Se houvesse um prêmio para o autor mais controverso, o francês Michel Houellebecq (H) seria o escritor mais nobelizado do mundo. Mas, mesmo para os padrões dele, os últimos acontecimentos escalaram alucinadamente.
Resultado: aquele que é considerado o maior ficcionista francês contemporâneo (que acordou a literatura francesa de um torpor fossilizado de décadas), desenvolveu bulimia e a síndrome do pânico e há meses não põe o pé fora de casa. Fuma quatro maços de cigarros por dia, e emborca ansiolíticos como se fossem champanhe. E, para um homem que até ontem professava-se priápico, hoje declara-se impotente.
Talvez seja o corolário de uma carreira que sempre surfou na provocação, mirando em todos os tabus para suas estilingadas verbais e fazendo do politicamente incorreto o seu Esperanto. Em 2019, por exemplo, assinou na revista Harper’s um artigo marotamente intitulado: “Donald Trump é um Bom Presidente”. No texto, fervilhavam sarcasmos, irritando gregos e troianos:
H louvou a saída do Reino Unido da União Europeia: “Só lamento que os britânicos tenham mais colhões que os franceses”. Para ele, a clonagem contém mais valores humanistas que o aborto. Conservador que odeia o liberalismo capitalista, gosta de citar a frase de Lenin: “Nem tudo o que é bom é novo, nem tudo o que é novo é bom”.
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Houellebecq por vezes parece menos um radical boquirroto do Twitter do que um tiozão reaça do WhatsApp. Ele próprio se vê como um demiurgo moderno de uma era niilista e narcisista. “É verdade que não sou um revolucionário. O próprio termo ‘felicidade coletiva’ me dá arrepios. A ideia de que a sociedade quer cuidar da minha felicidade não me enternece.”
Numa época tão polarizada, melindrosa e intolerante, H, em vez de pisar em ovos como todos nós, parece brincar de amarelinha no terreno minado do cancelamento: “O terrível é até que ponto já não se pode dizer mais nada. Nietzsche, Schopenhauer e Spinoza não seriam aceitos hoje.” Bem, o tiozão do WhatsApp não saberia que Spinoza, proscrito na Amsterdã do século 17, tampouco foi aceito em sua tempo.
Mesmo no talvez já batido tema do politicamente correto, Houellebecq sabe ser sardônico: “As pessoas cansam de dizer coisas más sobre uma coisa, mas a coisa má não se cansa de existir”. E também esguichou mangueiradas de água gelada nos que viam na pandemia uma panaceia ética para a humanidade.
Michel Houellebecq
O primeiro bico no balde de H foi no romance Partículas Elementares, de 1998. O livro ganhou o badalado Prix Novembre, mas com tanto bate-boca que dois jurados renunciaram e até o nome do prêmio acabou mudado para Décembre. A então decana da crítica literária do New York Times, Michiko Kakutani, considerou o romance “repugnante”.
Com o seguinte, O Mapa e o Território, H embolsou o prêmio Goncourt, o principal da França, que tem nada menos que 1500 honrarias literárias (quase uma para cada escritor). Já foram contemplados com o Goncourt colossos como Marcel Proust, André Malraux, Simone de Beauvoir e Marguerite Duras. O prêmio garante uma venda adicional de 300 mil exemplares.
Isso não evitou que H fosse acusado de plágio pela revista Slate: O Mapa e o Território incluiria trechos transcritos da Wikipedia sem crédito. A Slate alegou ainda que o autor copiou a descrição da rotina dos policiais franceses (do site do Ministério do Interior) e de um hotel no sul da França (da homepage do próprio hotel). Nada impediu que, em 2019, o presidente Emmanuel Macron condecorasse Houellebecq com a maior honraria concedida pelo Estado francês: a Legião de Honra.
Visionário e charlatão
H nasceu na ilha da Reunião, no Índico, em 1956. Queixa-se até hoje de que os pais não lhe davam bola, pois assumiram a contracultura dos anos 1960, apesar de já não serem jovens. Foi criado pela avó paterna, cujo sobrenome adotou.
A mãe do autor, que uma vez ele chamou de “a velha vagabunda”, já tinha mais de 40 anos quando se mandou para as trilhas hippies da América do Sul. Em seu livro O Inocente, a mãe de H descreve o filho como um “bastardo malvado e imbecil”. Em Mourir (Morrer), H diz: “Quando eu era criança, a minha mãe jamais me abraçou. Isso explica toda a minha personalidade”.
Poucos chamariam a prosa de H de suntuosa. Nada de filigranas retóricas. Ele gosta de citar Schopenhauer: “A primeira e única condição do bom estilo é ter algo a dizer”. H tanto é reverenciado como um visionário quanto denunciado como charlatão. Os dois lados da barricada concordam num ponto: todas as polêmicas anteriores de H são fichinha perto da atual. Daí que, pela primeira vez, ele escreveu um livro para se defender: Quelques mois dans ma vie (Alguns Meses na Minha Vida, ainda inédito no Brasil, sem previsão de edição aqui).
São duas polêmicas mirabolantes pelo preço de uma. Muitas pessoas já esqueceram um detalhe do fatídico dia 7 de janeiro de 2015, quando membros da Al Qaeda invadiram a redação do semanário humorístico Charlie Hebdo, em Paris, e assassinaram 12 cartunistas e jornalistas. Por coincidência, um novo número da publicação acabava de chegar às bancas e a capa estampava uma caricatura de um H macilento, com um chapéu de Nostradamus, fumando um cigarro. A manchete: “Previsões do Mago Houellebecq”.
O gancho era o romance Submissão (Islã quer dizer submissão), cujo lançamento foi no próprio dia dos atentados. Nele, Houellebecq imagina uma França de um futuro próximo (2022), em que os partidos tradicionais fragmentam o voto na eleição presidencial, e os mais votados são Marine Le Pen, da extrema-direita, e Ben Abbes, o líder fictício de uma Irmandade Muçulmana Francesa.
No segundo turno, a esquerda apoia o muçulmano, preferindo o diabo que não conhece àquele que conhece. Ben Abbes impõe a Sharia, e a elite intelectual francesa se mostra encantada por colaborar (como os colaboracionistas de Vichy, durante a ocupação nazista) com o novo regime teocrático, que entre outras coisas faculta aos homens a poligamia e a redomesticação da mulher.
Claro que o que H descreve não aconteceu de fato. Trata-se de uma sátira distópica, não um relato oracular de eventos futuros. A graça da sátira é especular o que aconteceria se nada acontecesse para impedir o que está acontecendo. O seu papel, diz ele (ao falar de “1984″, de Orwell), não é prever, mas transfigurar os medos de uma época.
O romance Plataforma, de 2001, sobre turismo sexual na Tailândia, levou o romancista a tribunal pela descrição de um ataque extremista islâmico a um resort na Ásia. A obra foi lançada um ano antes de o grupo terrorista Jemaah Islamiah matar 202 pessoas na ilha de Bali.
Por isso, a primeira réplica do novo livro de Houellebecq é à acusação de islamofobia. Recentemente, ele deu uma entrevista ao filósofo Michel Onfray, na qual declarou que o povo francês não quer que os muçulmanos sejam assimilados, mas que “parem de roubar e agredir”. Ou então “vão embora”.
O pior veio depois: “Quando territórios franceses estiverem sob controle islâmico, ocorrerão atos de resistência. Haverá tiroteios em mesquitas, em cafés frequentados por muçulmanos. Em suma, Bataclans ao contrário”. Bataclan é a sala de espetáculos parisiense, palco de um massacre no dia 13 de novembro de 2015, quando terroristas islâmicos abriram fogo contra 1500 pessoas que assistiam a um show, matando 130 e ferindo 352.
- Relembre: Policiais relatam ‘inferno’ no Bataclan
O Reitor da Grande Mesquita de Paris reagiu processando Houellebecq por incitamento à violência. O escritor publicou uma retratação no jornal Le Figaro, e o Reitor retirou a queixa (ainda tramita um processo movido por Mohammed Moussaoui, presidente da União das Mesquitas de França).
No novo livro, H diz que uma guerra civil na França é improvável, e que o Islã e a delinquência não têm uma relação causal, pois as religiões proíbem as desordens. Pede desculpas à comunidade islâmica e chama suas afirmações de “burras” e “estúpidas”.
A segunda polêmica
A segunda polêmica é bem mais rocambolesca. No final de 2022, Stefan Ruitenbeek (que no livro Houellebecq chama de “a Barata”), membro do “coletivo de arte” holandês KIRAK, mandou um email a H anunciando que chegara a Paris com uma jovem que desejava fazer sexo com o escritor.
H enviou sua esposa Qianyum Lysis, chinesa 34 anos mais nova do que ele, a um restaurante parisiense para conhecer a Barata e a moça, a quem H chama de “a Porca”. A Porca perguntou a Qianyum, que participaria do ménage, se a Barata podia filmar o episódio para sua conta do Onlyfans.
H, que já rodou filmes pornôs e defende a pornografia amadora contra a profissional, concordou, achando que se tratava de “exibicionismo honesto” para uns poucos fãs devotos. Caiu-lhe o queixo ao descobrir que Onlyfans é um site onde os assinantes pagam pelo acesso.
Mais tarde, a Barata pediu a H que fosse a Amsterdã, onde jovens que eram “leitoras assíduas” desejavam transar com o autor para um filme KIRAC. O escritor reconhece que ter topado é “incompreensível”. Jura que foi-lhe garantido que seria um “filme de arte”.
Já em Amsterdã, encharcado de vinho e ansiolíticos, H assinou o contrato (reproduzido na íntegra no livro), encorajado pela cláusula 3, que proibia a Barata de mostrar no mesmo plano os rostos do autor e de sua esposa e os respectivos genitais. Só ao regressar à França, depois de um rompimento com Barata & Porca, é que H reparou na bomba da cláusula 4, que dava a Ruitenbeek o direito de usar as imagens filmadas em Paris.
Aliás, o trailer do filme já estava a viralizar online (não é verdade que Houellebecq usou a Legião de Honra como tapa-sexo). Mortificado, H instruiu seus advogados a bloquearem o filme na Internet, mas o pedido foi indeferido nos tribunais franceses e holandeses, cujos juízes não se convenceram da incapacidade do escritor ao assinar o contrato, devido à embriaguez.
Última atualização
Houellebecq apelou, e a última atualização é de que o tribunal de recurso de Amsterdã decidiu que o autor deveria ver o filme antes do lançamento, para que possa tomar novas medidas legais caso continue insatisfeito – o que ele continua, e muito. A saga ainda dará pano para mangas.
Na passagem mais dilacerante do livro, Houellebecq admite que não gosta de feministas e que elas não gostam dele, mas que experimentou algo semelhante à sensação de ser estuprado após seu caso com a Barata e a Porca. E que hoje é um presidiário em seu próprio lar, bulímico, impotente e deprimido.
Por isso, anunciou que Aniquilação, editado no ano passado, é o seu último romance. Um livro estranhamente pouco Houellebecq: melancólico, pungente, que fala da inexorabilidade da morte mas também do amor, de esperança e redenção. Talvez um canto do cisne, que lembra o comentário de Ezra Pound sobre Trópico de Câncer, a obra escabrosa de Henry Miller: “Ah, até que enfim um livro impublicável que é legível!”
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