terça-feira, 3 de outubro de 2023

ESTADÃO / CULTURA / LITERATURA Jorge Michel Houellebecq: como mestre da literatura ficcional foi envolvido em trama sinistra da vida real, Paulo Nogueira - OESP

 


Se houvesse um prêmio para o autor mais controverso, o francês Michel Houellebecq (H) seria o escritor mais nobelizado do mundo. Mas, mesmo para os padrões dele, os últimos acontecimentos escalaram alucinadamente.

Resultado: aquele que é considerado o maior ficcionista francês contemporâneo (que acordou a literatura francesa de um torpor fossilizado de décadas), desenvolveu bulimia e a síndrome do pânico e há meses não põe o pé fora de casa. Fuma quatro maços de cigarros por dia, e emborca ansiolíticos como se fossem champanhe. E, para um homem que até ontem professava-se priápico, hoje declara-se impotente.

Talvez seja o corolário de uma carreira que sempre surfou na provocação, mirando em todos os tabus para suas estilingadas verbais e fazendo do politicamente incorreto o seu Esperanto. Em 2019, por exemplo, assinou na revista Harper’s um artigo marotamente intitulado: “Donald Trump é um Bom Presidente”. No texto, fervilhavam sarcasmos, irritando gregos e troianos:

“Simpatizo com a vergonha de muitos americanos por terem um palhaço medonho como líder, mas talvez ele seja um mal necessário.”

Escritor estava acompanhado de escolta digna de chefes de estado
Escritor estava acompanhado de escolta digna de chefes de estado Foto: Albert Gea/Reuters

H louvou a saída do Reino Unido da União Europeia: “Só lamento que os britânicos tenham mais colhões que os franceses”. Para ele, a clonagem contém mais valores humanistas que o aborto. Conservador que odeia o liberalismo capitalista, gosta de citar a frase de Lenin: “Nem tudo o que é bom é novo, nem tudo o que é novo é bom”.

Capitu

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Houellebecq por vezes parece menos um radical boquirroto do Twitter do que um tiozão reaça do WhatsApp. Ele próprio se vê como um demiurgo moderno de uma era niilista e narcisista. “É verdade que não sou um revolucionário. O próprio termo ‘felicidade coletiva’ me dá arrepios. A ideia de que a sociedade quer cuidar da minha felicidade não me enternece.”

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Numa época tão polarizada, melindrosa e intolerante, H, em vez de pisar em ovos como todos nós, parece brincar de amarelinha no terreno minado do cancelamento: “O terrível é até que ponto já não se pode dizer mais nada. Nietzsche, Schopenhauer e Spinoza não seriam aceitos hoje.” Bem, o tiozão do WhatsApp não saberia que Spinoza, proscrito na Amsterdã do século 17, tampouco foi aceito em sua tempo.

Mesmo no talvez já batido tema do politicamente correto, Houellebecq sabe ser sardônico: “As pessoas cansam de dizer coisas más sobre uma coisa, mas a coisa má não se cansa de existir”. E também esguichou mangueiradas de água gelada nos que viam na pandemia uma panaceia ética para a humanidade.

“Não vamos despertar num novo mundo depois do confinamento. Será a mesma coisa, só um pouco pior”

Michel Houellebecq

O primeiro bico no balde de H foi no romance Partículas Elementares, de 1998. O livro ganhou o badalado Prix Novembre, mas com tanto bate-boca que dois jurados renunciaram e até o nome do prêmio acabou mudado para Décembre. A então decana da crítica literária do New York Times, Michiko Kakutani, considerou o romance “repugnante”.

Com o seguinte, O Mapa e o Território, H embolsou o prêmio Goncourt, o principal da França, que tem nada menos que 1500 honrarias literárias (quase uma para cada escritor). Já foram contemplados com o Goncourt colossos como Marcel Proust, André Malraux, Simone de Beauvoir e Marguerite Duras. O prêmio garante uma venda adicional de 300 mil exemplares.

Isso não evitou que H fosse acusado de plágio pela revista SlateO Mapa e o Território incluiria trechos transcritos da Wikipedia sem crédito. A Slate alegou ainda que o autor copiou a descrição da rotina dos policiais franceses (do site do Ministério do Interior) e de um hotel no sul da França (da homepage do próprio hotel). Nada impediu que, em 2019, o presidente Emmanuel Macron condecorasse Houellebecq com a maior honraria concedida pelo Estado francês: a Legião de Honra.

Visionário e charlatão

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H nasceu na ilha da Reunião, no Índico, em 1956. Queixa-se até hoje de que os pais não lhe davam bola, pois assumiram a contracultura dos anos 1960, apesar de já não serem jovens. Foi criado pela avó paterna, cujo sobrenome adotou.

A mãe do autor, que uma vez ele chamou de “a velha vagabunda”, já tinha mais de 40 anos quando se mandou para as trilhas hippies da América do Sul. Em seu livro O Inocente, a mãe de H descreve o filho como um “bastardo malvado e imbecil”. Em Mourir (Morrer), H diz: “Quando eu era criança, a minha mãe jamais me abraçou. Isso explica toda a minha personalidade”.

Poucos chamariam a prosa de H de suntuosa. Nada de filigranas retóricas. Ele gosta de citar Schopenhauer: “A primeira e única condição do bom estilo é ter algo a dizer”. H tanto é reverenciado como um visionário quanto denunciado como charlatão. Os dois lados da barricada concordam num ponto: todas as polêmicas anteriores de H são fichinha perto da atual. Daí que, pela primeira vez, ele escreveu um livro para se defender: Quelques mois dans ma vie (Alguns Meses na Minha Vida, ainda inédito no Brasil, sem previsão de edição aqui).

Capa do livro de Michel Houellebecq, 'Quelques mois dans ma vie: Octobre 2022 - Mars 2023'
Capa do livro de Michel Houellebecq, 'Quelques mois dans ma vie: Octobre 2022 - Mars 2023' Foto: Flammarion

São duas polêmicas mirabolantes pelo preço de uma. Muitas pessoas já esqueceram um detalhe do fatídico dia 7 de janeiro de 2015, quando membros da Al Qaeda invadiram a redação do semanário humorístico Charlie Hebdo, em Paris, e assassinaram 12 cartunistas e jornalistas. Por coincidência, um novo número da publicação acabava de chegar às bancas e a capa estampava uma caricatura de um H macilento, com um chapéu de Nostradamus, fumando um cigarro. A manchete: “Previsões do Mago Houellebecq”.

O gancho era o romance Submissão (Islã quer dizer submissão), cujo lançamento foi no próprio dia dos atentados. Nele, Houellebecq imagina uma França de um futuro próximo (2022), em que os partidos tradicionais fragmentam o voto na eleição presidencial, e os mais votados são Marine Le Pen, da extrema-direita, e Ben Abbes, o líder fictício de uma Irmandade Muçulmana Francesa.

No segundo turno, a esquerda apoia o muçulmano, preferindo o diabo que não conhece àquele que conhece. Ben Abbes impõe a Sharia, e a elite intelectual francesa se mostra encantada por colaborar (como os colaboracionistas de Vichy, durante a ocupação nazista) com o novo regime teocrático, que entre outras coisas faculta aos homens a poligamia e a redomesticação da mulher.

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Michel Houellebecq na capa do 'Charlie Hebdo'; no destaque, em francês, a manchete: 'Previsões do Mago Houellebecq'
Michel Houellebecq na capa do 'Charlie Hebdo'; no destaque, em francês, a manchete: 'Previsões do Mago Houellebecq' Foto: Charlie Hebdo

Claro que o que H descreve não aconteceu de fato. Trata-se de uma sátira distópica, não um relato oracular de eventos futuros. A graça da sátira é especular o que aconteceria se nada acontecesse para impedir o que está acontecendo. O seu papel, diz ele (ao falar de “1984″, de Orwell), não é prever, mas transfigurar os medos de uma época.

O romance Plataforma, de 2001, sobre turismo sexual na Tailândia, levou o romancista a tribunal pela descrição de um ataque extremista islâmico a um resort na Ásia. A obra foi lançada um ano antes de o grupo terrorista Jemaah Islamiah matar 202 pessoas na ilha de Bali.

Por isso, a primeira réplica do novo livro de Houellebecq é à acusação de islamofobia. Recentemente, ele deu uma entrevista ao filósofo Michel Onfray, na qual declarou que o povo francês não quer que os muçulmanos sejam assimilados, mas que “parem de roubar e agredir”. Ou então “vão embora”.

O pior veio depois: “Quando territórios franceses estiverem sob controle islâmico, ocorrerão atos de resistência. Haverá tiroteios em mesquitas, em cafés frequentados por muçulmanos. Em suma, Bataclans ao contrário”. Bataclan é a sala de espetáculos parisiense, palco de um massacre no dia 13 de novembro de 2015, quando terroristas islâmicos abriram fogo contra 1500 pessoas que assistiam a um show, matando 130 e ferindo 352.

O Reitor da Grande Mesquita de Paris reagiu processando Houellebecq por incitamento à violência. O escritor publicou uma retratação no jornal Le Figaro, e o Reitor retirou a queixa (ainda tramita um processo movido por Mohammed Moussaoui, presidente da União das Mesquitas de França).

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No novo livro, H diz que uma guerra civil na França é improvável, e que o Islã e a delinquência não têm uma relação causal, pois as religiões proíbem as desordens. Pede desculpas à comunidade islâmica e chama suas afirmações de “burras” e “estúpidas”.

A segunda polêmica

A segunda polêmica é bem mais rocambolesca. No final de 2022, Stefan Ruitenbeek (que no livro Houellebecq chama de “a Barata”), membro do “coletivo de arte” holandês KIRAK, mandou um email a H anunciando que chegara a Paris com uma jovem que desejava fazer sexo com o escritor.

H enviou sua esposa Qianyum Lysis, chinesa 34 anos mais nova do que ele, a um restaurante parisiense para conhecer a Barata e a moça, a quem H chama de “a Porca”. A Porca perguntou a Qianyum, que participaria do ménage, se a Barata podia filmar o episódio para sua conta do Onlyfans.

H, que já rodou filmes pornôs e defende a pornografia amadora contra a profissional, concordou, achando que se tratava de “exibicionismo honesto” para uns poucos fãs devotos. Caiu-lhe o queixo ao descobrir que Onlyfans é um site onde os assinantes pagam pelo acesso.

Mais tarde, a Barata pediu a H que fosse a Amsterdã, onde jovens que eram “leitoras assíduas” desejavam transar com o autor para um filme KIRAC. O escritor reconhece que ter topado é “incompreensível”. Jura que foi-lhe garantido que seria um “filme de arte”.

Já em Amsterdã, encharcado de vinho e ansiolíticos, H assinou o contrato (reproduzido na íntegra no livro), encorajado pela cláusula 3, que proibia a Barata de mostrar no mesmo plano os rostos do autor e de sua esposa e os respectivos genitais. Só ao regressar à França, depois de um rompimento com Barata & Porca, é que H reparou na bomba da cláusula 4, que dava a Ruitenbeek o direito de usar as imagens filmadas em Paris.

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Aliás, o trailer do filme já estava a viralizar online (não é verdade que Houellebecq usou a Legião de Honra como tapa-sexo). Mortificado, H instruiu seus advogados a bloquearem o filme na Internet, mas o pedido foi indeferido nos tribunais franceses e holandeses, cujos juízes não se convenceram da incapacidade do escritor ao assinar o contrato, devido à embriaguez.

Última atualização

Houellebecq apelou, e a última atualização é de que o tribunal de recurso de Amsterdã decidiu que o autor deveria ver o filme antes do lançamento, para que possa tomar novas medidas legais caso continue insatisfeito – o que ele continua, e muito. A saga ainda dará pano para mangas.

Na passagem mais dilacerante do livro, Houellebecq admite que não gosta de feministas e que elas não gostam dele, mas que experimentou algo semelhante à sensação de ser estuprado após seu caso com a Barata e a Porca. E que hoje é um presidiário em seu próprio lar, bulímico, impotente e deprimido.

Por isso, anunciou que Aniquilação, editado no ano passado, é o seu último romance. Um livro estranhamente pouco Houellebecq: melancólico, pungente, que fala da inexorabilidade da morte mas também do amor, de esperança e redenção. Talvez um canto do cisne, que lembra o comentário de Ezra Pound sobre Trópico de Câncer, a obra escabrosa de Henry Miller: “Ah, até que enfim um livro impublicável que é legível!”

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

As histórias inéditas de generais que disseram não a Bolsonaro e a despedida de Mark Milley, Marcelo Godoy- OESP


Mark Milley, o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, passou no dia 29 de setembro o cargo para o general da Força Aérea Charles Quinton Brown Jr. A cerimônia em Fort Myer, na Virgínia, passaria quase despercebida em outros tempos. Mas estes são tempos de crise. E os militares, lá como cá, desempenharam um papel importante durante as tentativas de se rasgar a Constituição, em Washington e em Brasília, com as invasões do Capitólio e das sedes dos Três Poderes.

O chefe do Estado-Maior Conjunto, general de Exército Mark Milley (esq.), cumprimenta o novo chefe, o general da Força Aérea Charles Brown, durante a cerimônia de despedida de Milley, no dia 2023
O chefe do Estado-Maior Conjunto, general de Exército Mark Milley (esq.), cumprimenta o novo chefe, o general da Força Aérea Charles Brown, durante a cerimônia de despedida de Milley, no dia 2023 Foto: SAUL LOEB / AFP

No mesmo dia 29, a Polícia Federal lançava a 18.ª fase da Operação Lesa Pátria e varejava a casa do general da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, um Força Especial. Apreendeu celulares, armas e o passaporte do militar que gostava de afirmar em mensagens de WhatsApp, conforme revelou a jornalista Malu Gaspar, sua predileção pela palavra neutralizar. “Se achar que minha Pátria estiver precisando, providenciarei para que aquele que a esteja agredindo seja neutralizado. Adoro essa palavra, neutralizado.”

Ridauto foi surpreendido em vídeos caminhando na Esplanada e vestindo verde e amarelo no dia 8 de janeiro. Achava tudo bonito. Até o gás lacrimogêneo da PM. Foi ofendido pelo coronel Adriano Camargo Testoni, seu colega de turma da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). “Forças Armadas filhas da p... Bando de generais filhos da p... Vanguardeiros de m... Covardes. Olha o que está acontecendo com a gente. Freire Gomes (ex-comandante do Exército), filho da p... Alto Comando do car.... Olha aqui o povo, minha esposa. Esse nosso Exército é uma m... Vão tudo tomar no c...” Palavras inequívocas.

Testoni hoje é alvo de ação no STF – seu caso foi enviado ao Supremo pelo Superior Tribunal Militar, depois de ser indiciado em um IPM aberto pelo Comando Militar do Planalto. Ridauto, que depois da intentona do dia 8 passou a frequentar lives nas quais evitava qualquer crítica à atuação da Justiça na investigação da baderna em Brasília, tornou-se o primeiro general a ser alvo de buscas da PF, na Lesa Pátria. Meses antes, colegas de Ridauto flertaram com o golpe.

Ridauto Lúcio Fernandes caminhando pela esplanada no dia 8 de janeiro
Ridauto Lúcio Fernandes caminhando pela esplanada no dia 8 de janeiro Foto: REPRODUÇÃO
Política

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Descontentes com a atuação do TSE no pleito que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva, generais do Comando de Operações Terrestres (COTer) teriam produzido um estudo sobre a intervenção no Judiciário, com o afastamento de ministros considerados hostis a Jair BolsonaroHavia ainda oficiais dos Comandos Militares do Norte e do Oeste que se manifestavam contra o presidente eleito em redes sociais ou em abaixo-assinados. No Alto Comando, uma minoria simpatizava com ideias exóticas – quatro ou cinco, a depender dos relatos ouvidos pela coluna.

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A necessidade de se reconstruir a unidade do Exército fez com que o olhar sobre quem pensou em ultrapassar o Rubicão fosse deixado de lado. A iniciativa de encontrar erros e delitos passou do STM ao Supremo. Na Força Terrestre, as descobertas da PF, como a dos esquemas dos espertalhões do Pix e da venda das joias e da ação do ex-major Ailton Barros, aumentaram ainda mais a distância entre os legalistas – chamados de melancias pelos radicais – e os defensores do ex-presidente.

O movimento de pacificação fez ainda exemplos de inconformismo com as algazarras de Bolsonaro e seus planos desaparecerem para a população. A coluna contará aqui dois casos importantes de generais que disseram não. O primeiro aconteceu na maior crise militar da Nova República, a que levou à demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e dos comandantes das três Forças. A gravidade do momento pode ser aferida pela história da decisão tomada pelo general José Luiz Dias Freitas.

Então chefe do COTer, Freitas recebeu a visita do general Walter Braga Netto, recém-nomeado ministro da Defesa. Ele queria convidá-lo a assumir a Força Terrestre. “Não posso. Não vou durar uma semana no cargo”, disse Freitas, rejeitando o comando do Exército. A razão era que ele não se sujeitaria aos caprichos do presidente.

Sábia decisão? Um mês depois, o Exército se viu às voltas com o caso de Eduardo Pazuello, general da ativa que discursou em um comício de Bolsonaro, no Rio. Freitas passou à reserva e foi viver no interior do Paraná, onde começou a prestar serviço voluntário em uma Santa Casa. Pazuello se elegeu deputado pelo PL em 2022.

Da esq. para a dir., os ministros Braga Netto e Ramos, o presidente Bolsonaro e os generais Pimentel e Paulo Sérgio Oliveira, então comandante do Exército, na cerimônia de entrega de espadim aos cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto
Da esq. para a dir., os ministros Braga Netto e Ramos, o presidente Bolsonaro e os generais Pimentel e Paulo Sérgio Oliveira, então comandante do Exército, na cerimônia de entrega de espadim aos cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto Foto: Marcos Corrêa/PR

Ainda em 2021, o general Paulo Roberto Rodrigues Pimentel comandava a Aman quando Bolsonaro começou suas motociatas pelo País. O presidente teve então a ideia de entrar com uma delas, vinda de Resende (RJ), pelo portal monumental da Academia no dia da cerimônia de entrega dos espadins, em 14 de agosto de 2021. Era a primeira vez, desde o começo da pandemia de covid-19, que a tradicional festa se realizaria com a presença de familiares e autoridades na escola.

Pimentel, um Força Especial, foi abordado pelos ministros Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto. Os dois contaram a intenção do presidente. E tentaram convencê-lo a permitir a algazarra. Ele respondeu que era inaceitável. Só havia um jeito de Bolsonaro entrar com a motociata na Aman: nomeando outro general para comandar a escola. Pimentel sabia que se deixasse a balbúrdia acontecer cobriria seu comando de vergonha; se recusasse, arriscava a carreira – era general de brigada e ia disputar a promoção para a terceira estrela.

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O general recebeu apoio de outros oficiais. Uma solução foi encontrada: a motociata se concentrou fora dos muros da Aman. A espada do general não tinha partido. Servia aos governos como representantes do Estado e não a um líder. Em momentos de crise, é preciso coragem para cumprir a obrigação. Terminada a cerimônia militar, o presidente deixou a academia em um helicóptero. Pimentel acabou promovido em 2022 e foi comandar a 3ª Divisão do Exército, a Divisão Encouraçada, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

Ele é irmão de Carlos Alberto Rodrigues Pimentel, o general que comandava a Brigada de Operações Especiais, com sede em Goiânia. Era Carlos que o ex-major Ailton Barros queria convencer a participar do golpe para fechar o STF, conforme registrado em mensagem encontrada pela PF dirigida ao coronel Elcio Franco, outro Força Especial, ex-assessor de Pazuello e de Bolsonaro. Nenhum dos irmãos se deixou levar pelo canto da sereia que terminou no 8 de janeiro.

Assim também foram os comportamentos dos generais Tomás PaivaRichard NunesGuido AminValério Stumpf e outros, chamados de melancia pelos radicais bolsonaristas. Mas todos escolheram o silêncio. O Exército não era monolítico, como reconhecem analistas como o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor da UFRJ. Nem seus generais em conjunto estavam à disposição de Bolsonaro para qualquer tipo de aventura. As escolhas deles foram fruto de decisões pessoais?

O general José Luiz Dias Freitas, que foi comandante de Operações Terrestres do Exército, formou-se na turma de 1979 da Aman
O general José Luiz Dias Freitas, que foi comandante de Operações Terrestres do Exército, formou-se na turma de 1979 da Aman Foto: Sargente Gustavo/Divulgação Exército

O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, disse na semana passada que é chegada a hora de separar o “joio do trigo”. É verdade que os acampamentos em frente aos quartéis foram tolerados e as urnas eletrônicas contestadas por militares. Não se vislumbrou que a escalada de violência levaria ao 8 de janeiro. Para Múcio, é impróprio ligar o substantivo militar ao adjetivo golpista. É preciso recolher os fatos. Quem enxerga apenas conivência com o golpe em todo fardado precisa ouvir os silêncios. E não só o que se diz na CPMI do dia 8 de Janeiro, que chega ao fim neste mês.

É que há uma diferença entre não gostar de Lula e planejar um golpe. Assim como há entre a quietude e o silêncio. Faltou aos militares brasileiros a afirmação aberta da legalidade? Ao passar para a reserva, Milley, que assumira o cargo em 2018, poderia ter se prolongado sobre a missão no Afeganistão, ou sobre o combate ao Estado Islâmico e aos grupos terroristas na África. Ou ainda sobre a ajuda à Ucrânia.

Mas os tempos são outros: Milley preferiu enfatizar a defesa da Constituição. Disse que ela dá um sentido ao serviço do militar americano. “Ela é o documento que todos nós, fardados, juramos proteger e defender contra todos os inimigos – estrangeiros e internos. Essa é uma verdade que passa de geração em geração. E nós, uniformizados, estamos dispostos a morrer para passar a Carta à próxima geração.”

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O general prosseguiu afirmando que a Constituição faz do militar americano um ser único. “Nós não juramos pela nossa Pátria. Nós não juramos por nossa tribo. Nós não juramos por nossa religião. Nós não juramos fidelidade ao rei ou à rainha ou a um tirano ou a um ditador. E nós não juramos a um aspirante a ditador. Nós não juramos fidelidade a um indivíduo. Nós juramos fidelidade à Constituição, e prestamos juramento à ideia que é a América, e estamos dispostos a morrer para protegê-la.”

Mark Milley assinou carta com outros generais pouco depois da tentativa de invasão do Capitólio: 'Nós defendemos a Constituição'
Mark Milley assinou carta com outros generais pouco depois da tentativa de invasão do Capitólio: 'Nós defendemos a Constituição' Foto: Patrick Semansky/AP

Milley foi o homem que em 12 de janeiro de 2021, após o ataque ao Capitólio, divulgou uma carta com outros sete generais. Tinha 20 linhas. Começava assim: “O povo americano tem confiado em suas Forças Armadas para protegê-lo e à sua Constituição por quase 250 anos”. O documento afirmava que o ataque era um “assalto direto ao Congresso e à ordem”. “Testemunhamos eventos que são inconsistentes com a obediência às leis, ao direito de liberdade de opinião e de reunião, pois estes não dão a ninguém o direito de usar a violência, a sedição e a insurreição.” Nada mais claro.

Ele e seus colegas fizeram uma profissão de fé: “Nós defendemos a Constituição. Qualquer ruptura do processo constitucional não é apenas contra nossas tradições, valores e juramento, é contrário à lei”. Eles mostraram que a defesa da legalidade é um imperativo de quem ocupa tais cargos. A isenção e o apartidarismo não lhes podem servir para fechar os olhos à violência do lado com o qual se simpatiza ou para reconquistar a unidade institucional. Não há detergente melhor do que a luz solar, dizia Louis Brandeis. Assim como não há nada mais difícil do que escutar o silêncio. 

Ruy Castro - Bocas de cristal, FSP

 Em busca de material sobre o futebol de outros tempos, descubro números de 1958 da revista Manchete Esportiva, sobre a preparação da seleção brasileira para a Copa do Mundo daquele ano, na Suécia. E vejo as reportagens sobre os exames dentários dos jogadores, ordenados pela CBF, então CBD. Aquilo era uma novidade. Formou-se uma legião de dentistas, e os 33 convocados iniciais, um a um, com ou sem medo, sentaram-se na cadeira e abriram a boca.

Foi um terror: em duas semanas, os dentistas tiveram de meter a broca em 470 dentes, quase 15 por jogador, e fazer 32 extrações —Oreco, lateral do Corinthians, o recordista, com sete.

Era este o estado dentário médio dos jogadores no Brasil. Craques da seleção, ídolos de seus times e a maioria com menos de 25 anos, saíam em close nas capas de revista com espetaculares falhas dentárias —como Vavá, artilheiro do Vasco, Telê, motor do Fluminense, e Garrincha, que você sabe quem foi—, e ninguém via nada demais nisso .

Era um reflexo do estado dentário médio da população, assim como do salário médio dessa mesma população. Estávamos longe das grandes fortunas no futebol, e muitos jogadores, mesmo os bem pagos, tinham de fazer bicos por fora. Pinheiro, capitão do Fluminense, era corretor de imóveis, passava o dia ralando no asfalto; Oswaldo Baliza, goleiro do Botafogo, era caixeiro de armazém; Bellini, senhor da grande área do Vasco e da seleção, vendia sapatos em Copacabana, em sociedade com Fernando, goleiro do Flamengo.

As coisas mudaram. Os jogadores de hoje, mesmo da Série B, ostentam teclados esculpidos em alabastro. E a razão é simples: por maior que ainda seja a desigualdade no futebol, sua média salarial ficou muito maior que a do brasileiro. E isso se reflete nos dentes. Os cracões agora podem se orgulhar de suas bocas de cristal, mas o grosso dos brasileiros, que não vê a cor da bola, continua desdentado.