terça-feira, 7 de novembro de 2023

Como uma briga interna na Itália deixou São Paulo sem luz, >ICL


Por Leandro Demori – A Grande Guerra

Muito se fala dos problemas das privatizações. Todos deveriam saber: uma empresa pública não precisa perseguir lucros e movimentos de mercado a todo custo – e por “a todo custo” entenda-se “prejudicando a população” para faturar mais.

Quer exemplo melhor e mais recente do que a “eficiência” da Petrobras? A empresa se tornou a maior distribuidora de lucros pros acionistas de todas as petrolíferas do mundo às custas do brasileiro pagando gasolina a 8 reais.

Como se vê, a palavra “eficiência” tem muitos usos

ENTÃO TEMOS O CASO ENEL

Vastas regiões de São Paulo estão sem energia elétrica – estima-se 500 mil imóveis às escuras entre residências, comércio e serviços essenciais como UPAs, clínicas, hospitais e escolas. Comida jogada no lixo, respiradores parando de funcionar. Um caos. O temporal foi sexta-feira. A responsabilidade pela operação de serviços de energia elétrica na cidade de São Paulo e parte da Região Metropolitana de São Paulo chama-se Enel Distribuição São Paulo.

A Enel é uma empresa de economia mista controlada pelo Estado italiano (detém 23,6% dela). Ou seja: a Itália, por meio de seu ministério da Economia, é a maior acionista da empresa, mas ela conta com sócios privados, que são maioria. No Brasil, ela comprou as operações da estatal Eletropaulo em 2018.

Os donos da Enel na Itália. Fonte: site oficial da Enel.

BRIGA INTERNA EM ROMA, SÃO PAULO NO ESCURO

Este ano, uma briga inesperada explodiu nos corredores da Enel. Um sócio até então pouco conhecido e que possui uma fatia de cerca de 1% do capital da empresa começou a cutucar o governo, tanto em reuniões como em praça pública, dando entrevistas para os maiores jornais do país. A guerra iniciada pelo fundo Covalis Capital visava dominar a Presidência ou ao menos parte do Conselho da empresa. Entendendo esses bastidores, entendemos como milhões de pessoas estão sem luz em São Paulo.

O QUE ESTÁ EM JOGO

DE UM LADO O GOVERNO DE GIORGIA MELONI

Chama-se Giancarlo Giorgetti seu ministro da Economia. É de Giorgetti o ministério que possui os tais 23,6% da Enel. Giorgetti é um dos mais proeminentes políticos da Lega Nord, o partido ultradireitista e liberal da Itália. Não apenas isso: o ministro é da corrente mais liberal dentro da própria Lega. Algo como: se a terra fosse plana, Giorgetti já estaria se segurando na borda.

Seu plano para o estado italiano – e para a Enel como consequência –, como não poderia deixar de ser, é apenas um: cortar, cortar, cortar.

O plano de cortes é tudo o que o governo quer. A ideia de cortar todos os custos possíveis da Enel e das outras 33 empresas estatais controladas pela pasta de Giorgetti é simples: levar todo o dinheiro que conseguir para a Itália. Esse movimento de repatriação de euros é fundamental para ajudar a reduzir o déficit fiscal italiano, esperado em 5,3% este ano. E não melhora muito no ano que vem. A dívida pública italiana fechou no ano passado em 144,4% do PIB.

Meloni & Giorgetti.

DO OUTRO LADO ESTÁ O FUNDO COVALIS CAPITAL

O Covalis Capital sequer é um dos grandes fundos do mundo. Seu portfólio está estimado em cerca de 500 milhões de dólares, muito longe dos verdadeiros e trilionários tubarões do mercado. O Covalis tem sede em Londres mas seu dinheiro, na prática, fica flutuando pelas ilhas Cayman. Durante a pandemia, esse fundo fez grana comprando ativos desvalorizados por causa do lockdown. E investiu pesado em empresas de energia, sobretudo em uma delas, chamada Li-cycle Holdings Corp. Essa empresa fica sediada no Canadá e recicla baterias de íons de lítio, dominantes no mercado. O Covalis é, hoje, o maior acionista da Li-cycle Holdings Corp.

Fonte: Yahoo Finance.

O QUE O COVALIS QUER

Que a Enel faça desinvestimentos em algumas áreas para poder gastar nas energias ditas renováveis. Que tire recursos de países como Chile e Brasil, por exemplo, e jogue tudo em seu setor de interesse imediato.

A Enel é muito forte nisso e vem fazendo investimentos. Há um braço do grupo chamado Enel X, por exemplo, que vende toda a sorte de soluções renováveis, muitas delas focadas no uso de baterias. Há investimentos específicos em inovações em baterias pra eletrificar casas, trens, carros, indústrias. O problema é que, para o fundo Covalis, o ritmo precisa ser muito mais rápido. Se por um lado eles se beneficiam quando a Enel corta custos, por outro eles precisam que ela seja uma das líderes na difusão do uso de baterias – que depois serão recicladas por empresas como a Li-cycle Holdings Corp.

Qualquer movimento de um colosso como a Enel – segundo o ranking da revista Fortune, o 59º maior faturamento do mundo – faria o setor dar um salto.

A Li-cycle Holdings Corp está no topo de investimentos do fundo Covalis. Fonte: clique aqui

 MAS AFETA SÃO PAULO COMO MESMO?

A Enel demitiu no Brasil 36% dos funcionários desde 2019, ou seja: desde o primeiro dia em que pegou as chaves da mão da Eletropaulo. Esses milhares de empregos a menos ajudaram a verdejar os balanços da Enel na Itália. Além disso, a Enel é famosa por deixar a rede sucatear, evitando fazer investimentos sequer para a manutenção do sistema. Mais dinheiro poupado, mais dinheiro no caixa.

Para o governo italiano, que é seu maior acionista, um ótimo negócio. Para o fundo Covalis, idem, com a diferença que seus interesses são outros. De todo modo, ambos – governo e Covalis – só pensam em uma coisa quando se trata de empregos e investimentos no Brasil: cortes, cortes, cortes.

De um lado e de outro, o cidadão de São Paulo ficou na mão.

 

Coisas da política, Helio Schwartsman, FSP

 Embora as pessoas adorem gritar nas redes sociais, na política real são as mudanças silenciosas que acabam se mostrando mais decisivas. Um exemplo é o advento de emendas parlamentares de execução obrigatória, que vão abrangendo fatias cada vez maiores das verbas orçamentárias livres para investimentos. Já comentei aqui como esse fenômeno reduziu os poderes da Presidência. Hoje quero analisá-lo do ponto de vista dos eleitores.

A "emendização" tomou proporções tais que o caminho mais fácil para comunidades terem acesso a verbas federais é encontrar um deputado ou senador para apadrinhar a causa. O sistema até que funciona para as populações que conseguem eleger um representante. Só que nem todas obtêm sucesso nisso. Se olharmos para o mapa do Brasil, encontraremos extensas áreas de deserto parlamentar, isto é, de municípios e regiões que não contam com um patrono federal.

Moradores usam baldes e galões para transportar água em João Câmara (RN) - Allan Lira/Folhapress - Folhapress


E o efeito disso, como vêm mostrando reportagens da Folha, é dos mais cruéis. Há cidades do Nordeste em que sobram cisternas, caminhões-pipa e outras tecnologias contra a seca, enquanto, a poucos quilômetros dali, em localidades desassistidas por legisladores, a população precisa às vezes percorrer longas distâncias para conseguir um balde de água.

A expressão "indústria da seca", que vinha fazendo aparições cada vez mais raras no vocabulário político nacional, voltou a fazer sentido. E isso não vale só para o Nordeste nem só para itens relacionados à água. Asfaltamento, obras em geral, equipamentos para a saúde, educação, hoje quase tudo passa por emendas.

O problema da distribuição determinada por legisladores é que o gasto sai pulverizado e perde eficácia em termos de prioridades. Raramente quem precisa mais recebe antes. Quando candidato, Lula até ensaiou uma rebelião contra certas modalidades de emenda, mas, depois que chegou ao poder, preferiu evitar choques com o centrão. Coisas da política.

GUERRA ISRAEL-HAMAS - Planos morais, FSP

 Vamos lá, pessoal, não é tão difícil assim. Dá para condenar os brutais ataques terroristas do Hamas e, ao mesmo tempo, criticar a resposta israelense, que vem causando um morticínio entre palestinos. Os planos morais em que atuam um e outro não são idênticos, mas, para quem morre no processo, o resultado é rigorosamente o mesmo.

Por mais justa que seja a sua causa, ela não lhe dá o direito de entrar no território inimigo e assassinar civis desarmados, incluindo crianças, a sangue-frio. A violação moral do Hamas no 7 de outubro é incontestável, quer você abrace éticas deontológicas, da virtude ou consequencialistas. Se o ataque tivesse tido como alvo apenas militares e colonos armados, ele ainda poderia ser descrito como ato de resistência. Não foi o caso.

Homem em frente a edifícios destruídos em ataques aéreos israelenses na cidade de al-Zahra, no centro da Faixa de Gaza - Yasser Qudih/Xinhua

A ação do Hamas deu a Israel o "ius ad bellum", o direito de ir à guerra, e eventualmente matar, para recuperar os reféns e neutralizar o poderio do grupo terrorista. Mas Tel Aviv ainda tem a obrigação de agir em conformidade com o "ius in bello", as leis de guerra definidas pelas convenções de Genebra, notadamente as proteções à população civil. E nem com muito boa vontade dá para dizer que Israel esteja se empenhando ao máximo em evitar as mortes de civis.

É verdade que o fato de o Hamas deliberadamente esconder seus QGs e armamento em túneis sob hospitais e escolas torna essa tarefa bem mais complexa, mas, se Israel quer manter superioridade moral sobre seu adversário, precisa encontrar uma forma de conciliar esses objetivos contraditórios.

Há uma pegadinha aí. Pelo menos nas visões mais cínicas, age-se moralmente por uma questão de reputação. Se Israel se convencer de que sofrerá condenação da opinião pública mundial independentemente do que faça —tivemos uma prévia disso no caso do hospital Al-Ahli Arab, em Gaza—, poderá concluir que é inútil tentar agir moralmente. Aí o que já é feio ficaria muito pior.