domingo, 6 de agosto de 2023

Vargas e FHC podem ensinar Zema, Tarcísio, Leite e Ratinho Junior a lidar com Lula, Leonencio Nossa, OESP

Quase o Nordeste não aparece nas histórias da chamada Revolução de 1930, que pôs abaixo a República Velha. Um cearense, no entanto, foi o responsável em consolidar o movimento na região e garantir a tomada do poder nacional pelo grupo de Getúlio Vargas. O então capitão Juarez Távora ganhou a alcunha de “vice-rei do norte” depois de tirar do jogo as oligarquias que resistiam. Sem apoio de uma figura nordestina os gaúchos teriam dificuldades para consolidar o golpe.

Távora conhecia os sertões desde que atuou na Coluna Miguel Costa-Prestes, que percorreu o interior brasileiro para se posicionar contra o governo federal. Getúlio o nomeou delegado militar do Norte-Nordeste e pôde assim, na composição com uma força da região, seguir no Palácio do Catete.

Sem apoio do então capitão Juarez Távora (foto), uma figura nordestina, os gaúchos de Getúlio Vargas teriam dificuldades para consolidar o golpe
Sem apoio do então capitão Juarez Távora (foto), uma figura nordestina, os gaúchos de Getúlio Vargas teriam dificuldades para consolidar o golpe Foto: Acervo Estadão

Na História, lideranças do Sul e Sudeste se dividiram entre as que buscavam o consenso nacional – ou o poder do País, como queiram – e aquelas que tentaram a hegemonia apostando apenas na “pujança” do Sul Maravilha.

Em entrevista às jornalistas Mônica Gugliano e Andreza Matais, aqui do Estadão, o governador de Minas, Romeu Zema, relatou os planos do consórcio de governadores do Sul e Sudeste para obter protagonismo nacional. Encontros de chefes de Executivo de regiões visando pautas em comum sempre foram recorrentes. Os governadores nordestinos têm até tradição nisso. É claro que chama a atenção o fato do consórcio, à exceção do Espírito Santo, ser formado por nomes de oposição ao Palácio do Planalto. Mais que isso. Ao menos Zema, Tarcísio, Eduardo Leite e Ratinho Júnior são postulantes à Presidência.

Zema propõe uma direita que não seja “encrenqueira”, sem “exaltação”. Fala do tempo da política anti-vacina de Jair Bolsonaro sem meias palavras, assim como diz entender programas sociais como uma agenda de qualquer espectro político.

O desafio político do consórcio, porém, é calibrar a busca pelo “protagonismo”. O tom contundente nas reclamações de privilégios concedidos pelo governo Lula ou pelo Congresso ao Nordeste talvez não seja adequado para Tarcísio, que comanda um Estado de nordestinos e descendentes de nordestinos, ou Leite e Ratinho Júnior, que dependem de parcerias amplas para ir além do poder nos seus Estados. O próprio Zema sabe que o eleitorado do norte mineiro, ligado à Bahia, pode ser decisivo numa eleição presidencial – que diga Aécio Neves, que perdeu ali votos valiosos para Dilma em 2014. Como o personagem Riobaldo, do romance Grande Sertão: Veredas, não conseguiu atravessar o deserto na primeira tentativa.

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O governador de Minas, Romeu Zema, relatou os planos do consórcio de governadores do Sul e Sudeste para obter protagonismo nacional.
O governador de Minas, Romeu Zema, relatou os planos do consórcio de governadores do Sul e Sudeste para obter protagonismo nacional. Foto: Washington Alves/Estadão

Pode ser um erro fatal limitar o Nordeste a um reduto lulista a ser combatido.

Nas últimas eleições presidenciais, especialmente de 2018 e 2022, a divisão do mapa brasileiro, marcada pelo Nordeste em vermelho e o Sul e Sudeste em azul, levou muita gente a enxergar um racha político de proporções inéditas no País. Não havia novidade alguma. As divergências de poder entre uma parte e outra do Brasil sempre marcou a história republicana. Acordos e entendimentos, porém, conseguiram consensos e encobrir diferenças acentuadas.

Ainda no início da República, no tempo da política do café com leite, de hegemonia das oligarquias rurais de São Paulo e Minas, as forças dos Estados do Nordeste eram acomodadas nas chapas que disputavam o Palácio do Catete. De 26 eleições presidenciais em períodos democráticos, o Sul e Sudeste só elegeram chapas “puro-sangue” em nove oportunidades, sendo que em duas delas, 2010 e 2014, o principal puxador de votos era um pernambucano, Luiz Inácio Lula da Silva.

Ultrapassa a simbologia que, na primeira eleição, em 1891, o Congresso elegeu dois nordestinos, ou para ser mais exato, dois alagoanos, para presidente e vice. Não era uma chapa “puro-sangue” do Nordeste porque o marechal Deodoro da Fonseca, líder do golpe militar que derrubou a monarquia, e Floriano Peixoto, foram eleitos em disputas separadas. Quem começou mesmo a tradição de acordos entre Nordeste e Sudeste foi a dupla formada pelo advogado paulista Prudente de Moraes e o médico baiano Manuel Vitorino, eleitos presidente e vice em 1894.

O antigo Norte Agrário, na definição do historiador Evaldo Cabral de Melo, perdeu a posição de maior economia brasileira em 1870, com o apogeu dos produtores de café paulistas e cariocas das margens do Rio Paraíba do Sul. Mas quase sempre esteve representado nas disputas pelo comando do País.

Em 1898, o pernambucano Rosa e Silva foi eleito vice. As três disputas seguintes, quando a força de São Paulo e Minas chegou ao apogeu, os nordestinos ficaram de fora. Mas, em 1914, Urbano Santos, do Maranhão, garantiu a vice. O Nordeste chegaria forte em 1920, com Epitácio Pessoa, da Paraíba, presidente. Até a composição do último pleito da Primeira República teve um representante da região no posto de vice. Vital Soares, da Bahia, e o presidente eleito, o paulista Julio Prestes, não assumiram os cargos. Do lado concorrente, a aliança também contava com um nordestino. O paraibano João Pessoa compôs a chapa de Getúlio Vargas, então presidente do Rio Grande do Sul, que após a derrota tomou o poder.

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Getúlio comandou uma ditadura por anos com interventores militares fortes no Nordeste. Era o caso do cearense Juraci Magalhães que chefiou a Bahia. Após o fim do Estado Novo, o gaúcho retornaria ao Catete agora pelo voto direto, em 1950, tendo um potiguar como vice. Café Filho assumiu o governo com o suicídio do presidente.

O gaúcho Getúlio Vargas comandou uma ditadura por anos com interventores militares fortes no Nordeste; quando retornou ao poder pelo voto direto, tinha um potiguar como vice.
O gaúcho Getúlio Vargas comandou uma ditadura por anos com interventores militares fortes no Nordeste; quando retornou ao poder pelo voto direto, tinha um potiguar como vice. Foto: Acervo Estadão

Romeu Zema pode até olhar para as eleições de 1955, que teve o conterrâneo Juscelino Kubitschek eleito presidente e o gaúcho João Goulart, vice. Mas Juscelino aproveitou a comoção da morte de Getúlio para derrotar Juarez Távora por apenas 466 mil votos – a oposição quis dar um golpe. Foi uma rara eleição em que o Nordeste rachou. Os usineiros de Pernambuco, Paraíba e Alagoas apoiaram Távora pela sintonia entre Juscelino e João Goulart, herdeiro do getulismo, que concorria na disputa separada para vice. Juscelino só teve maioria na Bahia, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte. Quase nunca o Nordeste se fragmenta em eleições.

Após os 21 anos de ditadura militar, que teve generais do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Santa Catarina como presidentes ou vices, a tradição de alianças tácitas entre o Nordeste e o Sul e Sudeste voltou. Das dez eleições presidenciais, uma indireta e as demais diretas, apenas em 2018 um nordestino não foi eleito candidato a presidente ou a vice ou atuou como principal puxador de votos. Ainda assim, o paulista Jair Bolsonaro e o gaúcho Hamilton Mourão, de formação militar, não representavam forças municipais nem estaduais.

Representante do sindicalismo do ABC e depois do campo da centro-esquerda do Sudeste, Lula não precisou de intermediários para conquistar o Nordeste. Ele implantou um grupo na Bahia que derrotou o carlismo e ressuscitou o clã Arraes em Pernambuco. A façanha de criar um super reduto eleitoral, formado por nove Estados, não expôs um país fraturado ou algum tipo de pioneirismo, mas a capacidade de entender uma região que nunca teve sintonias claras com o Sul e Sudeste e, ao mesmo tempo, sempre esteve disposta a alianças.

Na história dos acordos entre Sudeste e Nordeste não pode faltar Fernando Henrique Cardoso. No rastro do Plano Real, ele escolheu o senador alagoano Guilherme Palmeira, do PFL, um velho nome das usinas, para compor sua chapa em 1994. José Serra e Sérgio Motta, nomes influentes do PSDB, foram contra. Palmeira teve de se afastar da campanha por conta de denúncia de esquema envolvendo empreiteiras. Remanescente de governos militares, o senador pernambucano Marco Maciel, também do PFL, foi o substituto. Era mais que um representante de oligarquia nordestina. Foi peça-chave nos dois governos tucanos.

Fernando Henrique entrou para o anedotário pelo incômodo de comer buchada de bode e subir em burrinho. A figura pomposa e intelectual do presidente não se adequou a um chapéu de vaqueiro. O tucano deixou como lição para os sábios do Sudeste que, sem composição com o outro lado do Brasil, oligarquias ou eleitores de lá, tudo pode não passar de um grupo que tenta apenas não ser esquecido no debate. Sob certo ângulo, preconceitos contra forças políticas e eleitorados podem se confundir.

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A propósito, Tarcísio flertou com a direita exaltada ao fazer o velho discurso da polícia que, para ser eficiente, tem que matar no momento em que o País se choca com mais um massacre promovido por agentes do Estado, desta vez nas periferias nordestinas da Baixada Santista. A visão policialesca e cruel das periferias talvez seja um bom tema para reuniões de governadores, independentemente da região. 

ESTADÃO / ECONOMIA / NEGÓCIOS Como a trading fundada por um Guinle se tornou a segunda maior do Brasil após a pandemia

 

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A pandemia de covid-19 trouxe rupturas nas correntes de comércio globais, prejudicando diversos setores. Um dos poucos beneficiados, mesmo com as grandes dificuldades logísticas estabelecidas, foi o de produção de alimentos, que viu os seus preços dispararem. Com as pessoas presas em casa, muitos itens deixaram de ser consumidos, mas ninguém buscou diminuir suas refeições. Esse cenário permitiu a uma empresa brasileira, a trading Timbro, fundada em 2010 por um empresário de sobrenome famoso, Jorge Guinle, e por Bruno Russo, dar um salto no volume dos seus negócios.

Jorge Guinle é da quarta geração da família que foi dona de um império empresarial
Jorge Guinle é da quarta geração da família que foi dona de um império empresarial Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

Antes da pandemia, em 2019, ela faturava R$ 2,5 bilhões. Neste ano, a projeção é atingir R$ 12 bilhões, o suficiente para colocá-la como a segunda maior trading brasileira, atrás apenas da Comexport. O período também ajudou a empresa a se consolidar como mais do que apenas uma comercializadora de commodities brasileira, de atuação tradicional. A Timbro passou a fazer negócios entre outros países que não o Brasil, originados lá fora e destinados a outros países.

Dessa forma, atua com commodities agrícolas produzidas também no México, Paquistão, Índia, Argentina e Uruguai. “Existem muitos negócios neste mundo. É importante ter proximidade e atenção ao cliente”, afirma Guinle. “Somos um ativo muito interessante para o Brasil, e podemos levar nosso conhecimento de fazer comércio exterior para o mundo.”

Atualmente, cerca de 10% dos negócios da empresa já não passam pelo Brasil. Para estabelecer essa atuação verdadeiramente internacional, a Timbro conta com escritórios em Miami, Genebra, Osaka, Lisboa, Londres e Cidade do México, que atendem às suas regiões próximas.

Há dois meses, até para representar o novo porte dos negócios e para abrigar os seus cerca de 370 funcionários, a holding inaugurou uma nova e moderna sede, que ocupa um andar inteiro em um prédio na Avenida Faria Lima, em São Paulo, repleta de plantas e espaços de convivência abertos. O objetivo é aproximar os funcionários e as diferentes divisões umas das outras. “O desafio é nos tornarmos uma empresa de médio porte para os padrões globais do setor, sem perdermos a nossa cultura”, diz o empresário.

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A Timbro se mudou recentemente para uma nova sede na Avenida Faria Lima, em São Paulo
A Timbro se mudou recentemente para uma nova sede na Avenida Faria Lima, em São Paulo Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

Novo capítulo

Além do forte crescimento e da internacionalização, a empresa chama a atenção também por representar um novo capítulo na história empresarial de uma das linhagens mais importantes para a história da economia brasileira. Com a Timbro, o sobrenome Guinle, da família gaúcha de origem francesa que se estabeleceu no Rio de Janeiro e que ajudou a fazer a fama internacional da cidade durante o século XX, agora tem um renascimento empresarial justamente na avenida que representa o coração financeiro da cidade de São Paulo.

O empresário Jorge Guinle, fundador da Timbro, não poderia ser mais diferente do seu primo distante de mesmo nome e sobrenome, que foi o mais famoso Guinle da segunda metade do século passado. O playboy Jorginho Guinle (1916-2004) se gabava de não ter trabalhado um dia sequer na vida e de ter namorado algumas das estrelas mais famosas da era de ouro de Hollywood, como Marilyn Monroe, Rita Hayworth, Hedy Lamarr, Ava Gardner, Anita Ekberg, Kim Novak e Janet Leigh. Ele também representou a decadência do clã, que perdeu importância e negócios durante a ditadura militar, e morreu sem posses, morando de favor dos novos donos no Copacabana Palace, que fora construído por seu tio Octávio, em 1923.

Jorginho representava a terceira geração da família. Era filho de Carlos Guinle, um dos sete filhos de Eduardo Palassin Guinle (1846-1912), que se mudou de Porto Alegre para o Rio de Janeiro e começou a erguer o império empresarial no fim do século 19. Já Jorge, da Timbro, que viu o primo apenas uma vez, na infância, é da quarta geração, e vem do ramo de Eduardo, o primogênito do patriarca.

Ao erguer uma trading de negócios multibilionários, Jorge Guinle representa uma tradição em comércio exterior que vem de seus dois pais. Do lado paterno, os Guinle foram responsáveis pela construção e administração do Porto de Santos, ao receber a concessão da Princesa Isabel, em 1888, o que permitiu ao Brasil se tornar uma potência de commodities agrárias e mineral no século 20. Já a sua mãe, Germana Guinle, empresária bem-sucedida e filha do usineiro e banqueiro João Ribeiro Coutinho, fundou a SAB Trading, que entre as décadas de 1970 e 2000 foi relevante na exportação de açúcar.

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Jorge começou a carreira corporativa trabalhando na empresa da mãe. Lá conheceu Bruno Russo, que era estagiário. Depois que a SAB foi vendida, eles se reencontraram e Russo sugeriu criarem uma empresa para importar máquinas da chinesa Sany, como caminhões-guindaste e retroescavadeiras. Foi a fundação da Timbro.

A partir dessas origens modestas, eles procuraram construir uma trading com perfil internacional, altamente diversificada, menos dependente de commodities agrícolas, como costumam ser as empresas de origem brasileira do setor. Também aproveitaram um espaço aberto pela perda de força da Cotia Trading, que chegou a ser uma das maiores empresa do País nos anos 1980 e que entrou em recuperação judicial em 2016.

“Os modelos de atuação para a Timbro eram as tradings japonesas e as multinacionais com faturamento na casa das centenas de bilhões de dólares”, afirma Russo, fazendo referência aos grupos como Mitsui, Mitsubishi e Sumitomo, que se tornaram poderosos conglomerados industriais nipônicos, e empresas globais tais como as chamadas ABCD (ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus), além de Trafigura e Glencore. Elas são diversificadas, atuando em diversas frentes ao mesmo tempo.

Bruno Russo (E) e Jorge Guinle, os fundadores da holding que se tornou a segunda maior do Brasil
Bruno Russo (E) e Jorge Guinle, os fundadores da holding que se tornou a segunda maior do Brasil Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

Hoje, a Timbro atua em quatro divisões: gestão e execução de importação para grandes empresas; comercialização de commodities, tanto agrícolas quanto minerais, além de matérias-primas siderúrgicas; distribuição de produtos para o varejo e atacado; e serviços financeiros voltados a comércio internacional. “Somos uma grande gestora de contratos e administradora de riscos, que incluem variações de câmbio e de cotações de commodities”, explica Guinle.

Dentro dessas áreas, existem negócios tradicionais para as tradings, como importação e exportação de grãos e alimentos. Mas também a primeira dessas divisões inclui até a importação de aeronaves executivas, em especial para empresários do agronegócio, que já levou a empresa a ser uma das maiores compradoras de aeronaves do país. Já na distribuição de produtos para varejo, ela se encarrega de trazer produtos que levarão marcas próprias de redes de mercados e farmácias, contratos confidenciais.

Giovana Madalosso - O censor em mim saúda o censor em você, FSP

 

Quase não escrevi este texto. Quando me ocorreu colocá-lo no papel, uma vozinha esganiçada, que escuto desde criança, disse: vai ficar uma merda. Outra voz, mais grave, emendou: assunto batido. Uma terceira: que nada, assunto bacana. Uma última: vai que tá ótimo.

Gosto do nome que o povo tolteca usava para designar esse conjunto de vozes na nossa cabeça: mitote. Condição constante da mente humana, essa polifonia do ego pode se tornar enlouquecedora nos momentos que as vozes negativas se sobrepõem, em número e estridência, às incentivadoras.

Ilustração mostra mulher sendo silenciada
Ilustração mostra mulher sendo silenciada - Catarina Pignato

Levei décadas de terapia para equilibrar o meu coro. Há alguns meses, sofri um linchamento por parte da extrema direita e meus barítonos da autocensura, que andavam sumidos, voltaram a falar. O volume logo baixou —certas vozes internas não podem ser levadas a sério— mas, desde então, venho pensando na natureza desse fenômeno pernicioso e no quanto isso tem afetado a sociedade como um todo.

Dando aulas de escrita criativa, eu já vinha percebendo. Professora, será que posso escrever sobre esse assunto? Tudo bem fazer essa piada? Será que vai pegar mal eu falar disso sendo homem? Se isso é o que os alunos me perguntam, depois de pensar e levantar a mão, imagine o que se passa por aqueles mitotes.

Claro que um certo cuidado é bem-vindo, mas não o estado de paranoia em que o ambiente digital nos colocou. O mundo, desde que é mundo, é controlado por tribunais tribais, onde o linchamento, físico ou moral, sempre existiu, mesmo depois do surgimento da justiça. A novidade está na escala que isso vem ganhando. Se antes era circunscrito a uma comunidade, agora é a toda a internet. Basta um erro, uma calúnia ou mesmo um deslize para que uma pessoa seja massacrada por milhões de outras. Às vezes por um país inteiro. Ou parte do mundo. O resultado disso é óbvio: as pessoas estão com medo. E o medo aumenta o volume do nosso censor.

É preciso admitir que o censor tem suas utilidades. Não fosse ele e sairíamos apertando as primeiras nádegas gostosas que vemos pela frente. Ou diríamos para o sorumbático vizinho: como você anda acabado ultimamente. O problema é quando essa voz cresce demais, a ponto de se tornar única, fazendo do censor o autocrata do mitote. E a autocracia, no governo de um país ou de uma mente, é um inferno.

No caso dos artistas —aqui falo pela minha categoria, como escritora—, o censor no comando paralisa o nascimento de qualquer ideia, que morre sem nem tingir o papel. Como vamos produzir arte com tanto medo de errar?

Em um texto recente, Chimamanda Ngozi Adichie diz que "nenhuma empreitada humana requer tanta liberdade quanto a criatividade. Para criar, é necessário que a mente possa vagar a esmo, ir a nenhum lugar, a qualquer lugar, a todo lugar. É desse ondular que surge a arte". Vou além, dizendo que não só a arte, mas diversas soluções para questões cotidianas e também para grandes questões, como essa mesma, da autocensura, pela qual estamos passando.

O censor que habita em mim convida o censor que habita em você para dar um tempo para a cabeça. Precisamos de liberdade para viver com plenitude e para enfrentar esses tempos.