quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Canto de Gal Costa partiu de João Gilberto para inventar um Brasil, FSP

 


SÃO PAULO

Quando Gal Costa, que morreu nesta quarta-feira, aos 77 anos, encontrou João Gilberto pela primeira vez, ela ainda não tinha pisado fora da Bahia. A cantora estava com um jornalista que conhecia seu ídolo. "Era tão louca por João que pedi para me levar", ela disse, no ano passado, a este repórter.

A cantora Gal Costa durante o show "Fatal", de 1971, com pintura dourada na testa
A cantora Gal Costa durante o show 'Fa-Tal', de 1971, com pintura dourada na testa - Reprodução

João Gilberto reconheceu Gal como uma "menina que canta bem", da qual tinha ouvido falar, e pediu que ela buscasse o violão. "Corri em casa, peguei meu violão. Ele cantou e pediu para eu cantar, e assim foi. Quando parei de cantar —um repertório basicamente dele, que eu conhecia todo—, ele disse ‘você é a maior cantora do Brasil’. Nossa, foi um choque. Fiquei louca. Meu maior ídolo."

Àquela altura, o Brasil ainda não sabia da revelação feita pelo bossanovista, mas era questão de tempo. Ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, Gal Costa partiu do canto cochichado do mestre, mas o levou às alturas com seus agudos, o radicalizou sob a ditadura militar e transformou sua voz na mais orgânica expressão do tropicalismo —e uma das mais definidoras da música brasileira.

O começo foi no álbum "Domingo", de 1967, que ela divide com Caetano Veloso. Ali, Gal já mostrava que não era uma cantora convencional, preferindo a estética moderna da bossa nova ao canto empostado, e que tinha a ternura necessária para passear com delicadeza entre os versos do parceiro em músicas como "Coração Vagabundo" e "Avarandado".

Mas foi ao longo dos três álbuns seguintes —os dois álbuns de nome "Gal Costa", lançados em 1969, e "Legal", de 1970— que ela se soltou de vez. Já em "Sebastiana", a segunda faixa do primeiro disco, Gal revira a composição clássica de forró, soltando grunhidos e vocalizes que se desfazem numa psicodelia tropicalista que nos anos seguintes ficou mais evidente em sua obra.

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Gal tinha voz e técnica para ser uma cantora clássica, mas sua personalidade e o contexto em que estava inserida a levaram para caminhos diferentes. Se Caetano e Gil tinham a poesia e o conceito, era em Gal que as ideias tropicalistas encontravam sua expressão mais fidedigna.

Isso porque Gal incorporava espontaneamente a premissa do movimento que inaugurou a MPB e estabeleceu uma ideia renovada de Brasil através da música. É a voz de Gal que dá sentido a um repertório que abraça tanto a Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos, em "Se Você Pensa" quanto o forró, em "Sebastiana", e o balanço de Jorge Ben Jor, em "Que Pena", além da poesia de Caetano e Gil —em "Não Identificado", "Baby" e "Divino Maravilhoso".

É interessante perceber como a timidez de Gal vai se desfazendo ao longo dos primeiros discos que ela assina sozinha. Quando entrou em estúdio no fim dos anos 1960, disse o produtor desses álbuns, Manoel Barenbein, ela ainda não tinha a confiança necessária para expandir seu canto.

"Divino Maravilhoso" foi um marco nesse processo, e em "Cinema Olympia", a primeira faixa de seu segundo álbum, Gal já surge gritando e levando sua voz ao limite. Também nesse disco, ela estabelece sua marca com "Meu Nome é Gal", composição de Erasmo Carlos para ela na qual cita nomes de amigos antes de repetir a frase que dá título à faixa com uma ousadia que parece englobar todo o sentimento daquela geração, que inventava a própria liberdade no auge dos anos de chumbo.

Na voz de Gal, tudo se transformava. No disco "Legal", ela reinventa "Eu Sou Terrível", de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, com um vigor feminino que faz a versão original parecer inofensiva. Ela era capaz de, nesse álbum, trazer um afeto raro em "London, London" e apresentar "Falsa Baiana" com uma delicadeza tão profunda que a sensação é de que ela não precisaria abrir a boca para interpretar os versos.

Mas é em "Gal a Todo Vapor", álbum duplo gravado ao vivo de 1971, que ela anarquiza a tropicália —e, por consequência, a música brasileira. Do romantismo sublime de "Sua Estupidez" à visceralidade quase animalesca de "Vapor Barato", o brado de Gal tinha energia para expurgar a caretice de um Brasil que a essa altura a havia apartado dos amigos Caetano e Gil, presos e depois exilados.

Ao longo dos anos, Gal conseguiu ser uma intérprete reconhecida pela técnica vocal sem nunca deixar a inventividade de lado. Cantou Dorival Caymmi e Tom Jobim nos anos 1980 e 1990 e experimentou com o Auto-Tune em "Recanto", de 2011. Mais recentemente, em 2018, cantou com Marília Mendonça a música "Cuidando de Longe", recheando de graves a composição da sertaneja.

Com a chegada da idade, foi ficando menos explosiva, trocando os agudos estridentes para concentrar as energias por um canto mais comportado, mas ainda sedutor. Nos palcos, não se mexia mais de um lado ao outro incessantemente, mas continuava magnética como sempre.

João Gilberto foi o ponto de partida, e a tropicália seu principal veículo, mas Gal Costa transcendeu tudo isso para entrar para história não só como uma das maiores cantoras do país, mas ela própria também um sinônimo de música brasileira. De certa forma, com seu canto, inventou um Brasil.

Empresários enviam funcionários e bancam despesas para inflar atos antidemocráticos, FSP

 Thaísa Oliveira

BRASÍLIA

Empresários de diferentes estados bancaram o envio de caminhões para engrossar o protesto antidemocrático em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, onde apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) pedem a intervenção das Forças Armadas contra o resultado das eleições.

Mais de 70 caminhões com a bandeira do Brasil chegaram à capital federal entre domingo (6) e segunda-feira (7). Motoristas relataram à reportagem que 23 deles saíram juntos de Água Boa, no Mato Grosso, numa ação organizada por empresários do município.

Caminhões de diferentes empresas aparecem enfileirados em uma rua ao lado do quartel-general do Exército, em Brasília, em 7/11/2022. Em alguns deles, é possível ler a palavra Agritex
Caminhões estacionados ao lado do quartel-general do Exército, em Brasília, na segunda-feira - Thaísa Oliveira/Folhapress

Doze caminhões exibiam nessa segunda o nome da Agritex, revendedora de maquinários, peças e equipamentos agrícolas que atua em sete cidades. No domingo, a própria empresa compartilhou pelo Instagram vídeos dos caminhões chegando à região do protesto.

"Chegaram em Brasília os guerreiros das estradas", dizia a legenda de um deles. "Time Agritex marcando presença em Brasília. Orgulho em fazer parte dessa empresa", afirmava outro. "O agro mostrando a sua força e importância."

Outros sete veículos estacionados perto do quartel-general na segunda mostravam a logo do Grupo Comelli, de Rio Verde, em Goiás. Segundo o site, a empresa especializada em processamento de biomassa atua também em Minas Gerais e Mato Grosso.

Em seu perfil no Instagram, o grupo compartilhou uma foto de cinco caminhões lado a lado com a bandeira do Brasil e a localização "quartel-general do Exército". "Orgulho de ser brasileiro", dizia a legenda.

Os caminhões que ajudam a inflar o ato de Brasília estão estacionados em fila perto do acampamento montado na região. O trânsito na rua foi interditado pelo Exército. As placas indicam que os veículos saíram de ao menos quatro estados: Mato Grosso, Goiás, Bahia e Santa Catarina.

Caminhoneiros afirmaram reservadamente à Folha que vieram à capital federal por decisão dos patrões, e foram orientados a permanecer na cidade até segunda ordem. Alguns afirmaram que os empresários perguntaram quem gostaria de participar do ato em Brasília, enquanto outros disseram que foram apenas informados da determinação.

Os empregados disseram ainda que têm a carteira assinada e que, por isso, não faz diferença para eles estarem trabalhando ou com os caminhões parados. Afirmaram também que os gastos com alimentação, combustível para a viagem e transporte em Brasília serão pagos pelos empregadores. Alguns vieram acompanhados das esposas.

Funcionários de uma das empresas disseram que o patrão autorizou o grupo a ajudar financeiramente outros manifestantes acampados. A Folha identificou duas grandes barracas de alimentação servindo almoço gratuitamente para os caminhoneiros. Em uma delas, nesta segunda, havia churrasco.

A reportagem não conseguiu contato com a Agritex até a publicação deste texto. A empresa foi procurada por telefone na segunda e nesta terça-feira (8), mas ninguém atendeu. A Folha também mandou e-mail, mas não houve resposta. O Grupo Comelli afirmou, por telefone, que não iria se pronunciar.

Nesta terça, procuradores-gerais de Justiça dos Ministérios Públicos de São Paulo, Santa Catarina e Espírito Santo informaram ao ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes que os atos antidemocráticos em curso são chefiados e organizados por empresários.

Segundo eles, os integrantes fazem parte de "uma grande organização criminosa com funções predefinidas" e atuação interestadual. Um dos objetivos do Ministério Público é mapear o fluxo financeiro que está bancando os bloqueios nas estradas e rodovias.

Manifestantes estão reunidos com bandeiras do Brasil e camisetas verde-amarelo em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília
Ato antidemocrático em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, na segunda-feira - Cézar Feitoza/Folhapress


Na segunda, o ministro determinou que as polícias informem ao STF em até 48 horas a identificação de todos os veículos e caminhões que participaram tanto dos bloqueios nas rodovias como nas manifestações em frente aos quartéis das Forças Armadas.

Moraes também cobrou a identificação de "líderes, organizadores e/ou financiadores dos referidos atos antidemocráticos", e informações das "providências realizadas" pela PRF (Polícia Rodoviária Federal), PF (Polícia Federal), polícias militares e civis.

Especialistas afirmam que protestos que pedem a intervenção militar atacam a própria Constituição e não estão protegidos pelo direito à liberdade de expressão. A punição para cada conduta deve ser avaliada de forma individual.

O Exército pediu ajuda ao governo do Distrito Federal para manter a "segurança" e a "ordem pública" no local. O Comando Militar do Planalto solicitou o envio de ambulâncias, funcionários para a limpeza e o controle de ambulantes, policiais e reboques.

Em resposta a questionamento da Folha, o Exército informou que os manifestantes "se encontram de forma pacífica em frente ao quartel-general" e que o objetivo não é retirá-los do local, mas reforçar a "segurança desses brasileiros".

"O ofício não trata de remoção dos manifestantes que se encontram de forma pacífica em frente ao Quartel-General do Exército. O objetivo do documento é reforçar, junto com outros órgãos do Distrito Federal, as atividades de controle de trânsito e de barracas, limpeza e segurança desses brasileiros."