segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Ditadores gostam de eleições, OESP

Moisés Naím, O Estado de S.Paulo

15 de novembro de 2021 | 05h00

A proliferação de autocratas apaixonados por eleições presidenciais é um surpreendente fenômeno político. Não que os ditadores gostem de pleitos livres e justos, nos quais eles podem perder. Isso não. O que eles buscam é o passageiro aroma democrático do qual uma eleição popular os impregna – sempre e quando sua vitória está garantida.

E o estranho é que, apesar de dentro e fora do país as pessoas saberem que a eleição é uma farsa, os autocratas continuam montando essas peças de teatro eleitoral que simulam uma eleição democrática.

As eleições falsas têm um extenso histórico. Saddam Hussein, Muamar Kadafi e os líderes da União Soviética e seus satélites adoravam eleições que venciam com 99% dos votos – ou com 96,6% quando a disputa era apertada. Mais recentemente, o tirano da Coreia do Norte, Kim Jong-il; Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela; Vladimir Putin, na Rússia; e Alexander Lukashenko, em Belarus, venceram eleições abertamente fraudulentas.

PUBLICIDADE

Um caso extremo dessas tentativas de perpetuar-se no poder é o de Daniel Ortega, na Nicarágua. Há alguns anos ele alegou diante da suprema corte de seu país que o direito à reeleição indefinida é um direito humano fundamental. Essa barbaridade foi aceita pelos magistrados que, obviamente, eram seus lacaios. Inevitavelmente, as cortes internacionais que consideraram essa aspiração a declararam inválida. Isto não deteve Ortega. Em 2011, o presidente violou a constituição e se lançou candidato a um terceiro mandato. Ganhou essa eleição usando todo tipo de truques e artimanhas. Há algumas semanas, voltou a fazê-lo. Declarou-se ganhador por uma acachapante maioria na eleição que lhe garantirá um quarto mandato na presidência.

ctv-sdn-ortega
Um caso extremo dessas tentativas de perpetuar-se no poder é o de Daniel Ortega, na Nicarágua Foto: Oswaldo Rivas/REUTERS

Ortega, um líder marxista que nos anos 1970 contribuiu por meio da luta armada para a derrocada da ditadura de Anastasio Somoza, se converteu aos 75 anos em um tirano clássico – homem forte que há duas décadas governa com mão de ferro um dos países mais pobres do mundo. O marxismo de sua juventude contrasta com sua atual opulência e de sua família.

Ortega gosta de eleições – desde que possa encarcerar os principais líderes da oposição, empresários, jornalistas, acadêmicos, ativistas sociais e líderes estudantis. Ele colocou todo mundo na cadeia, incluindo sete candidatos à presidência. Também reprimiu brutalmente manifestações de rua que denunciavam a corrupção de seu governo e pediam mudanças. Uso abusivo de recursos do Estado a favor de sua campanha eleitoral, coação de funcionários públicos, que foram obrigados a votar a favor do governo, censura dos meios de comunicação social e férreo controle das forças armadas são ingredientes que esse tipo de tirano gosta.

Eleições fraudulentas não apenas obrigam um povo inteiro a continuar convivendo com líderes e políticas que aprofundam a miséria, a iniquidade e a injustiça. Também servem para revelar o quão desprovida está a comunidade internacional de estratégias que façam aumentar os custos e os riscos enfrentados por aqueles que atentam contra a democracia de um determinado país. Os Estados Unidos, a União Europeia e a maioria dos países da América denunciaram estridentemente o abuso e a ilegalidade de Daniel Ortega. Os EUA ameaçaram com mais sanções contra os chefes e os principais beneficiários do monstruoso regime nicaraguense.

Lamentavelmente, nada disso fará com que Ortega entregue o poder ilícito que detém. Porque o ditador nicaraguense encarna aquela observação de George Orwell: “Sabemos que ninguém toma o poder com o objetivo de abandoná-lo”.

Paradoxo

A democracia tem como base justamente o contrário, a premissa de que o poder dos governantes eleitos livremente pelo povo em eleições justas deve ser limitado pelo tempo.

As mais longevas e consolidadas democracias do mundo conseguiram instaurar leis, instituições e regras que freiam intentos de mandatários que buscam concentrar excessivamente o poder e perpetuar-se no cargo. Mais países, por sua vez, foram vítimas da citação de Orwell: têm líderes que supõem que, uma vez conquistado o poder, não devem abdicar dele.

Assim, o que estamos vendo no mundo é que, logo depois de eleitos, alguns presidentes começam a buscar formas de ampliar sua permanência no cargo e enfraquecer os pesos e contrapesos que limitam seu poder.

Nesses dias, Daniel Ortega, sua família e seus cúmplices devem ter celebrado o resultado das eleições. A votação na Nicarágua é um bom modelo do tipo de eleição que os ditadores tanto gostam.

Aqueles que não gozam de legitimidade real têm de se contentar com a legitimidade artificial e espúria que eleições manipuladas lhes conferem. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO 

Brasil é laboratório do melhor e do pior em governança tecnológica, Ronaldo Lemos, FSP

 Na semana passada, participei de um jantar oficial com o presidente francês, Emmanuel Macron, na sede do governo em Paris. Foram convidados 20 "pensadores" globais que trabalham com tecnologia. O objetivo era discutir o papel da França e da Europa de modo geral sobre questões tecnológicas.

Dentre os convidados estavam a escritora Shoshana Zuboff (autora do livro A Era do Capitalismo de Vigilância) e a baronesa Joanna Shields, ex-ministra de Internet e Segurança da Inglaterra. Da América Latina, só este colunista.

Três perguntas foram levantadas nas conversas. É possível usar a tecnologia a favor da democracia? Como proteger direitos em face do avanço tecnológico? E, muito importante, como proteger as democracias dos ataques coordenados por meios digitais?

A França está em posição favorável para levantar essas questões. O país está prestes a assumir a presidência do Conselho da Europa. Além disso, nos dias seguintes ao jantar, recebeu a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, e o secretário-geral da ONU, António Guterres, além de outras lideranças globais que participaram do Fórum da Paz, a convite do país.

Presidente da França, Emmanuel Macron
Presidente da França, Emmanuel Macron - Gonzalo Fuentes - 12.nov.2021/Reuters

No jantar, acabei conhecendo alguns dos ministros franceses. Dentre eles, a jovem ministra da transformação e reforma do Estado, Amélie de Montchalin, que se sentou ao meu lado.

Amélie morou no Brasil na cidade de Campinas e fala português perfeitamente. Seu pai foi executivo de uma fábrica de produtos alimentícios na cidade. No dia do jantar, ela havia acabo de lançar a política de software livre da França. Além disso, incluiu uma estratégia para atrair programadores para trabalharem no governo francês.

Tudo um luxo comparado com as políticas tecnológicas brasileiras no momento.

Vale lembrar que o Brasil já foi líder nessa área e pioneiro em políticas de software livre na administração pública. Hoje, está à deriva.

Aliás, esse foi o tema da minha fala para o presidente Macron. Enfatizei que nosso país é uma espécie de laboratório de tudo que existe de melhor e pior em termos de governança tecnológica. No lado bom, criamos no passado a Parceria Internacional de Governos Abertos (OGP), que foi citada várias vezes na reunião.

Criamos também o Marco Civil da Internet, visto como modelo, e também citado. Fizemos iniciativas globais como a NetMundial, ou o próprio Comitê Gestor da Internet.

Tudo permanece na memória de líderes globais.

Imagem mostra um homem que segura um livro, enquanto outro gesticula, como se estivesse explicando algo
Ronaldo Lemos e Emmanuel Macron durante jantar que reuniu 20 pensadores para discutir governança tecnológica - Divulgação

Já sobre as experiências ruins relacionadas à tecnologia não é preciso citar. Vivemos dentro delas e de seus resultados todos os dias no país.

Uma lição ficou clara no jantar: liderança importa. Diga-se o que se quiser do presidente francês, ele tem um plano e uma visão clara sobre o papel da França.

Essa visão produz frutos. O país vai crescer 7% em 2021. A taxa de desemprego está baixa e decrescendo, com meio milhão de empregos formais criados neste ano. O país está construindo as bases para participar cada vez mais da economia digital e quer dialogar com pensadores do mundo inteiro para isso.

Como dizia um outro francês, Allan Kardec: "Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. O poder da causa está na grandeza do seu efeito". Para refletirmos.


READER

Já era – Brasil líder global em questões de governança tecnológica

Já é – França e Europa assumindo papel de liderança no debate global sobre tecnologia

Já vem – Sociedade civil brasileira se organizando para retomar o espaço perdido pelo país

Mathias Alencastro - Nanificação do PSDB significa perda para todos os eleitores, FSP

 Nesta semana, três homens disputarão as prévias para a candidatura do PSDB à Presidência. Eles mal conseguem pontuar acima de 3% nas sondagens nacionais.

Dificilmente a campanha poderia ter sido mais melancólica. João Doria, Eduardo Leite e Arthur Virgílio atravessaram os debates se enfrentando sobre o regimento internoo aplicativo de votação e outras intrigas menores. Chegarão no dia do voto sem terem nem sequer desenhado um rascunho de projeto de país.

Este é o último ato do declínio de um partido que, sete anos atrás, chegava aos 49% dos votos no segundo turno das eleições presidenciais e se preparava para iniciar um novo ciclo no poder.

O governador João Doria (SP), o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio (AM) e o governador Eduardo Leite (RS) durante debate das prévias do PSDB
O governador João Doria (SP), o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio (AM) e o governador Eduardo Leite (RS) durante debate das prévias do PSDB - Divulgação/Assessoria Doria

É fácil demais imputar a ruína do PSDB a externalidades como a crise dos partidos tradicionais e a ascensão da extrema direita. Os estratagemas das suas lideranças também contribuíram para o desastre. Ao decretar o fim da política e apostar em um animador de auditório de televisão, FHC desmoralizou uma geração inteira de quadros preparados. A reconversão de Aécio Neves em zelador do centrão destruiu o prestígio do partido entre o seu eleitorado tradicional, mobilizado durante anos pela agenda anticorrupção.

Desconhecendo o valor da lealdade política, Doria negociou a alma dos tucanos pela sua eleição para governador em 2018. Amaldiçoado por esse pacto faustiano, passou o seu mandato tentando conter a bolsonarização dos radicais e o êxodo dos moderados. Hoje, as suas mensagens confeccionadas por marqueteiros ecoam no vazio.

Só aqueles que decidiram se afastar da farsa ou batalhar contra a deriva, à imagem de Geraldo Alckmin e Tasso Jereissati, conservaram a sua autoridade política. A promessa modernizadora de Eduardo Leite talvez tenha chegado tarde demais para reverter o clima de debandada.

Se Doria tivesse olhado para outras democracias liberais, teria entendido que a abolição incondicional do cordão sanitário que dividia a direita e a extrema direita seria fatal para o PSDB.

Depois de anos observando as mudanças no sistema político, as lideranças europeias chegaram a um diagnóstico claro e consensual: a extrema direita tem o seu ciclo próprio e tende a perder força depois de experiências governativas fracassadas, como no caso da Itália, ou de longos ciclos de contestação infértil. Cabe aos partidos tradicionais preservar a sua identidade, evitar as tentações oportunistas dos ciclos eleitorais e deixar passar a tempestade.

Quem perde com os erros crassos do PSDB é o eleitor brasileiro. Como ficou mais claro desde a semana passada, o polo conservador está se reorganizando em torno de duas forças que têm em comum o desprezo pelas normas republicanas: Jair Bolsonaro e Sérgio Moro.

Sequestrada por excrescências da rebelião anti-política, que nos legou o vandalismo sanitário, a truculência golpista e a vergonha mundial, a direita brasileira está condenada ao destino da direita americana, engolida pelo fanatismo trumpista. Todos os democratas só têm a deplorar o fim da era tucana.