Desfazer o rigor com que se separa o uso terapêutico e recreativo da maconha é uma das intenções do novo livro do neurocientista Sidarta Ribeiro, "As Flores do Bem". "Porque o que é recreativo já está sendo terapêutico, especialmente se for benigno", afirma.
Disponível nas livrarias a partir desta terça-feira (7), a obra faz um resgate na história da Cannabis desde quando se descobriu suas funções como terapia médica.
Flores de maconha importadas - Pedro Ladeira/Folhapress
Segundo Ribeiro, diversos países fizeram mais progresso que o Brasil nessa discussão —cita como exemplos os Estados Unidos, Canadá, Israel, Argentina, Chile, Colômbia e vários países da Europa—, mas o avanço é "uma questão de tempo".
Apesar do atraso, ele diz que o debate sobre o uso medicinal melhorou mesmo com o que chama de retrocesso político. "Porque as pessoas, quando ficam doentes, perdem preconceitos. Elas querem se tratar. E aí não estão preocupadas se é planta, se não é, se pode ou não pode. Elas querem ter direito."
Neurocientista Sidarta Ribeiro, autor de 'As Flores do Bem' - Luiza Mugnol Ugarte
Há evidências científicas que comprovam o efeito benéfico do uso da Cannabis medicinal no tratamento de doenças como epilepsia, autismo, câncer, depressão, ansiedade, Alzheimer, Parkinson.
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O livro conta histórias de crianças com síndrome de Dravet, doença que causa um tipo de epilepsia grave, que conseguiram controlar as crises com a Cannabis. É o caso da jovem americana Charlotte Figi, morta ainda na adolescência em 2020.
Quando a mãe da menina ficou sabendo que o canabidiol (CBD) poderia ajudar, ela visitou produtores de maconha e descobriu que eles dispunham de uma variedade da planta com alto teor de CBD e baixo de THC (tetrahidrocanabinol). "O tratamento com o óleo produzido a partir dessa variedade da maconha mudou radicalmente a vida de Charlotte e sua família", diz trecho do livro.
Cidinha Carvalho, mãe de Clarian, que tem síndrome de Dravet, cultiva Cannabis para o tratamento da filha; segundo Cidinha, a garota melhoroKarime Xavier/Folhapress
Mesmo com os relatos de casos bem-sucedidos no país, segundo o autor, os brasileiros não buscam fundamentos científicos e históricos para basear suas opiniões. "É tudo baseado em achismo de gente mal informada ou mal-intencionada."
O livro descreve que há cerca de 3.000 anos, na Índia, foi iniciado o processo da separação genética dos dois principais tipos de Cannabis: o cânhamo e a maconha. O primeiro usado para produzir fibras, e o segundo, resinas e remédios. "Se juntarmos as evidências histórico-arqueológicas com a biologia, isso deve ter acontecido na Idade do Bronze ou antes."
O neurocientista afirma que a maconha passou a ser proibida para valer no século 20. "Muitos começaram a acreditar que a maconha era a ‘erva do diabo’, a ponto de até hoje as pessoas acharem que ela é deletéria, sem qualquer outra informação a respeito a não ser o preconceito que é fruto dessa guerra contra a maconha."
A criminalização da Cannabis tem como um dos pontos-chave a guerra às drogas, iniciada nos Estados Unidos para estigmatizar negros e mexicanos, segundo o autor, e também para pôr o cânhamo fora do mercado de tecidos e fibras, que, na época, era dominado pelo algodão e depois nylon.
No livro, Ribeiro se dedica a explicar por que a "maconha não mata neurônio, o faz florir". A ideia de que a substância prejudica o cérebro e torna as pessoas preguiçosas não está correta, segundo ele: na verdade, a Cannabis pode induzir a formação de novos neurônios e sinapses.
"Aquela velha história de que adolescentes não devem fumar maconha porque ela mata neurônio é mentira. A verdade é que eles não devem fumar maconha, a não ser que tenham indicação médica, porque ela produz novos neurônios e o adolescente já tem muitos."
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Segundo o autor, a maconha causa dependência, porém em um nível menor do que o tabaco e o álcool. "Devemos também problematizar o conceito de dependência, porque parece que é uma propriedade da substância quando, na verdade, tem a ver com a relação da pessoa com ela."
O livro também reúne depoimentos pessoais sobre o uso recreativo da maconha. Sidarta conta da primeira experiência com a Cannabis até tomar a decisão de começar a pesquisar o tema. Também há relatos de outras pessoas, como o rapper Mano Brown e o músico Louis Armstrong, que afirmava que a maconha era para ele um isolante contra a dor do racismo.
"Quando o Armstrong diz isso, e eu descobri muitas coisas sobre ele escrevendo o livro, ele faz um elogio à maconha como algo que o permite relevar toda a injúria, todo o insulto, toda a dor e ficar de boa com os brancos."
AS FLORES DO BEM - A CIÊNCIA E A HISTÓRIA DA LIBERTAÇÃO DA MACONHA
Quando Lançamento em 7/11
Preço R$ 59,90 (184 págs.); R$ 49,90 (ebook)
Autoria Sidarta Ribeiro
Editora Fósforo
As Flores do Bem - A Ciência e a História da Libertação da MaconhaR$ 59,90 (184 págs.); R$ 49,90 (ebook)
stars - "As Flores do Bem - A Ciência e a História da Libertação da Maconha" Sidarta Ribeiro
ACâmara dos Deputadostem acelerado o andamento de projetos de lei com a aprovação de centenas de requerimentos de urgência desde a pandemia decovid-19. Esta ferramenta permite que as propostas sejam votadas diretamente no plenário, sem passar pelo trâmite das comissões temáticas da Casa. Ao mesmo tempo em que encurta a tramitação dos projetos, o uso excessivo desses requerimentos torna o processo menos participativo e mais centralizado nos líderes partidários.
Em 2020, a pandemia provocou a suspensão dos trabalhos das comissões e o aumento da quantidade de “urgências” votadas diretamente pelo plenário. No ano seguinte, a Câmara liberou a volta dos colegiados, mas manteve o uso da ferramenta em alta. Desde o início da gestão do presidente Arthur Lira (PP-AL), em fevereiro de 2021, a Casa já aprovou 360 requerimentos desse tipo. Nos três anos anteriores, incluindo 2020, foram 261.
Câmara dos Deputados aprovou o texto-base da reforma tributária por 382 votos a 118 em julho Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
Em abril e maio deste ano, por exemplo, três propostas tramitaram “a jato” na Câmara. Deputados levaram cerca de um mês para aprovar os projetos, desde a apresentação do texto inicial. Se tivessem percorrido o caminho “tradicional”, com discussões nas Comissões, essas propostas poderiam ter levado meses ou até anos para serem aprovadas.
O Estadão tem mostrado em uma série de reportagens que a cúpula do Congresso concentra um poder inédito e cria desafios para o governo Lula. O cenário passa pelo uso político das sessões híbridas, que admitem a participação via internet; a diminuição dos instrumentos da minoria para obstruir votações; a substituição das comissões permanentes por “grupos de trabalho” informais ou comissões especiais; e o uso de pedidos de urgência, dentre outras ferramentas.
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Um desses projetos foi apresentado pela deputada Dani Cunha (União-RJ) em 22 de maio. Duas semanas depois, a filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e três líderes partidários consideraram que a proposta, que prevê prisão de até 4 anos para quem discriminar políticos, era urgente. O texto foi aprovado pelo plenário em 14 de junho.
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No mesmo período, a Procuradoria-Geral da República apresentou uma proposta à Câmara para transformar cargos efetivos em vagas comissionadas e funções de confiança no Ministério Público da União. O projeto foi apresentado em 8 de maio e teve tramitação semelhante. Foi considerado urgente e aprovado semanas depois, em 20 de junho.
Entenda como a cúpula do Congresso detém mais força para andar ou travar votações
O trajeto também foi parecido com aquele percorrido por um projeto do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) que criava 484 novas funções comissionados ao custo de R$ 1 milhão mensais. Em menos de um mês, entre 18 de abril e 10 de maio, a Casa aprovou o texto. Na ocasião, o TJDF informou que usaria recursos remanejados do orçamento interno para pagar os novos cargos. O orçamento do Tribunal para este ano foi de R$ 3,7 bilhões. Para 2024, o projeto de lei orçamentária prevê R$ 3,8 bilhões com gastos da Corte.
O deputado Domingos Sávio (PL-MG), que está na Câmara há quatro mandatos, disse ao Estadão que o uso dessa ferramenta “virou rotina” e é preciso “reagir”, “não importa se é base do governo ou da oposição”. “Quando vai para regime de urgência, o processo é o seguinte: designa um relator de plenário, o relator apresenta o relatório na hora da votação e você já vota. Você mata o processo legislativo”, afirma.
“Você vai aprovando milhares de projetos, alguns relevantes, outros irrelevantes. O maior problema é aprovar projeto errado, ruim, que não teve um debate. Isso é muito sério.”
O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), que está no quinto mandato na Câmara, também vê a quantidade de “urgências” aumentando. “Há um “festival” de urgências que nunca vi antes”, afirmou ao Estadão. “Tem um aspecto de ‘compasso de espera’. Enquanto os acertos Centrão-Governo não se concluem, vota-se pouca coisa substantiva.”
Como um projeto pode tramitar “a jato” na Câmara
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O primeiro passo para um projeto ser votado com rapidez é a aprovação de um requerimento de urgência. Essa autorização permite que a proposição saia das comissões e passe a aguardar a votação diretamente no plenário da Câmara. A simples aprovação do requerimento de urgência não garante que o projeto vai ser votado “a jato”, pois é preciso que o presidente Arthur Lira decida incluí-lo em pauta.
A multiplicação de requerimentos de urgência nem sempre resulta em votação rápida. Como revelou o Estadão, quase 1/3 dos projetos considerados urgentes entre fevereiro e setembro deste ano estão parados na Câmara. Dois textos estão estão na fila há sete meses e não têm previsão para serem colocados em pauta. Um deles, de autoria do deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), propõe a implantação um botão de pedido de socorro em aparelhos celulares. Na prática, os deputados aprovaram 61% das propostas de urgência.
O requerimento só pode ser submetido à apreciação do plenário se preencher requisitos previstos no Regimento Interno da Câmara. Por exemplo, se o pedido for apresentado por líderes partidários que representem ⅓ da Câmara (ou 171 deputados). Não é necessária a assinatura de todos os deputados que compõem um bloco ou um partido, apenas dos líderes.
Cumprir esta diretriz ficou mais simples desde abril. Naquele mês, deputados do União Brasil, PP, da federação PSDB-Cidadania, do PDT, PSB, Avante, Solidariedade e Patriota formaram um único bloco com 175 integrantes, se tornando a maior força política da Câmara em número de parlamentares. Na prática, basta que o líder deste bloco assine um requerimento de urgência para tentar incluí-lo na pauta da Casa.
Já os grupos que têm menos de 171 deputados precisam da assinatura de mais de um líder para apresentar uma urgência. Nada que complique o processo. O segundo maior bloco da Câmara, formado por MDB, PSD, Republicanos e Podemos, tem 142 deputados. Outros 98 parlamentares compõem o PL. A federação PT, PCdoB e PV tem 81 integrantes.
A urgência do projeto de Dani Cunha foi solicitada pela filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e pelos deputados Felipe Carreras (PSB-PE), então líder do maior bloco, Altineu Côrtes (PL-RJ), líder do PL, e Elmar Nascimento (União-BA). Já a proposta de criação de cargos no TJDF teve a urgência corroborada por três deputados e três líderes, dentre eles, Côrtes, Zeca Dirceu (PT-PR), que comanda a federação petista, e Hugo Motta (Republicanos-PB), que comandava o segundo maior bloco da Câmara.
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Entre 1º de janeiro e 26 de outubro deste ano, o plenário da Câmara aprovou 115 pedidos de urgência para projetos que tramitam na Casa. A quantidade de requerimentos vem se mantendo acima de uma centena de aprovações desde o início da pandemia da covid-19, em 2020.
Votações urgentes no Plenário da Câmara dos Deputados enfraquecem as comissões temáticas Foto: Zeca Ribeiro/Agência Câmara
Naquele ano, a Câmara suspendeu os trabalhos das comissões após a propagação do vírus. Sem os colegiados, os deputados aprovaram 126 pedidos para que os projetos fossem analisados diretamente no plenário. Em 2021, a Casa autorizou a volta das comissões, mas, desde então, a aprovação de requerimentos de urgência se manteve alta.
“Com a existência de ‘super blocos’, (com) esse processo de regime de urgência, simplesmente assinado pelo líder e não pelo deputado, você impõe uma pauta que chega de surpresa. Com um detalhe, não conhece o teor do projeto. Não tem nem tempo de ler direito”, afirmou Domingos Sávio.
“Estamos fazendo isso desde matérias simples, consensuais, uma homenagem, até projetos extremamente relevantes. Eu não estou contra os líderes, estou contra o que se implementou e (que) precisa de uma reflexão mais séria.”
Qual a importância das comissões na Câmara dos Deputados?
A doutora em Ciência Política e professora da Fundação Getúlio Vargas, Graziella Testa, explica que a urgência é um método importante para proposições que precisam de aprovação rápida, como casos de calamidade pública. O uso “sem critério” desta ferramenta, contudo, pode provocar uma “supremacia” do plenário sobre as comissões.
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“Existe esse processo de enfraquecimento, de desinstitucionalização das comissões, que resulta nesse grande número de aprovação de requerimentos de urgência”, afirma Testa.
Desde fevereiro, a Câmara trabalha com 30 comissões permanentes. Cada colegiado discute temas específicos, como saúde, educação, agricultura e defesa do direito da mulher. Os grupos têm funções legislativas e fiscalizadoras, e são responsáveis por analisar, por exemplo, a constitucionalidade e a conveniência de projetos de lei, por exemplo.
Existe esse processo de enfraquecimento, de desinstitucionalização das comissões, que resulta nesse grande número de aprovação de requerimentos de urgência”
Graziella Testa, doutora em Ciência Política e professora da Fundação Getúlio Vargas
A professora explica que é “muito importante” um projeto passar por comissões legislativas, pois, nos colegiados, há uma análise técnica das propostas. Lá, também é o local onde a população pode se pronunciar por meio das audiências públicas.
“A Comissão de Minas e Energia tem especialistas nesta área. A Comissão de Educação tem especialistas em educação para procurar leis que sejam tecnicamente bem embasadas e bem produzidas”, afirma. “Os grupos que podem ser atingidos por uma determinada mudança da norma podem se posicionar na arena das comissões.”