domingo, 6 de março de 2022

Keep calm, é uma guerra, José Henrique Mariante, FSP

 A guerra provoca uma avalanche de notícias. O que é realmente novidade, o que já foi dito ou escrito, o que foi esquecido ou deixado de lado? Repórter da TV Globo, em Londres, lembra do emblemático cartaz britânico da Segunda Guerra, "Keep Calm and Carry On", mantenha a calma e siga em frente. A peça, guardada para tempos mais difíceis, como uma eventual invasão nazista da ilha, nunca foi usada de verdade. Restou décadas na gaveta até virar souvenir.

Difícil saber o que não está sendo usado na Ucrânia neste momento. Na quinta-feira (3), a BBC anunciou que voltou a transmitir em ondas curtas para alcançar a população do país e de partes da Rússia afetadas por internet sabotada, ciberataques e censura. O sistema de rádio de longo alcance não era usado havia 14 anos na Europa. O império britânico já foi vasto, assim como as transmissões de sua estatal.

Na sexta-feira (4), em movimento bem mais drástico, a empresa comunicou que estava desmobilizando a equipe da BBC News na Rússia diante da mudança abrupta da legislação local. Horas depois, ponderou que seus jornalistas continuariam em Moscou, ainda que seus relatos não pudessem ser publicados.

A Duma, o Parlamento russo, aprovou pena de 15 anos de prisão para quem veicular desinformação em conteúdos jornalísticos profissionais ou postagens privadas em redes sociais. Chamar a guerra de guerra ou invasão é promover fake news na visão do Kremlin, por exemplo. O que ocorre agora, na versão oficial, é uma "operação militar especial" no país vizinho. Sabe aquela situação extrema e hipotética que sempre é citada em debates sobre controle de mídia e liberdade de expressão? A Rússia está no meio de uma delas.

O Facebook foi bloqueado no país, e o Twitter teve sua atuação restringida. Outras redes estão sob ameaça. A Folha noticiou o fato como "censura militar", termo usado pelo jornal independente Novaia Gazeta, de Dmitri Muratov, ganhador do prêmio Nobel da Paz no ano passado, ao explicar porque tirou do ar reportagens que produziu sobre o conflito.

A imagem retrata um soldado britânico sem cor olhando 3 cartazes em cores quentes, onde se lê - no primeiro: Keep Calm e Veja este Post; no segundo, Keep Calm e Veja este Vídeo; no terceiro cartaz, Keep Calm e Veja esta Dancinha.

O que acabou pouco destacado no noticiário é que o Facebook não é tão popular na Rússia, e que Instagram e WhatsApp, muito mais usados no país, continuam operando, assim como o YouTube. Também não se falou muito sobre quase todos os canais de comunicação russos estarem suspensos na União Europeia e terem conteúdo etiquetado em outras partes. Por pressão de reguladores de governos, mas também por iniciativa das próprias redes, que já não escondem a moderação seletiva.

A guerra é de informação também, nenhuma novidade, mas o patamar alcançado parece inédito. A atual invasão não é o primeiro conflito a ser movido, influenciado ou deturpado pelas redes sociais, porém nunca a produção de conteúdo multimídia foi tão disseminada. Analistas falam da primeira guerra do TikTok. É a única que o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, está supostamente ganhando, pela proficiência nos meios digitais, pelo talento de comediante e também por não ter alternativa. Não é qualquer um que, no meio de tanta confusão, dá pito na Otan no mesmo tom com que conclama revoltas populares.

As frases de efeito, porém, não saem apenas da linha de frente. Estão presentes nos discursos de políticos, órgãos públicos e empresas. Um tuíte do governo britânico na última semana bradava como se fosse um tabloide, em letras capitais coloridas, "DOIS PODEROSOS OLIGARCAS PUNIDOS". Iates e jatinhos passaram a ser caçados pelo globo. A Suíça, até outro dia paraíso de contas secretas, congelou bens de amigos de Vladimir Putin. O CEO da Cisco escreveu que a empresa está com a Ucrânia. Elon Musk teve seu dia de atendente de telemarketing e entregou internet por satélite ao país. A lista de cancelados só cresce, vai de soprano a esportistas.

Ainda é cedo para saber quem merece crédito por induzir tamanha onda ativista: a estratégia americana de escancarar ao máximo informações de inteligência, as severas sanções econômicas, o mecanismo global das redes, ainda não totalmente compreendido, o medo da ação de hackers. Não dá para acreditar apenas em súbita indignação planetária. Os sentimentos não são tão elevados, ainda que a mídia ocidental faça força para lembrar que o conflito é no meio da Europa, com refugiados de olhos azuis, na descrição patética, na verdade racista, de grandes emissoras internacionais. Uma reação "nimby", como alguém já classificou no Twitter. Na Primavera Árabe ou na Síria, longe das grandes Redações, eram apenas massas se matando.

Agora não, é diferente. Por essa e outras razões que restarão talvez por décadas em gavetas, o mundo inteiro se sente em guerra. Que pelo menos mantenha a calma e os dedos longe dos botões vermelhos.

Hélio Schwartsman Quando tudo parece um prego, FSP

 Se a única ferramenta de que você dispõe é um martelo, torna-se tentador tratar tudo como um prego. A frase resume bem a chamada lei do instrumento, o viés cognitivo identificado pelo psicólogo Abraham Maslow que nos leva a superestimar os poderes das ferramentas que nos são familiares. Cientistas deveriam estar sempre atentos às vulnerabilidades do raciocínio humano e cuidar para não cair presa delas. Na prática, não é tão fácil.

Uma das grandes questões do momento é saber se será necessária uma quarta dose de vacina contra a Covid-19. Não são poucos os que acreditam que sim, pois há inúmeros trabalhos mostrando que anticorpos neutralizantes não duram muito mais do que alguns meses, o que nos condenaria a reforços periódicos. Uma interessantíssima reportagem publicada no New York Times, porém, mostra que as coisas podem não ser assim.

Ilustração publicada no jornal Folha de S.Paulo, no dia 6 de março de 2022 que mostra uma imagem de fundo azul, onde um martelo segurado por uma mão de pele branca, sobre um prego vermelho espetado em uma superfície cujo a cabeça tem o formato de um vírus da Covid 19
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman deste domingo (6.mar) (Credito: Annette Schwartsman ) - Annette Schwartsman

Trabalhos que avaliaram a imunidade celular, não só anticorpos, sugerem que a proteção vacinal pode durar anos. Não seria uma imunidade esterilizante, que nos impede de contrair a infecção, mas bastaria para prevenir quadros graves e morte provocados mesmo por diferentes cepas do Sars-CoV-2. A crer nessa teoria, populações mais vulneráveis, como idosos e imunossuprimidos, talvez necessitem de reforços, mas, para a maioria, três doses seriam suficientes.

Não há cientista na área que não esteja ciente das diferenças entre imunidade celular e humoral, e que a primeira tende a ser mais duradoura. Por que, então, se deu tanta atenção aos anticorpos? É aí que entra Maslow. Fazer pesquisas com anticorpos é fácil. Basta uma gota de sangue e kits de testes. O estudo de células T é bem mais difícil. Exige equipamentos e pessoal especializados e é muito mais caro. Se a sua verba de pesquisa só dá para os kits de anticorpos, é neles que você vai se fixar. Cientistas devem buscar a verdade, mas também precisam olhar para suas carreiras.

O PIB de 2022 sob mais incerteza, Celso Ming*, O Estado de S.Paulo


04 de março de 2022 | 19h30

Uma vez conhecido o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2021, de 4,6%, convém examinar com mais atenção o que pode acontecer neste ano, que já começa atacado em várias frentes.


As projeções de uma variação insignificante, de 0,3% em 2022, são apostas que se repetem. É o quanto prevê o mercado auscultado pelo Banco Central (BC) na Pesquisa Focus. Mas até mesmo essa projeção, feita com breque de mão puxado, enfrenta novas adversidades, especialmente depois da eclosão da guerra da Ucrânia. Dependendo de sua intensidade, de sua duração e do seu desfecho, pode mudar muita coisa na economia mundial e na do Brasil, como mais adiante ficará dito.

A economia brasileira já vinha enfrentando retrancas. O aperto monetário (alta dos juros) para combater a inflação e, portanto, seu impacto recessivo, era apenas uma delas. O desemprego alto, que atinge 11,1% da produção ativa, mais a perda generalizada de poder aquisitivo são outras.

Construção Civil
Prédio em construção em Itaquera, zona leste de São Paulo. A indústria cresceu 4,5% em 2021 em relação a 2020, com grande destaque para a construção civil que, no mesmo período, avançou 9,7%, segundo o IBGE. Foto: Sergio Neves/Estadão

O aumento do rombo das contas públicas e a incerteza política que cerca as eleições deste ano também seguram os investimentos e, principalmente, baixam o nível de confiança dos produtores. A atual disposição dos consumidores parece ser a de adiar compras de maior importância, porque temem comprometer o orçamento doméstico com mais despesas.

A seca no Centro-Sul também vai castigando as plantações, cujo desempenho mais baixo deve ser apenas em parte compensado por um aumento de preços das commodities.

Apesar da derrubada do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a atividade da indústria de transformação também não apontava para o campo positivo. Ao contrário, as projeções vinham sendo de queda constante de produção.

A guerra complica ainda mais esse quadro e acrescenta a ele mais incertezas. A inflação deverá produzir novos estragos ao redor do mundo, a começar pelos provocados pela disparada dos preços da energia e das commodities.

Ainda não se sabe até que ponto os fluxos de produção e distribuição ao redor do mundo, que ainda não se restabeleceram completamente da desorganização provocada pela pandemia, serão agravados pela retenção de navios, pela ação das sanções econômicas à Rússia e pela crise energética.

Aumentou a falta de insumos, de chips e de peças na indústria de transformação. A agricultura brasileira terá de ver onde obterá os fertilizantes potássicos. E sabe-se lá se a pandemia não poderá enfrentar novas ondas que demandarão mais iniciativas de reclusão social.

Os tempos são de forte neblina. Produtores e consumidores têm de operar na incerteza. 

*CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA