terça-feira, 11 de outubro de 2022

É o fascismo, Folha, Karla Monteiro, FSP (definitivo)

 Na última semana, numa entrevista à GloboNews, o general Hamilton Mourão admitiu: a ideia é barbarizar de vez, caso Bolsonaro seja reeleito. Trocando em miúdos, o Congresso aprovaria uma PEC aumentando o número de ministros do STF e o presidente da República indicaria nomes terrivelmente fiéis, dispostos a por fim à separação de Poderes.

Curioso: o agora senador eleito, pelo Rio Grande do Sul, tem o mesmo sobrenome de outro general, Olímpio Mourão, a "vaca fardada", comissão de frente do golpe de 1964. Com a geografia embaralhada, diga-se de passagem. Se um partiu de Minas Gerais contra a democracia, o outro dispara justamente da terra de Leonel Brizola e João Goulart.

Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada - Ueslei Marcelino - 10.out.22/Reuters

Mas o problema "é a economia, Lula", conforme o editorial desta Folha publicado na capa da edição do último domingo (9). Segundo o texto, estamos, nós, a sociedade brasileira, vivendo um momento de otimismo, com o Brasil indo de vento em popa, portanto, seria mandatório que o candidato do PT diga logo como pretende nos manter neste rumo auspicioso.

"A pobreza mental e moral desse empresariado que age na política só por interesse direto, dominado por ganância e egoísmos patológicos, é responsável por grande parte das desgraças que assolam o país", escreveu, coincidentemente, Janio de Freitas, na mesma edição de domingo.

PERSPECTIVA DO TEMPO

Ele, o velho Jânio, já viu este filme: a democracia definhando, agonizando, enquanto se exige compromissos só da esquerda. Esquerda, aliás, é maneira de dizer, já que Lula vem se cercando de todos os credos, tendo amealhado a declaração de votos insuspeitos. Até dos papas: Pedro MalanArmínio FragaPérsio AridaEdmar BachaAndré Lara Resende e Henrique Meirelles, além de Fernando Henrique Cardoso.

Lendo hoje os editoriais de 1964, a impressão que se tem é que foram escritos por terraplanistas. Quem iria garantir a democracia eram os quartéis, e João Goulart, um estancieiro de São Borja, estaria preparando a revolução russa. Como se sabe, o temido golpista nem sequer resistiu ao golpe. Fato: a perspectiva do tempo não perdoa.

Por dever do ofício de biógrafa, tive a oportunidade de ler todos os editoriais publicados nas semanas que antecederam o 1º de abril, um a um, em pelo menos quatro jornais: Correio da Manhã, O Globo, Jornal do Brasil e Última Hora. A propósito, honrosa exceção para a Ultima Hora, o jornal fundando por Samuel Wainer, o único a ficar do lado certo da história.

A coisa esquentou nas páginas dos matutinos e vespertinos após o famoso comício da Central, em 13 de março, quando João Goulart chamara o povo para a rua em defesa das reformas de base. Entre estas, a reforma agrária. Antes de seguir para o comício, ele assinara dois decretos, um desapropriando terras ociosas às margens das rodovias e outro encampando refinarias particulares de petróleo. Logo assinaria a lei limitando remessas de lucros para o exterior.

Segundo O Globo: "Ainda se poderá falar em legalidade neste país? É legal a situação em que se vê o chefe do executivo unir-se a pelegos e agitadores comunistas, para intranquilizar a nação com menções a eventuais violências, caso o Congresso não aceite seus pontos de vista?".

O mais famoso dos editoriais, intitulado "Basta", viria alguns dias depois, no dia 31 de março, véspera do golpe, publicado na capa do vetusto Correio da Manhã: "Basta de farsa. Basta de guerra psicológica que o próprio governo desencadeou com o objetivo de convulsionar o país e levar avante a sua política continuísta. Basta de demagogia".

Na Ultima Hora, Paulo Francis revidou: "Vários editoriais de domingo não eram apenas insubordinados como os marinheiros, mas nitidamente subversivos, pois pediam a cabeça de Jango, incitavam os militares à rebeldia armada contra o governo". Na sua opinião, "os ‘democratas’ abandonaram o travesti, desnudaram-se exibindo a epiderme dos gorilas que são e sempre foram".

NEOLIBERALISMO CANIBAL

Passados 58 anos, cá estamos de novo, com a democracia por um fio. Desde 2018, assistimos a esta invasão dos bárbaros. Eles avançam, corroendo tudo. Em "Como as Democracias Morrem", Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chegaram a alguns quesitos para avaliar o risco dos candidatos de extrema direita. Bolsonaro se encaixa em todos.

Ao rejeitar as regras do jogo e contestar os resultados das urnas, batendo na tecla das "eleições limpas". Ao propagar ameaças de golpe, recuando e progredindo. Ao atacar a imprensa. Ao incitar a intolerância e a violência.

Sobretudo, ao negar a legitimidade do oponente. No discurso bolsonarista, todo progressista é comunista e agente do globalismo, ameaça em potencial aos valores da pátria.

No editorial de domingo, a Folha igualou as campanhas de Lula e Bolsonaro, clamando por um "debate de ideias", como se o atual presidente estivesse dentro da régua da civilização. Fico imaginando quais as "ideias" de Bolsonaro a serem discutidas: a tortura como política de Estado? Se a solução para o problema da segurança pública seria botar uma AK-47 na mão de cada cidadão? O combate à "ideologia de gênero" como prioridade do MEC? O fechamento do STF? Ou a transformação da Amazônia num grande garimpo?

É o fascismo, Folha. Não adentremos as minúcias da doutrina de Mussolini. Até porque Jair não é Benito, que tinha lá o seu arcabouço teórico e algum verniz. Suas raízes estão fincadas, todos sabemos, no fascismo rasteiro, aquele natural de Rio das Pedras. O neoliberalismo canibal não nos salvará da ruína moral, mesmo que nos tornemos uma grande Miami.

Editoriais são documentos históricos —e Bolsonaro não é um problema do Lula, mas um problema nosso.

Bolsonaro pode transformar o Brasil numa Venezuela, Joel Pinheiro da Fonseca - FSP

 Muitos, com razão, ficam apreensivos ao ver Lula apoiar ditaduras de esquerda. Esse suposto apoio é às vezes aumentado pela propaganda de direita. Mesmo assim, há uma evidente condescendência quando o regime é de esquerda: Cuba, Venezuela, Nicarágua. A política de cooperação econômica nos anos PT tinha a mesma benevolência.

Por pior que seja a condescendência petista com ditaduras de esquerda, contudo, é preciso reconhecer: não houve, nos treze anos de governo PT, tentativa de replicar aqui o que foi feito em Cuba, Venezuela ou Nicarágua.

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O ex-presidente Lula e o presidente Jair Bolsonaro - Nelson Almeida e Evaristo Sá/AFP

Não que tudo fosse às mil maravilhas: a retórica que trata a imprensa como inimiga, o discurso polarizante, tudo isso existiu também nos anos PT. Mas o que foi feito naqueles anos parece brincadeira de criança perto da violência de agora, e quem o atesta são os (e especialmente "as") jornalistas que foram alvo tanto da militância petista quanto da bolsonarista.

Certas instituições saíram fortalecidas dos governos petistas, como Polícia Federal e Ministério Público. Os ministros do Supremo indicados por governos PT (em especial o governo Dilma) são os que mais se destacam no combate à corrupção, inclusive a corrupção do PT. O aceno a uma esquerda antidemocrática latino-americana é lamentável, mas não se traduziu em ditadura aqui.

De Bolsonaro não se pode dizer o mesmo. A investida contra as instituições da democracia é constante. E já tem total clareza do inimigo a vencer: o STF está na mira. O próprio Bolsonaro, o senador eleito General Mourão, o deputado reeleito Ricardo Barros, todos já passam a mesma mensagem: se o Supremo não se curvar ao bolsonarismo, vão aumentar o número de cadeiras, o que daria para Bolsonaro o poder de selecionar os novos ocupantes. Como ele próprio já afirmou, seu principal critério é a lealdade do novo ministro.

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Sem um Supremo atuante, o campo está aberto para tudo aquilo que foi barrado ao longo dos últimos anos: decretos ainda mais agressivos para venda e circulação de armas de fogo —sem nenhuma fiscalização—, formação de milícias pró-governo, ataques e ameaças a pessoas que ousem se contrapor ao presidente, liberação formal do vale-tudo ambiental, intrusão ideológica direta na educação, restrições à liberdade de expressão, inundação da comunicação com fake news, ameaças e discurso de ódio. Ricardo Barros já fala em leis para punir institutos de pesquisa. A intimidação estará permitida.

Bolsonaro não tirou essa estratégia da cartola. É o livro de regras do populismo antidemocrático, que pode ser de direita ou de esquerda. Quando a ditadura é de direita, Bolsonaro apoia e até bajula, como fez com Viktor Orbán na Hungria.

E copia seus métodos em casa. Orbán também acabou com a independência do Judiciário. Na Hungria, só restaram grupos de mídia controlados por amigos do primeiro-ministro. Leis eleitorais foram alteradas para garantir a reeleição perpétua do partido dominante, que também domina os recursos para financiar seus aliados, além de ter criado ao seu redor um círculo de oligarcas apoiadores do regime. Mesmo as universidades estão sob vigilância. E é com esse governo que Bolsonaro diz ter "afinidades".

O apoio do PT a ditaduras de esquerda é condenável. Nunca se traduziu, contudo, em tentativas de copiar seus métodos aqui dentro. Se tentar - por exemplo num "controle social da mídia" —há todo um Congresso bolsonarista para barrá-lo. É por isso que, neste momento, a maior ameaça de venezuelização do Brasil está em Bolsonaro.


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

João Pereira Coutinho - Eleitores do Bolsonaro se identificam com discurso, não votam só contra o PT, \FSP

 O mundo reage às eleições no Brasil. Eu sorrio. Sorriso pequeno, amarelo, quase envergonhado. Quer um exemplo?

Na revista New Statesman, o colunista Jeremy Cliffe lamenta: quem pensava que a pandemia seria a sepultura dos líderes populistas, errou feio.

Num país onde 700 mil pessoas morreram com o vírus e onde Jair Bolsonaro foi universalmente aclamado como um incompetente na matéria, como explicar que Lula não tenha vencido logo no primeiro turno?

Enfim. Deixemos de lado a questão mais óbvia: se a pandemia mostrou a incompetência dos líderes populistas, as consequências econômicas e sociais da pandemia podem ser um novo bálsamo para esse tipo de lideranças —como, aliás, escrevi nesta Folha em plena peste.

Mas a pergunta de Cliffe reproduz, na perfeição, um velho preconceito progressista que corrói qualquer análise sobre o chamado populismo, no Brasil ou fora.

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É a ideia de que as eleições são um assunto racionalista, ou seja, dentro dos parâmetros que o próprio progressista estabelece "a priori" como racionais.

A imagem representa uma ágora grega, com pessoas debatendo política em praça pública nas antigas Politéias, que eram esboços das primeiras Repúblicas. A imagem no caso foi baseada na pintura "Discurso Fúnebre de Péricles", de Philipp Von Foltz, de 1852.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho - Angelo Abu

O cidadão, meditando profundamente sobre os candidatos, só pode votar como um progressista votaria.

Nenhum estudo sério confirma essas fantasias. Eleições são como um jogo de futebol —questão emocional, passional, às vezes selvática. Você não abandona seu time só porque ele perdeu alguns jogos.

Há razões que a razão progressista desconhece, eis o ponto. Creio que foram Roger Eatwell e Matthew Goodwin, no seu "National Populism", quem primeiro analisou esse fenómeno: para os progressistas, quem vota em Donald Trump (ou Bolsonaro, acrescento eu) está votando contra algo, não a favor.

É sempre um voto negativo, nunca substancial. Um voto de protesto —contra o sistema, a corrupção etc.—porque ninguém, em são juízo, pode sustentar posições conservadoras ou reacionárias (não são a mesma coisa) de forma honesta e autêntica.

Uma vez mais, nenhum estudo sério confirma essas novas fantasias. No caso de Trump, os eleitores escolheram o Donald em 2016 porque se reviram nos valores que ele dizia professar. Os eleitores queriam mesmo menos imigração, fronteiras mais seguras, mais policiamento nas ruas etc.

Como relembram Eatwell e Goodwin, oito em cada dez eleitores de Trump concordavam com a construção do famoso muro no México (que Joe Biden continua a construir no Arizona, só para lembrar aos distraídos).

O Brasil não é exceção. O voto em Bolsonaro não é apenas um voto antipetista (a explicação clássica de 2018). É um voto convicto e cada vez mais crescente daqueles para quem Deus, a pátria e a família são a estrutura ética e política da comunidade.

Moral da história?

Vença quem vencer o segundo turno, metade dos brasileiros não vai desaparecer da paisagem com suas crenças e valores. Continuará respirando, falando, discutindo, convencendo. Que fazer?

A pergunta não é nova. É até bem velha e remonta aos inícios da democracia liberal: como governar sobre uma diversidade de opiniões e concepções de vida, algumas bem radicais e insalubres, de forma a manter uma república livre?

James Madison, que se ocupou do assunto no "Federalista", deu duas hipóteses: é possível tentar remover as causas das facções; ou, então, controlar os seus efeitos.

Remover as causas das facções significa destruir a liberdade de opinião e de crença —ou, pior, obrigar todo mundo a pensar da mesma forma. Dois caminhos que terminam na tirania.

Melhor controlar os efeitos, aceitando essa diversidade como parte do jogo e protegendo as instituições democráticas de qualquer assalto majoritário —no Legislativo, no Judiciário, mas também na mídia, na universidade, na sociedade civil e até na casa de cada um.

Em teoria, a trilogia Deus, pátria e família não é problemática se não tentar esmagar todas as alternativas possíveis que convivem sob o mesmo teto constitucional.

Na prática, desconfie sempre de um político que diz o contrário: nenhuma democracia resiste quando uma metade tenta impor à outra metade como ela deve pensar e viver.