domingo, 17 de outubro de 2021

Recordar é sofrer, José Renato Nalini*, OESP


17 de outubro de 2021 | 12h00

José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO

Somos habituados a esquecer rapidamente as coisas que nos incomodam. Com isso, negligenciamos a urgência de tomar atitudes que possam exatamente evitar que elas ocorram.

Um passeio pelo que aconteceu recentemente no Estado de São Paulo, tradicionalmente um território incólume a catástrofes naturais, talvez suscite uma reflexão das mentes sensíveis. Estas não são muitas, senão o estágio em que se encontra o ambiente bandeirante seria outro.

Pela segunda vez, tempestade de poeira encobriu cidades, assustou moradores nas regiões de Presidente Prudente e Araçatuba. Na segunda vez, o fenômeno se fez acompanhar por rajadas de vento forte e pancadas de chuva. Uma vítima, ao menos, foi ferida com a queda de uma telha. Mas muitas cidades ficaram sem energia.

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Isso já havia atingido Ribeirão Preto e Franca. O fenômeno tem nome: “haboob”. É o que resulta de ventos fortes em solo seco. Levanta-se a poeira e pode chegar a até dez quilômetros de altura. Não ocorria no Brasil, quando havia cobertura vegetal nativa. Mas o depauperamento da mata para servir à monocultura e depois o exaurimento da terra, que já não serve para as próximas “socas”, deixou um chão de deserto.      Por que essa tempestade de poeira tem nome? Em árabe, “haboob” significa “destruidor” ou “o que vagueia”. Só ocorre em regiões áridas do planeta. O vento só levanta poeira quando encontra um solo ressequido, com resquícios de queimada e vegetação seca.

É evidente que os ufanistas, que sustentam que o Brasil tem mais área verde do que a sua dimensão territorial – fazendo uma soma daquilo que consideram reserva florestal, áreas demarcadas, num exagero que só engana quem quer ser enganado – vão dizer que isso é natural. Agora é, porque somos especialistas em produzir desertos.

Perguntem a quem teve casas destelhadas em Penápolis, onde árvores foram arrancadas – as poucas que sobraram e que não resistiram, porque isoladas – e fios elétricos rompidos. Em Presidente Prudente aconteceu o mesmo, com inúmeras vidraças quebradas. Até o aeroporto viu quebra de vidros no saguão de embarque. Um caminhão tombou na Raposo Tavares, envolvido pela poeira e vento violento. As rajadas de mais de oitenta quilômetros por hora danificaram também o Recinto de Exposições.

Dracena foi outra cidade que sofreu. O seu Centro Dia do Idoso foi atingido, uma funcionária ficou ferida. Regente Feijó e Teodoro Sampaio idem. Da mesma forma, Pereira Barreto. A segunda tempestade de poeira matou quatro pessoas. Um homem foi atingido por um muro que caiu com a força do vento. Três outras pessoas morreram envolvidas pela nuvem de fumaça e fogo que se levantou quando o vento chegou a um pasto em chamas, em Santo Antonio de Aracanguá, região de Araçatuba.

Uma fazenda em que havia fogo, viu um trator ser carbonizado e vinte bois morrerem, queimados ou asfixiados pela fumaça. Outra pessoa desapareceu no rio Paraná, em Presidente Epitácio, depois de sua embarcação virar durante a tempestade. Outro que estava desaparecido chegou a ser salvo pela Marinha. Dezenas de barcos do Rio Paraná viraram com a força do vendaval.

Isso não teria acontecido se a inteligência humana tivesse preservado ao menos uma parcela da mata que cobria toda São Paulo e que foi dizimada, pela pressa na obtenção de lucro. Terrível concluir que reparadas as residências que foram destelhadas, restabelecidas as comunicações interrompidas, enterrados os mortos, tudo volte ao “normal”. Só que o normal, se não houver uma efetiva conversão dos seres racionais para que cuidem melhor da natureza, será a repetição de “haboobs”, cada vez mais violentos.

Seria bom acreditar que as Prefeituras das cidades maltratadas pela natureza que elas primeiro maltrataram, se redimisse mediante uma consequente cruzada para reflorestar. É conciliável o agronegócio, a quem se atribui a “salvação da lavoura” da economia brasileira e a preservação. Sem esta, até o agronegócio estará prejudicado. A crise hídrica vai trazer prejuízos incalculáveis e continuará, a cada dia mais intensa, pois o regime de chuvas se viu impactado pelo desmatamento da Amazônia e pelos incêndios do Pantanal.

Todos sabem como fazer a água voltar. A “fábrica de água” se chama árvore. Sem ela, não se espere por chuva. Nem se culpe São Pedro, por uma conduta insensível e deliberada de todos quantos desmataram, tornando o solo seco, árido, desértico. O fenômeno que já se repetiu tende a ser rotineiro. Tomara que, em algumas consciências, a lembrança desse infausto acontecimento gere uma reação. Não é a natureza que vai agradecer. É a humanidade. Esta precisa aprender a conviver com o ambiente, do qual faz parte e sem o qual, poderá deixar de existir muito antes do que possa imaginar.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022


Não é a PEC 5 que politiza o CNMP e, sim, é o MP que politiza a PEC, Paulo Teixeira,OESP

 Paulo Teixeira*

15 de outubro de 2021 | 11h15

Paulo Teixeira. FOTO: DIVULGAÇÃO

Preocupado com o corporativismo do Conselho Nacional do Ministério Público, propus, juntamente com um conjunto de parlamentares, a PEC-Proposta de emenda Constitucional n. 5, tratando de alterações visando a aperfeiçoar e oxigenar esse importante órgão da República.

Todavia, o que era para ser uma legitima iniciativa do Parlamento – afinal, os Poderes da República são, pela ordem, Legislativo, Executivo e Judiciário – acabou se transformando em um palco político, por meio do qual o Ministério Público superestima e dramatiza as alterações e minimiza os benefícios republicanos, chamando a proposta de “PEC da Vingança”, “PEC da Revanche”, “querem acabar com o Ministério Público”, discurso que não se coaduna com a própria história das relações entre Parlamento e a Instituição.

Qual seria a revanche? Pelos quarenta adiamentos do julgamento do procurador Dallagnol? Vingança contra a notória dificuldade de se punir agentes que abusam de seu poder?

Sabe-se que a criação do CNMP e do CNJ foram conquistas da sociedade. Aliás, foram obras de projetos advindos do governo Lula.

O CNMP, a olhos vistos, necessita ser aperfeiçoado. Diferentemente do judiciário, o Ministério Público possui hierarquias. Por exemplo, não existe um Ministério Público Nacional, como o é o Poder Judiciário. Consequentemente, é necessário que a composição do CNMP necessita ser “desministeriado”, por assim dizer, abrindo-se à sociedade.

A reação às alterações propostas pela PEC se mostra absolutamente desproporcional. Quando mais a sociedade precisa de um órgão que estabeleça limites ao autoritarismo político-institucional do Ministério Público, mais se percebe o modo como o CNMP coloca obstáculos à verificação das faltas funcionais dos membros do MP. Desnecessário elencar o rosário de críticas que se acumulam ao CNMP durante esses anos todos.

O parlamento percebeu esses déficits institucionais. E, no seu papel, apresenta a PEC que propõe corrigir disfuncionalidades do órgão. Mantendo o seu cerne estrutural, o parlamento traz consistentes alterações, como a composição, retirando, em parte, o caráter classista, agregando mais dois membros externos. Ainda assim, a maioria do CNMP é composto de membros do MP. Disso não se fala.

Parece evidente, a qualquer democrata, que a oxigenação de um órgão deve ser bem vista. Surpreende, assim, que a desproporcional campanha midiático-corporativa apresente a PEC como uma tentativa de retirar a independência do MP ou de esvaziar suas tarefas institucionais. Outra vez, dicotomicamente se opõem interesses corporativos às tentativas de trazer mais controle e transparência.

Por acaso, o MP desconfia do Parlamento, ao criticar tão fortemente as duas vagas que a PEC introduz? E qual é o problema em esse mesmo Parlamento indicar, entre os membros do CNMP, ex e atuais, o Corregedor do órgão? O próprio sentido de “corregedoria” se apresenta mais transparente se o cargo não for reservado a um membro do MP.

Um dos pontos que mais causa protestos é, veja-se, uma matéria constitucional. Com efeito, diz que compete ao CNMP rever, em grau de recurso, as decisões dos Conselhos Superiores sempre que negarem vigência ou contrariarem a CF, a tratados ou as decisões normativas do próprio órgão. Ora, os Conselhos tratam de matéria do âmbito administrativo. Todos sabemos das dificuldades de judicialização de decisões ilegais-inconstitucionais dos órgãos colegiados do MP. Daí a previsão de recurso ao CNMP. De quem se terá medo?

Do mesmo modo, apresenta-se saudável o poder de o CNMP fiscalizar os atos dos agentes do MP que utilizam o cargo para intervir na ordem pública – leia-se, politização da Instituição. Exemplos não faltam.

São todos pontos que, antes de serem repudiados, deveriam servir para que o próprio MP faça uma autocrítica. Analisando todas as objeções à PEC, percebe-se justamente o contrário do que se diz, isto é, não é a PEC que politiza o CNMP; é o Ministério Público que politiza a PEC, blindando a Instituição de controles externos absolutamente necessários na democracia, evitando a formação de “repúblicas autônomo-institucionais”, imunes à punições e, quiçá, a fiscalizações mais isentas.

*​​​​Paulo Teixeira, deputado federal-PT-SP, integrante do Grupo Prerrogativas. Advogado e mestre em direito pela USP

Órgão do Ministério Público sob risco de mudança tem guerra interna e histórico de engavetamentos, FSP


BRASÍLIA

Sob risco de sofrer alterações em razão de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) em curso na Câmara, o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) costuma evitar pautas polêmicas e tem histórico de arquivamento de processos de grande repercussão.

O conselho é integrado por atores de diferentes ramos do Judiciário, do Ministério Público e da advocacia e vive uma guerra interna, com diferentes visões sobre os limites de atuação de investigadores.

A composição heterogênea do colegiado dificulta a construção de consensos e leva ao adiamento de diversos julgamentos importantes.

Desde que iniciou as atividades, em 2005, o conselho autuou 6.150 reclamações disciplinares. Do total, 307, menos de 5%, resultaram em punição a promotores e procuradores, sendo 22 casos de demissão, pena mais dura que o CNMP pode impor.

Os defensores da PEC citam números e alegam que é necessário promover alterações no órgão para torná-lo mais eficiente. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já disse que o texto visa levar ao "fim da impunidade em um órgão muito forte".

Associações de classe do Ministério Público, por sua vez, afirmam que estão abertas a aperfeiçoamentos, mas dizem que a PEC em discussão representa uma tentativa de ingerência política no órgão que pode acabar com a autonomia e independência da carreira.

A última versão da proposta aumenta de 14 para 17 o número de conselheiros e amplia de 2 para 5 o número de assentos escolhidos pelo Congresso.

Prédio da Procuradoria-Geral da República, em Brasília
Prédio da Procuradoria-Geral da República, em Brasília - Sérgio Lima - 26.jun.03/Folhapress

Além disso, determina que o cargo de corregedor, um dos mais importantes, acumulará a vice-presidência do colegiado e será eleito pelo Congresso entre quem foi ou é chefe de ministérios públicos estaduais.

Para as entidades que representam procuradores e promotores, as mudanças aumentam de maneira indevida a influência política no órgão porque os representantes de fora da carreira passariam a ser maioria no conselho, além de a atribuição de escolher o responsável pela corregedoria ser retirada da instituição.

Há anos, porém, a classe política reclama de uma suposta inação do conselho em relação aos desvios de integrantes do Ministério Público e tenta emplacar propostas para interferir no trabalho do órgão.

A insatisfação com o CNMP aumentou principalmente após o início da Lava Jato, em razão da compreensão de congressistas de que o colegiado é corporativista e hesita em punir abusos de promotores e procuradores.

Apesar de sempre ter existido essa vontade de parte dos políticos, este é o momento de mais força da pauta no Congresso, o que tem causado mais preocupação em integrantes do Ministério Público.

A PEC em discussão na Câmara conta com apoio amplo, que vai de partidos de esquerda até aliados do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A proposta também tem simpatia de deputados por causa da pressão de prefeitos, governadores e gestores públicos em geral.

Fora a disputa entre a classe política e o órgão em razão de grandes operações contra corrupção desencadeadas após a Lava Jato, também há reclamações em relação a medidas de promotores contra chefes de Executivos regionais e secretários por fiscalizações que extrapolariam suas atribuições e acabam por engessar a máquina pública.

Apesar dos apoios, o movimento contra a PEC também tem ganhado força pelo temor de congressistas indecisos em se posicionar contra o Ministério Público e serem acusados de atrapalhar o trabalho de investigadores.

Além disso, há uma questão matemática envolvida. Para ser aprovada, a PEC precisa dos votos de três quintos da Casa, mais do que a maioria simples exigida em projetos de lei.

A insegurança dos entusiastas da proposta em relação à quantidade de votos que terão em plenário já levou ao adiamento por duas vezes da votação da matéria e a mudanças no texto que irá a plenário.

A intenção, porém, é levar a PEC à apreciação pela Casa em breve. Se passar pela Câmara, o texto irá para o Senado, onde também precisará de voto de três quintos para ser aprovado.

A inação em relação a desvios de integrantes da carreira e a falta de resposta a casos de grande repercussão, mesmo que para rejeitar punições, têm sido os principais argumentos dos defensores da proposta.

A demora do conselho em situações mais rumorosas ficou clara, por exemplo, na discussão da representação apresentada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra os procuradores da Lava Jato Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon por causa da coletiva de imprensa que ambos concederam em 2016 para apresentar, em um PowerPoint, as acusações contidas na denúncia contra o petista.

O julgamento foi adiado mais de 40 vezes. Em agosto de 2020, o colegiado se debruçou sobre o caso e a maioria entendeu que havia justa causa para abertura de um procedimento disciplinar contra os dois, mas a acusação foi arquivada porque havia prescrito.

As divisões internas dificultam que seja dada mais celeridade aos trabalhos do órgão. Recentemente, por exemplo, o procurador-geral da República, Augusto Aras, contou com a ajuda do Senado para construir uma maioria temporária contra a Lava Jato no colegiado.

O Senado travou por quase um ano a aprovação de três representantes para compor o conselho, o que levou à formação de uma maioria mais alinhada à ala garantista, que costuma acusar promotores e procuradores de cometerem excessos em suas funções.

O Senado, que já rejeitou a indicação de defensores da Lava Jato, aproveitou a pandemia da Covid-19 para barrar a apreciação de nomes que poderiam reforçar uma linha favorável aos investigadores no conselho.

Outro ponto da PEC que gerou incômodo no órgão foi o trecho que obriga o conselho a enviar, em 120 dias, uma proposta de lei complementar que institua o Código Nacional de Ética e Disciplina do Ministério Público brasileiro e do Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União).

Promotores e procuradores afirmam que já há normas que regulamentam a atuação da categoria e afirmam que um código de ética poderia ser elaborado pelo próprio CNMP.

Em relação ao dado de que menos de 5% das reclamações disciplinares resultam em punição, a assessoria do conselho afirmou que o número não representa impunidade.

O CNMP disse que a maior parte desses casos se refere a "notícias de fato" sem grande complexidade que podem até merecer punição, "mas são melhor conduzidos pelas corregedorias locais das unidades do Ministério Público, que por estarem próximas do local do fato podem agir com mais rapidez, eficiência e economicidade".

"Nesses casos, a Corregedoria Nacional envia para a corregedoria do MP do membro e fica acompanhando, remotamente, a apuração."