domingo, 6 de agosto de 2023

O que sumiu e o que voltou, Ruy Castro, FSP

 Começou há algumas semanas, quando me gabei de ter sido um grande chutador de tampinhas, daquelas de refrigerante, soltas nas calçadas. Dias depois, um leitor perguntou se eu era capaz de dar o piparote com o sapato na borda da tampinha, fazê-la subir e matá-la no peito do pé. Humilhado, tive de confessar que não. E, agora, outro leitor, para meu opróbrio supremo, escreve para dizer que no peito do pé era fácil ---ele queria ver era se o sujeito fazia, como ele, a tampinha pousar no lado do pé. Tudo isto porque observei que, por falta das próprias, ninguém mais chuta tampinhas pelas ruas.

Muita coisa deixou de existir por falta de matéria-prima. Por exemplo, ninguém mais escorrega em cascas de banana. Continua a chover, mas não se usam mais galochas. Ninguém mais cheira rapé ou sopra chicletes de bola. Ninguém mais usa boina, só boné, e, mesmo assim, ao contrário. Artigos de primeira necessidade como o pote de goma arábica, o mata-borrão e a espátula para abrir cartas deixaram de existir. Ninguém mais lambe selos para pregar no envelope. Eu próprio há anos não lambo um selo e não escrevo ou recebo uma carta.

Velhos hábitos desapareceram. Desaprendemos, por exemplo, a aplaudir sentados. Qualquer showzeco nota 3, se aplaudido, é hoje aplaudido de pé. Em breve, teremos de plantar bananeiras para premiar uma performance verdadeiramente genial. E perdeu-se de vez a arte de bater carteiras. Os atuais meliantes não se valem mais de dedos leves e hábeis para subtraí-las de nossos bolsos. Vão direto de trabuco no nariz, até porque, com o celular e o pix, já quase não se usam carteiras. .

Em compensação, coisas há muito dadas como extintas estão voltando espetacularmente. Uma delas é o bigodinho, fora de moda há uns 70 anos. Os garotos voltaram a jogar bafo com as figurinhas. E até o estrogonofe voltou.

Mas preocupante mesmo é a volta do nazismo.

Marcus André Melo - A 'coalizão monstro' e suas consequências, FSP

 Chamar a aliança que dá sustentação ao governo atual de "coalizão Frankenstein" capta apenas sua heterogeneidade e falta de coesão. Não se trata de gerigonça brasileira; na portuguesa, os membros ocupavam espaços contíguos no espaço ideológico. Tampouco é frente ampla ou governo de salvação nacional, que se caracteriza por acordos pré-eleitorais, não pós-eleitorais, e não incluem o núcleo duro de suporte ao regime que se vai.

"Coalizão monstro" é o termo adequado para referir-se a algo inédito nas democracias: uma coalizão assombrosa de 16 partidos (com a possível inclusão do PP e do Republicanos)! O bloco parlamentar que elegeu Arthur Lira era apenas o prenúncio: reunia 20 dos 23 partidos da Câmara (87% do total): eram 496 parlamentares ou 97% dos membros da casa. O bloco reuniu, entre outros partidos, o PT e o PL.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), preside a sessão que aprovou a medida provisória de reorganização dos ministérios do governo Lula
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), preside a sessão que aprovou a medida provisória de reorganização dos ministérios do governo Lula - Pedro Ladeira - 31.mai.23/Folhapress

Alianças entre forças políticas rivais de um país não é incomum (exemplos: Áustria, Holanda; Colômbia); embora "soe como ato sexual pervertido", como afirmou Willy Brandt, ex-premiê alemão. Referia-se à "Groko" (do alemão, Grosse Koalition, Grande Coalizão), o primeiro acordo entre os social-democratas e democratas cristãos realizado em 1966. Foram quatro Grokos no total: três das quais sob Merkel (2005-2009; 2013-2021).

As Grokos baseiam-se em acordos escritos detalhando compromissos programáticos e políticos. Em 1969 e sob Merkel, os acordos foram desfeitos por divergências na política econômica. Isso vale também para as negociações com coalizões com os Liberais e Verdes.

A reação à Groko em 1968 foi feroz; houve protestos estudantis e atos terroristas contra um "conluio da burguesia e políticos contra a nação". Recentemente, o discurso antissistema adquiriu enorme força, alimentado pelo mesmo sentimento de déficit de legitimidade dos partidos e dos governos, que estariam voltando-se para si mesmos. A onda recente do populismo nutriu-se deste estado de coisas.

Em nosso país, a formação de coalizões não se assenta em bases programáticas; mas por uma lógica governo-oposição. Como discuti aqui. À medida que o presidencialismo de coalizão se normaliza no país atenua-se paulatinamente a intensa polarização dos últimos anos, mas aumenta a malaise política. Entretanto a distribuição para antigos adversários viscerais de pastas ministeriais e cargos no primeiro escalão, ainda que com sobre representação do partido do presidente (em um jogo no qual o poder do Executivo diminuiu e o do Judiciário aumentou), tem consequências.

O congraçamento de rivais figadais aparece na opinião pública como a partilha de um butim. Um conluio sistêmico, independente de quaisquer bases programáticas.


Lygia Maria Medo não é respeito FSP

 

No dia 28 de junho, Salwan Momika ateou fogo em um exemplar do Alcorão em frente à Grande Mesquita de Estocolmo. O refugiado iraquiano fez, na Suécia, o que não poderia fazer no seu país. A chama da nação nórdica acendeu um rastilho de pólvora até o Oriente Médio. Centenas de manifestantes invadiram e incendiaram a Embaixada da Suécia em Bagdá. Protestos se espalham por países como Iêmen e Líbano.

O ato de Momika pode ser considerado de mau gosto, mas as leis que regem a liberdade de expressão não avaliam gosto, e, no geral, restrições se aplicam quando indivíduos são diretamente atingidos. Atacar o feminismo não agride mulheres; rasgar a Bíblia não despedaça católicos.

Manifestação no Iêmen em reação à queima de Alcorão na Dinamarca
Manifestação no Iêmen em reação à queima de Alcorão na Dinamarca - Khaled Abdullah - 24.jul.23/Reuters

Governos da Suécia e da Dinamarca (onde também houve queima do Alcorão) explicaram que seguem o direito à liberdade de expressão, mas que vão tentar encontrar um jeito de proibir destruição do livro —o que é temerário.

Em um Estado laico, blasfêmia não é crime. Dogmas de regimes teocráticos não devem ser acatados por democracias liberais, muito menos sob ameaça. E a história mostra que ela é real.

Em 2006, embaixadas da Dinamarca e da Noruega foram incendiadas na Síria, após publicação de caricaturas do profeta Maomé. Cartunistas foram ameaçados de morte e, entre eles, Kurt Westergaard escapou de um atentado.

Como esquecer o ataque terrorista à redação do semanário francês Charlie Hebdo, que matou 12 pessoas em 2015? Houve, na época, quem responsabilizasse o jornal por ter desrespeitado uma religião.

Mas tentar justificar reações violentas a sátiras ou a protestos contra o islamismo é validar grupos radicais que desvirtuam o islã.

Ter medo não é ter respeito. "Respeitar o islamismo não é confundi-lo com o terrorismo islâmico", disse o cartunista francês Stéphane Charbonnier, em manifesto escrito dois dias antes de ser assassinado por fundamentalistas em 2015.