 1945, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, sempre otimista e mal informado, declarou: "A derrota do fascismo é um golpe de que o imperialismo jamais irá se recuperar. O imperialismo está moribundo". Hoje sabemos que o imperialismo não morreu e muito menos o fascismo. O mesmo quanto à profecia do crítico Antonio Moniz Vianna nos anos 60: "O dia em que o western acabar acabará também o cinema". Os westerns eram então uma importante fatia na produção de Hollywood. Bem, o western já acabou há décadas e o cinema continua por aí.

A morte do romance já foi decretada umas mil vezes desde que Joyce publicou "Ulisses", em 1922. Voltaram a dizer isso quando Faulkner publicou "O Som e a Fúria", em 1929. E, no Brasil, o mesmo quando Guimarães Rosa publicou "Grande Sertão: Veredas", em 1956. Como se vê, o romance já morreu e não sabe, e as livrarias estão abarrotadas de ectoplasmas.

Da mesma forma, perdi a conta de quantas vezes decretaram a morte da bossa nova, do samba e do Carnaval. Faltou combinar com os rapazes que continuam a tocar bossa nova nos pequenos espaços, com as dezenas de rodas de samba que existem no Rio e com as massas que tomam as ruas do Brasil no Carnaval.

Idem, o Rio. Começou a acabar assim que Américo Vespúcio passou por aqui, em 1502, e, desde então, nunca mais parou de acabar. É uma fascinante cidade-fantasma.

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Há algumas semanas, dizia-se que o Brasileirão já havia acabado. O título era do Botafogo e só restava decidir quem seria o vice-campeão. Pois o campeonato não acabou e ainda não sabemos quem será o campeão, muito menos o vice.

O fim do Foro de Teresina e o que pensar sobre isso, Wilson Gomes - FSP

 

De repente, do riso fez-se o pranto. Acabou o Foro de Teresina, um dos podcasts de política mais amados pelos brasileiros, deixando um nó na garganta, desses de fim de histórias de amor. Para mim, o episódio de despedida do programa, na voz de Fernando de Barros e Silva, poderia ter ao fundo um desses deliciosos boleros de sabor almodovariano. "Lo nuestro se acabó y te arrepentirás/ De haberle puesto fin a un año de amor." E corta para Luz Casal, em "De Salto Alto", a desnudar a alma dos teresiners enlutados: "Te has parado a pensar lo que sucederá/ Todo lo que perdemos y lo que sufrirás?".

Não subestimem a importância do luto que se segue ao fim de algum produto cultural cujo consumo se dá por imersão. Leitores conhecem bem essa sensação de angústia ao terminar um romance longo que nos transportou para o seu universo. Aliás, nem se trata de consumo, mas de apreciação e de envolvimento, de uma relação em que os nossos sentimentos e a nossa imaginação estão tão implicados quanto a nossa mente. Sentimos falta das conversas, das pessoas, daquele mundo tão familiar, da dinâmica dos afetos, da companhia, de tudo.

A ficção seriada audiovisual com frequência nos coloca na mesma posição. Que saudade daquela novela, como foi difícil começar uma nova, quase uma infidelidade. E os bons seriados? Dá vontade de mandar uma carta para perguntar às pessoas (não são mais personagens) como estão indo depois que a história terminou. Serão felizes? Os seus filhos estão bem? O que andam fazendo?

Isso tudo para dizer que se engana quem pensa que, uma vez que o Foro é um podcast de jornalismo e análise política, trata-se simplesmente de mais um produto da indústria da informação. Essa me parece a lógica da Carta do Editor, que explica as controvérsias ao redor do fim do Foro e da sua repercussão nos ambientes digitais: trata-se de uma empresa de jornalismo cujo produto principal é a revista Piauí, o Foro era um apêndice, quase uma concessão às novidades do mundo. Afinal, o jornalismo centrado em informação política demorou mais de cem anos para se consolidar como atividade relevante e como modelo de negócios, enquanto podcasts são debutantes. O Foro, inclusive, pode ter representado o primeiro podcast de conversa política na vida de muita gente.

Na ilustração a modo de historia em quadrinhos em três quadros, aparece à esquerda, um carrinho de mão carregando uma planta frondosa, verde e no lugar de flores se observam três microfones daqueles utilizados em gravações de “podcasts”. Ao centro, o mesmo carrinho, mas se ve a planta seca, podada, no chão os três microfones e alguns galhos secos. E, no terceiro quadrinho, uma tesoura de jardinagem aberta, o bico cor laranja forte, e dela um “balão” com um sinal de interrogação.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 7 de novembro de 2023 - Ariel Severino/ Folhapress

Na verdade, a coisa é um pouco mais complexa, embora os hábitos da Redação possam não se ter dado conta. Um podcast dessa natureza e uma revista são dois gêneros de coisas completamente diferentes. Não tem comparação. A Piauí e o Foro são ótimos, cada um no seu gênero, mas em alcance, imagem, vínculo emocional, fanbase e fidelização, a Piauí não chega perto do Foro, esse é o fato. Não entro no mérito dos comportamentos de jornalistas e editor que resultaram no fim do Foro de Teresina. Nem vou depreciar os jornalistas da Piauí nem o jornalismo que a revista faz, todos ótimos. Mas o caso revelou algo que a empresa parece não ter entendido: a Piauí deitou fora um produto e uma marca valiosa que não vai conseguir substituir. O Foro não era um apêndice do trabalho formidável da revista, como o editor e os jornalistas do Piauí parecem entender. Para os ouvintes do Foro, a revista é que era o apêndice, se muito.

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Um podcast desse tipo, como um romance longo, uma novela e uma série, faz uma coisa que jornais e revistas não fazem, pelo menos não em proporção comparável: criam apego, vínculo emocional, amigos íntimos. Como é uma conversa a que a gente assiste e de que, de algum modo, participa, há muito mais envolvido nessa prosa. Os cacoetes de cada um dos apresentadores, as provocações, as inflexões da voz, o timbre, o modo como pensam, os gracejos, os risos, a personalidade, tudo isso cria uma sensação de íntima familiaridade que não se compara ao jornalismo.

Por fim, tem a questão da rotina da apreciação do programa: há um dia certo, um determinado ritual, a escolha da companhia ou da circunstância, a construção da expectativa, a hora do desfrute, o momento do comentário com algum outro fã ou cúmplice. Levam-se pessoas queridas ao podcast como levamos amigos e amores ao "nosso" restaurante ou à livraria preferida. Se um deles fecha, deixa um vazio e corações partidos.

Da esquerda para a direita: José Roberto de Toleto, Thais Bilenky e Fernando Barros e Silva, apresentadores do podcast Foro de Teresina
José Roberto de Toledo (esq.), Thais Bilenky e Fernando Barros e Silva, apresentadores do Foro de Teresina - Instagram @thais_bilenky

Por isso há tantos enlutados com o fim do Foro. Não adianta dizer que a Piauí continua boa e tem ótimos jornalistas, o que é fato, mas a revista não terá o condão de substituir o Foro no coração dos que o ouviam. Nem deixará de ser punida com cancelamento de assinaturas pela fanbase do Foro ou xingada nas redes. O modo de se consumir informação mudou, é preciso entender isso.

‘O celular come pela raiz o tempo. Reaja, antes de ficar seco como um tronco’, Karnal OESP

 Ando de carro pelo interior de São Paulo. Pelas estradas, vou contemplando vastos campos de cana-de-açúcar, café, laranja e até seringueiras. Nenhuma daquelas plantas é dali. Vieram de outros continentes ou de outras partes do Brasil. Adaptaram-se a uma vontade externa que as deslocou da sua área de origem. Sabemos que a agricultura em larga escala de espécies não originais cria riquezas, mas pode conter riscos.

Educar-se é um exercício agrícola. Precisamos eliminar ervas daninhas, os hábitos pouco produtivos. Necessitamos valorizar habilidades naturais (espécies nativas) e saber quais novas merecem o cultivo. Tudo deve ser irrigado, protegido de riscos e pragas.

Se você quiser introduzir um hábito novo na sua vida, saiba que a adaptação será complicada.
Se você quiser introduzir um hábito novo na sua vida, saiba que a adaptação será complicada. Foto: Jenny Kane/AP Photo/Arquivo

A maior erva daninha de hoje é a falta de foco. O vilão? O celular, com seus vídeos sedutores e mensagens contínuas. Eu me sento um minuto para ver algo e, de repente, vejo que se passou meia hora. A falta de foco mata qualquer planta promissora. O viajante Saint-Hilaire advertia há quase dois séculos: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. A praga do celular é pior do que a da formiga voraz. O celular come pela raiz o tempo. Reaja, antes de ficar seco como um tronco abandonado.

Existe a natureza de cada um, porém ela não é determinante, apenas condicionante. Temos um grau de liberdade com limites. Araucária tem seu solo e sua altitude. Uma laranjeira também existe melhor em certas latitudes. Plantar araucária à beira-mar implica muito mais cuidado e atenção do que no cerne do planalto frio do Brasil meridional. Da mesma forma seria transplantar o litorâneo cajueiro para o topo da Mantiqueira. Quais são suas habilidades? Saberia falar sobre seus afetos? Como eles podem ser desenvolvidos com naturalidade? O que você tem de genuíno, o que cresce fácil na sua mente? Essa é uma espécie de planta que merece atenção.

Voltando à cena do interior de São Paulo. Trazer uma espécie exótica evoca alguns riscos ao ambiente. São necessários estudos. Nem tudo é possível. A manga e a jaca adaptaram-se tanto ao Brasil que parecem ter nascido aqui. A cana-de-açúcar fez um longo trajeto da Ásia para o sul da Europa (e ilhas atlânticas) até ocupar um imenso espaço no território brasileiro. Se você quiser introduzir um hábito novo na sua vida, saiba que a adaptação será complicada. Precisa de insistência, reflexão e muito cuidado. Criar foco, desenvolver disciplina de trabalho, conter acessos de raiva, superar preconceitos: tudo implica muito cuidado. A tentação da volta é constante. O bom agricultor sabe que não existe domingo ou feriado para uma excelente safra. A natureza é generosa e exigente. Tenha esperança de equilibrar as suas virtudes naturais e... boa colheita.